'Globalização'
Nos anos 90 ficou na moda utilizar o termo 'globalização"
para designar as mudanças económicas verificadas no mundo.
Disseram-nos que as economias do mundo todo estavam a tornar-se mais
integradas, e que a prosperidade iria propagar-se por toda a parte.
Entretanto, a grande maioria das medidas reais executadas sob a etiqueta da
globalização não se referiam à
integração e desenvolvimento. Ao invés disso, foram
processos de imposição, desintegração,
subdesenvolvimento e apropriação. Foram medidas de
contínua extracção do terceiro mundo dos pagamentos de
serviço da dívida; depressão dos preços das
matérias-primas exportadas por estes países;
remoção de tarifas de protecção para os seus
vulneráveis sectores produtivos; remoção de
restrições ao investimento directo estrangeiro;
remoção de restrições à entrada e
saída de fluxos maciços do capital especulativo internacional,
permitindo a estes movimentos que ditassem a vida económica;
redução das despesas estatais com a actividade produtiva,
desenvolvimento e bem-estar; privatização de actividades,
activos e recursos naturais; incremento agudo no custo de serviços
essenciais e bens como electricidade, combustível, cuidados de
saúde, educação, transporte e alimento (acompanhado pela
depressão mais dura do consumo das mulheres dentro do consumo declinante
de cada família); retirada do crédito subsidiado anteriormente
destinado a sectores subalimentados; desmantelamento da estabilidade de
emprego dos trabalhadores; redução da fatia salarial no produto
social; supressão da indústria interna no terceiro mundo e
encerramento de firmas manufactureiras numa escala maciça;
destruição de pequenas indústrias independentes;
destruição do sector artesanal; substituição de
culturas de subsistência por culturas para
cash
; destruição da segurança alimentar;
remoção de tectos máximos à posse de terra;
desapossamento de terra tribais e entrega de florestas a interesses
corporativos; aumento da dependência de camponeses com os novos (e
profundamente arriscados) produtos da biotecnologia; descarga de
resíduos perigosos no terceiro mundo e transferência para eles de
processos nocivos; utilização de mulheres como trabalhadores
forçadas em fábricas; crescimento da prostituição
em meio ao desemprego em larga escala; invasão de imagens destinadas a
tornar as mulheres consumidoras da indústria da beleza; entrada de
corporações multinacionais de media e dos seus produtos
culturais; e sistemático desenvolvimento de ilhas de consumismo em maio
a um vasto mar de pobreza.
Não é admirar que, longe de se tornar mais integrado e
próspera, a economia mundial esteja hoje ainda mais gravemente dividida.
Pelos índices do Banco Mundial, 45 por cento do mundo vive com menos de
dois dólares por dia, e o número de pobres por todo o mundo
cresceu durante a década de 1990. Um terço da força de
trabalho do mundo está desempregada ou subempregada devido à
ordem económica hoje reinante. Ao mesmo tempo, em 1993, os um por cento
do topo da população mundial receberam uma fatia maior do
rendimento do que os 57 por cento da base; os cinco por cento do topo têm uma
fatia de rendimento que se aproxima daquela dos 85 por cento da base.
[1]
A distribuição tornou-se ainda mais desigual na medida em que o
crescimento amainou. Dentro das próprias economias ricas o crescimento
esmoreceu agudamente nas últimas duas décadas quando comparado
com o das duas décadas anteriores. Dentro dos países em
desenvolvimento, a situação é muito pior: o crescimento
do rendimento médio per capita afundou para zero no período
1980-82.
[2]
Se a pobreza e a desigualdade não são novidade, a última
década foi especialmente marcada por frequentes e devastadoras crises
financeiras e colapsos, os quais difundiram-se mesmo a economias que eram
até aqui consideradas seguras. Elas afectaram um certo número de
países de uma vez, ajudadas pela libertação dos fluxos
financeiros: a crise de 1997-98 da Ásia do Leste e do Sudeste
ela própria envolvendo sete ou oito países foi seguida
pelo colapso da Rússia de Agosto de 1998; o Brasil entrou em colapso em
Agosto-Setembro de 1998, e mais uma vez no primeiro semestre de 1999. No
decorrer do colapso brasileiro, a frágil economia da Argentina foi
sacudida; ela também entrou em colapso dramaticamente em 2000, e ainda
não se recuperou. A instabilidade, confinando o caos, foi a marca da
década. As taxas de câmbio flutuaram mais violentamente, assim
como o crescimento do comércio, apesar de toda a conversa sobre os
ganhos da 'integração global". Os preços das
exportações de matérias-primas do terceiro mundo
caíram drasticamente.
A devastação provocada por tais crises financeiras foi
comparável àquela de uma guerra. Em muitos caos os
padrões de vida dos países afectados foram atirados
décadas para trás no caso da Rússia, para um
século atrás (a expectativa de vida dos homens na Rússia
caiu para 57
anos na década de 1990). Na Europa do Leste e na antiga União
Soviética, no fim da década quase nenhum dos países tinha
o mesmo PIB de que dispunha em 1989. O PIB da Rússia no fim da
década
era apenas dois terços do seu número de 1989; o da Moldova e da
Ucrânia era de um terço dos seus números de 1989. A taxa
de desemprego durante a crise asiática triplicou na Tailândia,
quadruplicou na Coreia do Sul, aumentou dez vezes na Indonésia.
Os países imperialistas, enquanto se movimentavam para estabilizar a
situação financeira provocada por estas crises (isto é,
para assegurar pagamentos contínuos da dívida pelo país
afectado pela crise), também obtiveram ganhos destas
devastações. A queda nos preços das
exportações de matérias-primas do terceiro mundo cortou
custos das corporações multinacionais. O capital que saiu da
Ásia do Leste, da Rússia e do Brasil viajou para países
imperialistas (as somas foram maciças: as saída da
Tailândia montaram a 7,9 por cento do PIB em 1997; 12,3 em 1998; 7,0
por cento no primeiro semestre de 1999).
[3]
E como as moedas asiáticas do leste, russa, brasileira e argentina
caíram, seus activos nos sectores público e privado tornaram-se
mais baratos para que os investidores estrangeiros os comprassem rapidamente.
(O botim foi enorme. Exemplo: na década de 1990, mesmo antes do
último colapso, multinacionais compraram do Brasil grandes
infraestruturas privatizadas e empresas do sector de serviços; elas
repatriaram US$ 7 mil milhões de lucros só em 1998.
[4]
)
O termo 'globalização' é uma distorção
grosseira. O trabalho permanece como que aprisionado dentro das fronteiras
nacionais. O capital, não há dúvida, está armado
com a liberdade de entrar e sair em todo o mundo (permitindo-lhe maximizar sua
exploração do trabalho em escala mundial). Mas a propriedade do
capital de forma alguma está dispersa por todo o globo; está
mais centralizada e concentrada do que nunca em mãos imperialistas.
Não foi a classe trabalhadora dos países imperialistas que
prosperou com estes processos. Estima-se que a desigualdade de rendimento nos
EUA esteja no seu mais alto nível desde a década de 1930, e a
crescer firmemente para pior. Os cinco por cento mais ricos dos EUA na
verdade sobretudo os 1-2 por cento mais ricos embolsaram quase todo o
ganho dos 30 por cento que o PIB cresceu durante os anos 1990.
[5]
Agora os números do Censo mostram uma brusca viragem na pobreza
americana em 2001. E na Europa, o actual impulso para integração
económica e para maior 'competitividade' é também de facto
um impulso para destituir a classe trabalhadora europeia dos seus direitos e
reivindicações sociais.
A resistência à 'globalização' ou antes, a
resistência ao assalto imperialista intensificado perfila-se
então tanto nos países do terceiro mundo que eram os piores
sofredores como nos próprios países imperialistas, onde a classe
trabalhadores enfrentou o assalto. Para enfrentar tal resistência, o
imperialismo nunca hesitou em empregar repressão dentro de casa e
opressão militar no exterior. Mas tais medias, ainda que
básicas, não seriam suficientes; também são
necessários meios políticos refinados.
UMA NOVA INICIATIVA
Em Janeiro de 2001, na cidade brasileira de Porto Alegre, teve um lugar uma
grande assembleia exprimindo oposição à
'globalização'. Era composta de organizações e
milhares de pessoas individuais de todo o mundo. Esta assembleia
autodenominou-se o Fórum Social Mundial, contrapondo-se ao Fórum
Económico Mundial de líderes empresariais e ministros das
Finanças que se encontravam todos os anos em Davos, na
Suíça, para discutir as preocupações das
corporações multinacionais e como avançar a
'globalização'. No Fórum Social Mundial, várias
organizações realizaram discussões, eventos culturais,
comícios, exposições, e outras formas de
auto-expressão, sobre questões que iam desde o ambiente ao
movimento de mulheres e à política económica para ordens
sociais alternativas. A grande participação encorajou os
organizadores a organizarem assembleias semelhantes também em Janeiro de
2002 e Janeiro de 2003, e cada uma delas testemunhou mobilizações
ainda maiores, rondando mais de 100 mil na última delas.
Estas assembleias, e a vasta publicidade que lhes foi dada, tiveram um impacto
mais amplo do que o círculo dos seus participantes directos. O
Fórum começou a ser tratado por muita gente como uma alternativa
política às actuais tendências políticas mundiais, e
como uma fonte potencial de uma nova política. Movimentos,
organizações e círculos de pessoas individuais de todo o
mundo que se opõem ao imperialismo, ou estão em luta contra ele,
tomaram nota do Fórum Social Mundial.
Além disso, enquanto o impacto directo das assembleias anteriores era
muito limitado à América Latina, isto já não
é assim. Uma série de reuniões regionais sob a
égide e com o padrão do Fórum Social Mundial foram
organizadas no ano passado na Argentina, Itália, Palestina, Índia
e Etiópia. Foi agora anunciado que a próxima assembleia do
Fórum Social Mundial terá lugar em Mumbai, em Janeiro de 2004.
É contra este pano de fundo que, a fim de entender os objectivos reais e
o carácter do Fórum Social Mundial (FSM), devemos examinar a sua
emergência e o seu desenvolvimento. Isto está a ser aqui tentado
a fim de que todos aqueles que lutam contra o imperialismo possam tomar uma
posição informada acerca do seu futuro curso de
acção.
UM BREVE SUMÁRIO DO QUE VEM AÍ
No que se segue vemos como, nos EUA e na Europa, um movimento de protesto
militante contra as depredações do capital internacional
apresentou-se em Dezembro de 1999 na conferência de Seattle da
Organização Mundial de Comércio, e enfureceu-se durante um
ano e meio após. Tentativas dos círculos dirigentes daqueles
países de para suprimir este movimento não obtiveram êxito;
na verdade, o movimento cresceu. Foi neste contexto que o FSM foi iniciado
pelo ATTAC, uma ONG (organização não-governamental)
francesa dedicada a
lobbying
instituições financeiras internacionais para que se reformassem
e humanizassem a si próprias, e pelo Partido dos Trabalhadores do
Brasil, cuja imagem de esquerdista e técnicas 'participativas' de
governo não o tinham impedido de implementar escrupulosamente as
estipulações do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Os encontros do FSM no Brasil durante os últimos três anos
atraíram não só multidões colossais como um vasto
conjunto de participantes, incluindo muitas forças e indivíduos
notáveis que são oponentes do imperialismo. O slogan do FSM,
"Um outro mundo é possível", ainda que vago, preenche o
difuso e inarticulado anseio por um outro sistema social. Contudo, os
próprios princípios e estrutura do FSM asseguram que ele
não se tornará uma plataforma de acção do povo e de
poder contra o imperialismo. Suas afirmações de constituir um
'processo' (não um corpo) 'horizontal' (não hierárquico)
são camufladas pelo facto de que as decisões são
controladas por um punhado de organizações, muitas delas com
consideráveis recursos financeiros e ligações a muitos
países que controlam a ordem mundial existente. Como o FSM nega-se a
chegar a quaisquer decisões como um corpo, é incapaz de uma
expressão colectiva de vontade e de acção. Suas
reuniões são estruturadas para dar proeminência a
celebridades do mundo das ONG, as quais reproduzem a visão do mundo das
ONG. Assim, em toda a conversa sobre 'alternativas', o centro das
atenções permanece nas políticas alternativas
dentro do sistema existente
, ao invés de uma mudança do próprio sistema.
Na verdade, os laços do FSM ao sistema existente são evidenciados
num certo número de aspectos. Enquanto várias forças
políticas combatendo por uma mudança do sistema são
excluídas das reuniões do FSM, multidões de líderes
políticos dos países imperialistas têm estado a comparecer.
Não só o FSM como um corpo recebe fundos das agências que
são ligadas a interesses e operações imperialistas, como
inumeráveis corpos participantes do FSM também estão
dependentes de tais agências. As implicações disto podem
ser vistas da história de uma agência como a Ford Foundation,
que tem colaborado estreitamente com a US Central Intelligence Agency no plano
internacional, e na Índia tem ajudado a moldar políticas do
governo favoráveis aos interesses americanos.
Em anos recentes tal financiamento tem crescido rapidamente na Índia,
conduzindo a uma vasta proliferação de ONGs. Enquanto os ONGs
primitivas restringiam-se a actividades "de desenvolvimento", desde a
década de 1980 elas têm-se expandido para o 'activismo' ou a
'advocacia', isto é, financiado actividade política. Este
fenómeno serve para facilitar a burocratização de
movimentos sociais e remove-los do controle popular. Uma crítica ao
papel de tais agências de financiamento na vida política indiana
foi produzida em fins dos anos 1980 pelo Partido Comunista da Índia
(Marxista); entretanto, os seus quadros dirigentes estão entre os
principais organizadores do FSM na Índia.
A 'globalização', uma palavra enganosa para o actual assalto do
imperialismo
, pode ser resistida, e mesmo derrotada, por uma combinação de
lutas a vários níveis, em vários países, em
várias formas, e as forças que combatem a
'globalização' precisarão unir as suas mãos na
luta
contra ela. Contudo, uma análise cuidadosa revela que o Fórum
Social Mundial não é um instrumento desta luta. É uma
diversão dela.
____________
Notas:
1. John Bellamy Foster, "Rediscovery of Imperialism", Monthly Review,
November 2002, citando cálculos do economista do Banco Mundial Branko
Milanovic baseados nos dados do Banco sobre pobreza e
distribuição do rendimento.
2. Ver
A nova face do capitalismo: Crescimento lento, excesso de capital e uma montanha de dívida
, Editores, Monthly Review, Abril 2002; o artigo cita estudos baseados em dados
do Banco Mundial.
3. J.E. Stiglitz, Globalisation and its Discontents, 2002, p. 99.
4. Crisis as Conquest: Learning from East Asia, Jayati Ghosh and C.P.
Chandrashekhar, 2001, p. 104.
5. Ver "Boom for whom?", Doug Henwood, Left Business Observer,
February 2000.
A seguir:
Como e porque emergiu o Fórum Social Mundial
(em inglês).
Este ensaio encontra-se em
http://www.rupe-india.org/35/globalisation.html
.
Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
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