Acabou a guerra?
Então é o fim da guerra no Iraque, não? Se alguém
pensa que George Bush conseguiu convencer na noite de quinta passada no
porta-aviões Abraham Lincoln as principais
operações de combate terminaram foi a expressão que
empregou deveria examinar com maior atenção o sinistro
palavrório informal do secretário de defesa Rumsfeld às
tropas dos EUA em Bagdá um dia antes.
Estava repleta com toda a mitomania de sempre: os muitos iraquianos que vinham
aos montes para dar as boas-vindas aos americanos em sua
libertação de Bagdá, a marcha mais rápida sobre uma
capital na história militar moderna (que os israelenses lograram em
três dias em 1982). Mas o ponto principal foi passado discretamente ao
final. Os americanos, disse ele, ainda tinham que erradicar as redes
terroristas operando nesse país. Quê? Que redes terroristas? E
quem, alguém pode perguntar, está por trás dessas
misteriosas redes terroristas operando no Iraque? Eu tenho uma boa
idéia. Elas podem não existir ainda. Mas Donald Rumsfeld sabe
(e a inteligência dos EUA lhe contou) que um movimento cada vez maior de
resistência à ocupação americana está se
desenvolvendo no Iraque. A comunidade xiita muçulmana, agora apoiada
por milhares de iraquianos da brigada Badr treinados no Irã, acredita
que os EUA estão no Iraque por seu petróleo. Está furiosa
com o tratamento dos cidadãos iraquianos pelos EUA; em três dias
na semana passada pelo menos 17 manifestantes sunitas foram mortos, dois deles
com menos de 11 anos de idade. E não está impressionada com as
tentativas de Washington de costurar um governo interino pró-americano.
Mesmo durante a guerra, você poderia ouvir os mesmos sentimentos. Sim,
os xiitas nos diriam, os americanos podem se livrar de Saddam. Ninguém
duvidava da sua maldade. Mas sempre este sentimento era seguido por um desejo
de ver os americanos pelas costas. A maioria das vítimas civis das
bombas americanas e britânicas eram xiitas, especialmente em volta de
Nassíria e Hillah. O que constitui outro motivo pelo qual os americanos
não chegaram a Bagdá, onde um veículo blindado dos EUA
derrubou a famosa estátua de Saddam, para serem saudados com flores e
música. Quando civis iraquianos olharam para os rostos dos soldados
americanos, o presidente Bush trombeteou ao mundo na quinta, eles vêem
força, bondade e boa-vontade. Inverídico, sr. Bush. Eles
vêem ocupação.
Já é possível identificar algumas paisagens familiares no
progresso da ocupação: uma série de incidentes pelos
quais os americanos nunca são culpados. Exatamente como a
ocupação israelense da Margem Ocidental e de Gaza, a morte de
civis nunca é erro dos ocupantes. O motorista e o idoso alvejados e
mortos por tropas dos EUA próximo a um posto de controle em
Bagdá, e a menininha e a jovem gravemente feridas cuja tragédia o
Canal 4 testemunhou, não receberam nenhuma desculpa dos Estados Unidos.
Uma família é morta no seu carro no sul do Iraque; cameramen
são mortos no Hotel Palestina; 15 iraquianos, incluindo pelo menos uma
criança, são abatidos em Faluja. Para os americanos, é
sempre auto-defesa. Contudo, estranhamente, poucos ou nenhum americano foi
seriamente ferido nesses incidentes. É claro, deve haver atiradores
disparando contra os americanos. Mas as evidências indicam que não
há muitos. As evidências indicam que logo, logo, haverá
muitos mais. Basta observar quão profundamente os xiitas iraquianos
admiram o Hezbolá para entender como eles compreendem bem a arte da
resistência de guerrilha. Assistidos pelo Irã ou escaldados pelas
câmaras de tortura de Saddam eles não irão receber ordens
do ex-general Jay Garner, cuja viagem com todas as despesas por conta a Israel
para expresar sua admiração pela moderação do
exército israelense nos territórios ocupados palestinos é
bem conhecida no Iraque. E eles percebem muito bem que as grandes
corporações estão se preparando para fazer milhões
de seu país destruído.
Sem esperar por qualquer governo interino para tomar tais decisões, a
agência dos EUA para o o desenvolvimento internacional convidou
multinacionais americanas a fazer lances para tudo, de
reconstrução de estradas a novos livros didáticos. Uma
companhia dos EUA, Stevedoring Services of America, já abocanhou o
contrato de administração de US$ 4,8 milhões para o porto
de Umm Qasr. Espera-se que os executivos do petróleo dos EUA, muitos
deles acólitos de George Bush e sua administração, visitem
o Ministério do Petróleo (um dos dois únicos
ministérios iraquianos que os americanos miraculosamente salvaram dos
incendiários) daqui a uma semana.
Não, o Iraque hoje lembra não algum embrião de democracia
mas sim a tragédia que saudou os britânicos quando a
ocupação alemã da Grécia acabou em 1944. Hitler,
como Saddam, assegurou que haveria uma abundância de armas abandonadas
dando sopa para abastecer a resistência guerrilheira contra os novos
senhores. Churchill apoiou o governo nacionalista de Georges Papandreou, o
Ahmed Chalabi da Grécia, mas os guerrilheiros comunistas do Elas queriam
o poder. Eles tinham combatido os nazistas desde a invasão alemã
de 1941 e, como muitos dos muçulmanos xiitas hoje, temiam serem
excluídos do poder por um novo regime pró-aliado.
Assim a libertação de Atenas logo se tornou uma batalha campal
entre tropas britânicas (leia-se os americanos no Iraque) e os
comunistas, que tinham recebido anos de apoio da União Soviética.
Para a Rússia de então, leia-se o Irã de hoje. Alegando
que defendia a liberdade, Churchill observou que a democracia não
é nenhuma meretriz para ser pegada na rua por um homem com uma
submetralhadora. Mas quando a lei marcial foi imposta pelos britânicos
(algo que os americanos talvez tenham que considerar) Churchill menos
caridosamente disse ao comandante britânico numa mensagem secreta que ele
não deveria hesitar em agir como se estivesse numa cidade conquistada.
Em várias batalhas, houve tentativas de se encontrar um mediador
não diferentes das reuniões desesperadas em Faluja semana passada
entre iraquianos e americanos. Na ocasião, Churchill foi capaz de
restaurar a ordem apenas porque ele havia obtido secretamente o
beneplácito de Stalin para que a Grécia permanecesse na esfera
ocidental da Europa. A Búlgaria, a Hungria, a Polônia e outros
países europeus pagaram o preço. Os paralelos não
são exatos, evidentemente, e uma diferença fundamental hoje
é que a nação que poderia ajudar Washington, como os
soviéticos haviam ajudado Londres, é o Irã. E o
Irã, longe de ser um aliado difícil, é parte do eixo do
mal do presidente Bush, que teme ser o próximo na lista de alvos dos
EUA. Então aqui vai uma pequena predição.
O sr. Bush diz que a guerra está acabada, ou algo assim. Então a
resistência xiita começa a incomodar os americanos no Iraque.
É claro, o sr. Rumsfeld tinha avisado: serão taxadas como as
famosas redes terroristas que ainda têm de ser combatidas no Iraque. E o
Irã e sem dúvida a Síria serão acusadas de apoiar
estes terroristas. Os franceses fizeram o mesmo em sua guerra de 1954-1962
contra a FLN na Argélia. A Túnisia era a culpada. O Egito era o
culpado. Então aguardem pela parte II da guerra no Iraque, transmutada
no próximo estágio da guerra contra o terror.
Tradução de Janaína, publicada em
www.unidadepopular.org
. O original encontra-se em
www.zmag.org
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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