O arrogante caminho para a guerra

Fomos advertidos acerca deste caos

por Robert Fisk [*]

Mais uma baixa na tropa de ocupação. Quão arrogante foi o caminho para a guerra. Como o presidente Bush agora tenta desesperadamente bajular o velho jumento da ONU a fim de que o salve do Iraque — ele que nos advertia que a ONU corria o perigo de transformar-se num "clube de conversas" tipo Liga das Nações se se recusasse a legitimá-lo na sua invasão — somos supostos acreditar que ninguém em Washington podia ter adivinhado o futuro.

Os srs. Bush e Blair fantasiaram sua estrada para a guerra com todas aquelas míticas armas de destruição em massa e "ameaças iminentes" do Iraque — seja da variedade 45 minutos ou não — e da "libertação", "democracia" e mudança de mapa no pós-guerra que iriam conceder à região. Mas o registo mostra apenas quantas advertências a administração Bush recebeu de pessoas sãs e decentes nos dias que antecederam o mergulho nesta terrível aventura.

Tomem-se as audiências no Comité de Relações Exteriores do Senado, em Washington, na véspera da guerra. O assistente do subsecretário Douglas Feith, um dos "neo-cons" [neoconservadores] de Rumsfeld, revelou que só três semanas antes havia sido aberto um gabinete para o "planeamento do pós-guerra". Ele e o subsecretário de Estado Marc Grossman admitiu que o Pentágono estivera "a pensar" acerca do pós-guerra no Iraque durante 10 meses. "Há enormes incertezas", disse Feith. "O máximo que se pode fazer em planeamento é desenvolver conceitos".

Os senadores americanos na altura ficaram altamente suspeitosos acerca destes "conceitos". Quando o democrata Joe Biden perguntou se alguém na administração Bush havia planeado o governo do pós-guerra no Iraque, Grossman respondeu que "Há coisas nos nosso país que não estamos a ser capazes de fazer por causa do nosso compromisso no Iraque". Richard Lugar, o presidente republicano perguntou então: "Quem governará o Iraque e como? Quem proporcionará segurança? Por quanto tempo podem as tropas americanas concebivelmente permanecer ali? Terão as Nações Unidas algum papel?"

O ex-general Anthony Zinni, outrora o homem principal no US Central Command e com experiência de "manutenção da paz" no Kosovo, Somália e (em 1991) norte do Iraque sentiu que algo cheirava mal e disse isso em público. "Queremos nós transformar o Iraque ou apenas transformar o regime inaceitável de Saddam Hussein numa nação razoavelmente estável? A transformação implica mudanças significativa nas formas de governação. Não será certamente uma democracia espontânea..."

Zinni falou do longo e duro caminho rumo à reconstrução e acrescentou — com irónica visão do futuro — que "isto não se resolve com um punhado de pessoas que saem do Pentágono, apanham um avião e chegam ao local logo após a paz para tentar consertar esta coisa".

Mas, incrivelmente, foi exactamente o que aconteceu. Primeiro foi Jay "encolha-a-sua-barriga-e-diga-estou-orgulhoso-de-ser-um-americano" Garner, e a seguir o famoso perito em "anti-terrorismo" que fracassou em Bagdad na contratação e a seguir recontratação do exército iraquiano e então — confrontado com um americano morto por dia (e 250 soldados americanos feridos só no mês de Agosto) — recontratar os bandidos assassinos dos centros de tortura de Saddam para ajudar na batalha contra o "terrorismo". O Iraque, admitiu delicadamente Bremer na semana passada, precisará de "várias dezenas de milhares de milhões" de dólares apenas no próximo ano".

Não é de admirar que Rumsfeld continue a contar-nos que tem homens "suficientes" no Iraque. Dezasseis das 33 brigadas de combate dos EUA estão agora no caldeirão do Iraque — cinco outras estão instaladas no ultramar — e a 82nd Airborne, com dificuldade para sair do Afeganistão (onde cinco outros soldados americanos foram mortos no último fim de semana) está prestes a ser instalada no norte de Bagdad. "Eles que venham", zombou Bush das guerrilhas inimigas no mês passado. Bem, elas tomaram a sua palavra ao pé da letra. Não há até agora um grama de evidência de que a última fantasia da administração Bush — "milhares" de combatentes islâmicos estrangeiros da "jihadi" a fluírem para dentro do Iraque a fim de matar americanos — seja verdadeira.

Mas isto pode vir a acontecer dentro em breve. E o que lhes dirá então? Não foi o Iraque invadido para destruir o terrorismo ao invés de recriá-lo? Dizem-nos que o Iraque estava a ser transformado numa democracia e subitamente está a ser um campo de batalha para mais "guerra contra o terror". A América, diz agora Bush ao seu povo, "está a confrontar terroristas no Iraque e no Afeganistão... assim nosso povo não terá de enfrentar violência terrorista em Nova York ou... em Los Angeles". De modo que isto é assim. Tirem todos estes asquerosos terroristas do nosso muito amado Iraque "libertado" e eles gentilmente deixarão a "pátria" livre. Assombra-me.

Mas perceba-se, também, como tudo é baseado nos custos para a América, para o sangue americano. Um comentador americano, Rosie DiManno, escreveu esta semana que no Iraque "Há também o outro custo, um custo que é medido em vidas humanas... um americano morto por dia desde que Bush declarou acabado o grande combate". Note-se aqui como o sangue dos iraquianos — a quem estávamos desesperados por libertar seis meses atrás — desapareceu da narrativa. Acredita-se que mais de 20 inocentes civis iraquianos estejam a morrer por dia — em assassínios, mortes por vingança, em postos de controle americano — e eles já não contam mais. Não é de admirar que jornalistas agora tenham de pedir permissão às autoridades de ocupação para visitar hospitais de Bagdad. Quem saberá quantos cadáveres eles encontrarão na morgue?

"Os comunicados de Bagdad são atrasados, insinceros, incompletos. As coisas estão muito pior do que nos dizem... Estamos hoje não muito longe de um desastre". O escritor estava a descrever o desmoronamento da ocupação britânica do Iraque, sob ataque de guerrilha em 1920. Seu nome era Lawrence da Arábia.

[*] Robert Fisk é repórter de The Independent e autor de Pity the Nation . Ele contribuiu para o livro The Politics of Anti-Semitism , de Cockburn e St. Clair.

O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/ . Tradução de JF.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

06/Set/03