Não resplandecente e sim a afundar-se

por John Pilger [*]

Na década de 90, quando a Índia se abriu ao capital global, seus governantes disseram que a pobreza seria erradicada. Agora está a ficar claro que milhões foram displicentemente traídos pelos poucos privilegiados que os mataram. Reportagem especial de Mumbai.

Church Gate Station, Bombaim, 1995. Foto de Sebastião Salgado. As multidões batem as mãos contra as janelas do compartimento, pretendendo subir e entrar para dentro. Os seus gritos são incessantes, é este apocalíptico enxamear que é diferente na Índia. Elas dançam à chuva e esperam no calor amarelo da terra teimosa tornada pó e que paira acima dos corredores de refugiados a fugirem da inundação e da guerra. Agora, na última monção em Mumbai, eles empoleiram-se sobre um outdoor que exibe a imagem de jovens homens de negócios, os quais têm pele branca e estão alegremente a celebrar a sua compra de um telemóvel com um écran de TV combinado. Os jovens homens de negócios e os corvos gordos não se apercebem de uma pirâmide de lixo, onde vive um cão repulsivo e ratos em disparada (com um olho sempre atento nos corvos) e uma pequena figura vestida com sari, a escavar metodicamente com as mãos.

Mumbai é a mais rica cidade da Índia. Ela movimenta 40 por cento do comércio marítimo do país; possui a maior parte dos bancos mercantis e duas bolsas de valores, e a maior favela da Ásia. Delícia e choque são respostas simultâneas. Levante os olhos e os magníficos edifícios góticos da Raj nem parecem reais: a Torre do Relógio de Rajabai, que outrora repicava o "Rule Britannia" ao dar as horas, e benevolências épicas como a Victoria Terminus, a maior estação ferroviária do mundo, pela qual passa um milhão de trabalhadores por dia, e o museu do Príncipe de Gales (ainda é chamado assim, tal como Mumbai ainda é Bombaim), com suas colecções notáveis e a abóbada perfeita que domina o Sítio do Crescente, conduzindo ao Portão de Entrada da Índia.

A seguir abaixe os olhos para as formas humanas côncavas sob juncos e trapos, estranhos às faces radiantes exibidas nos outdoors , e a questão é sempre a mesma: por que uma sociedade tão rica, cheia de recursos e culturalmente avançada, com democracia e memórias de grandes lutas populares, deveria viver assim?

Da última vez que estive em Bombaim, uma geração atrás, perguntei ao grande director de cinema de Bollywood, Raj Kapoor, porque a pobreza era tão persistente na Índia. "Os de fora julgam-nos mal", disse ele. "Somos uma sociedade dinâmica. Mas a maior parte de nós é forçada a viver uma vida predeterminada pelos grupos poderosos em seu benefício. A questão é que eles precisam da pobreza, a qual é muito boa para o seu enriquecimento, para levantar esperanças políticas, para distribuir pacotes de comida, por assim dizer, e para reforçar divisões de religião e de casta. Contudo, tudo isso é diversão: tal como meus filmes são diversões. Quando o povo entender isto plenamente e actuar, as coisas na Índia mudarão".

Uns poucos anos antes, em 1971, eu pusera a mesma questão a Indira Gandhi, então primeira-ministra. Ela e o Partido do Congresso haviam acabado reeleger-se por uma enorme maioria. A sua campanha fora cheia de promessas, e os pobres votaram por ela. "Após a independência", disse ela, "percebi que em algum momento ao longo do caminho a nossa direcção mudou. Tínhamos uma escolha. Ou comprarmos bens estrangeiros ou ajudarmos os industrialistas a ficarem ricos. Assim, agora temos uma classe média e temos pessoas pobres que sabem que são pobres. Isto é o princípio da nossa grande mudança".

A "grande mudança", além da sua desastrosa imposição da lei marcial seguida do seu próprio assassinato, nunca aconteceu. Mais exactamente, aconteceu a chegada de uma tendência de capitalismo extremo, concebido na Inglaterra no princípio do século XIX, e conhecida hoje como neoliberalismo. Com a derrota do Partido do Congresso e a subida do nacionalista hindu BJP à direcção do governo na década de 90, a sociedade dividida foi tosquiada do seu paternalismo e licenciada pela Fundo Monetário Internacional. As barreiras que haviam protegido a indústria e a manufactura indianas foram demolidas: a Coca-Cola entrou naquilo que fora território proibido, bem como a Pizza Hut, a Microsoft e Rupert Murdoch. A "Índia resplandecente" ("Shining India") foi inventada pelos ilusionistas para os seus beneficiários: a classe média em expansão (uma expressão inadequada na Índia; não há média de facto) e o capital transnacional. Eles disseram que a Índia alcançaria a China como potência económica e que a pobreza seria erradicada.

Na verdade, os números oficiais mostram que, no fecho do século XX, o número de indianos a viverem na pobreza absoluta caiu dez por cento. Contudo, no seu estudo "Pobreza e desigualdade na Índia: aproximando à verdade" (Poverty and Inequality in India: getting closer to the truth) , Abhijit Sen afirma que o número de pobres indianos realmente aumentou e que, para eles, a década de 90 foi uma "década perdida". Em 2002, aqueles na pobreza absoluta representavam mais de um terço da população, ou 364 milhões de pessoas. "A nutrição inadequada é realmente muito mais generalizada do que a fome ou o rendimento da pobreza", escreveu ele. "Metade das crianças indianas são clinicamente subnutridas e quase 40 por cento de todos os indianos adultos sofrem uma deficiência crónica de energia".

A taxa de crescimento da Índia certamente saltou acima dos seis por cento, mas isto é para o capital, não o trabalho, para os lucros libertados, não o povo. Toda esta conversa acerca de uma nova Índia high-tech a atacar as barricadas do primeiro mundo baseia-se em grande medida num mito. A nova classe tecnocrática é diminuta. Os famosos call-centres , onde jovens indianos educados afectam conhecer os "estilos de vida" britânico e americano a fim de servir os tipos do American Express empregam apenas 100 mil pessoas, ou 0,01 por cento da população. Desde 1993, o chamado boom do consumidor na Índia abrangeu, no máximo, quinze por cento da população; e, para a maioria destas pessoas, a nova prosperidade significou a aquisição de comodidades básicas da vida moderna, ao invés de carros e telefones móveis.

Para a maior parte dos indianos, o "novo mercado" tem um outro significado que é familiar por todo o mundo "globalizado". À medida que as imagens dos modelos exemplares com pele branca e bons dentes ascenderam, os serviços públicos deterioram-se. Segundo números da ONU, a Índia hoje gasta menos de um por cento do seu produto interno bruto com saúde e, nos serviços de saúde disponíveis para a maior parte do povo, classifica-se em 171º lugar entre 175 países, apenas à frente do Sudão e da Birmânia. Quanto aos gastos com saúde privada, os quais só os ricos podem pagar, é um dos mais altos do mundo.

Os jornais indianos reflectem isto de modo impressionante. O Indian Express apresenta uma dolorosa investigação às terríficas condições hospitalares, a seguir trombeteia a inclusão da Índia numa lista superficial dos "melhores países do mundo" redigida pela Newsweek e baseada totalmente no assenso do "novo mercado". O director de saúde de Maharashtra, relata o Times of India , afastou-se devido a "um bom serviço" conseguido na Organização Mundial de Saúde. Ele ficará afastado durante meses, dirigindo um inquérito no sudeste da Ásia. No ano passado, no seu território, umas 9000 crianças tribais — as mais pobres — morreram de desnutrição e falta de cuidados médicos. O responsável pela justiça criticou-o por "negligência" de deveres. "As mortes são comuns", respondeu o director, "e eu fiz o suficiente nos últimos dez anos. Por que agora deveria eu prejudicar a minha carreira por causa desta questão?"

Há muito nesta história de traição quase displicente que explica porque a maioria dos indianos votou como o fez na eleição geral de Maio último e com cólera tão evidente. Embora destinada especificamente ao governo dirigido pelo BJP, o principal patrocinador do "novo mercado", a sua cólera foi descrita por um comentador como "um clamor contra uma elite que os tem tornado quase invisíveis desde a independência".

Tal como a sua sogra Indira Gandhi, Sonia Gandhi fala contra a pobreza — mas raramente contra o elitismo que a controla. O homem que a substituiu e tornou-se primeiro-ministro, Manmohan Singh, deixou claro que não haverá "reversão" do "novo mercado"; assim como o novo Partido Trabalhista, o do Congresso será tão neoliberal como os seus rivais, se não mais. Apesar de tudo, escreveu Jawaharlal Nehru em 1936, "a perspectiva do partido do Congresso é essencialmente pequeno-burguesa". E profeticamente acrescentou: "Não é provável que tenha êxito indo por esse caminho".

Mais de setenta por cento da população vive fora da agricultura. Não só a desnutrição e a discriminação prevalecem entre as minorias como 70 milhões de pessoas de origem tribal e 150 milhões de Dalits (intocáveis), pequenos agricultores de todos os grupos étnicos sofreram durante a "década perdida". Suicídios entre arrendatários "agora contam-se em muitos milhares", contou-me o ambientalista e escritor Vandana Shiva. "Os governos não ousam admitir o número verdadeiro". A dívida, frequentemente para com usurários a taxas de juro de até 120 por cento, é agravada por um mercado aberto no patenteamento de sementes, plantas e fertilizantes naturais por companhias estrangeiras de biociência: "o pirateamento da nossa fonte vital", é como Shiva chama a isto.

As alternativas existem. Desde o século XIX, os movimentos de massa na Índia têm demonstrado que os pobres podem não ser fracos. Desde que foi eleito em 1978, o governo socialista popular em Bengala Ocidental (oficialmente, comunista) tem efectuado a Operação Barga, uma campanha para manter o rastro e registar todos os 2,3 milhões de arrendatários do estado. Cada locatário é procurado e os seus direitos são-lhes explicados, e a organização política do governo do estado na sua aldeia garante-lhe o acesso a empréstimos a longo prazo e que não seja intimidado pelos proprietários da terra. A Operação Barga é considerada por toda a Índia como um êxito, especialmente porque a produção de arroz em Bengala Ocidental aumentou.

A antítese disto pode ser encontrada nas periferias das cidades, as quais proporcionam uma advertência ao mundo do que acontece quando agricultores são expulsos da sua terra. Havia um lençol de chuva quando visitei a área "ferroviária" de Mumbai. Muitas das pessoas daqui haviam fugido da sua terra arrendada em estado de fome absoluta; eles mal subsistiam. Outrora, a cidade proporcionava trabalho, dentro de si e nos seus arredores, nas fábricas têxteis, mas estas foram substituídas pelos "ITES parks" (Information Technology Enabled Services). Mesmo o humilde estafeta está a ser substituído pelo computador.

As condições em que estas pessoas vivem são dificilmente descritíveis: uma extensa família de 20 pessoas é comprimida dentro de uma caixa de embalagem, os esgotos fluindo e refluindo na monção; inclusive na estação seca. Os corvos gordos a empoleirarem-se sobre esqueléticos guarda-chuvas das pessoas; cães de párias a mastigarem qualquer coisa. Mesmo um breve relance dentro deste chocante mundo Liliput mostra uma vontade de asseio, roupas embrulhadas em plástico e as crianças com cores vivas. É ao mesmo tempo pungente e humilhante, sempre, ver tal dignidade. Encontrei um homem de Bengala que estivera a poupar durante semanas o equivalente a 6 libras (9 euros), com as quais compraria uma caixa para engraxar sapatos; ele discutiu sua situação desagradável comigo; nada me pediu. Ao longo da Praia Chowpatty, onde o movimento Quit India outrora efectuou os seus grandes comícios pela liberdade, agora diz-se que a propriedade vale mais do que em Londres ou em Paris. Os especuladores chamam a isto "ouro castanho".

Na Livraria Oxford, em Churchgate, fui ao lançamento de um livro de Rajmohan Gandhi, o neto de Mahatma. Ele escreveu uma biografia de Ghaffar Khan, o inspirado "Gandhi Muçulmano" que se opôs à Partição. "A Índia é, de muitas maneiras, um país violento", disse-me ele. "O facto de termos democracia hoje é devido em grande medida à não-violência do principal movimento pela liberdade".

Democracia talvez, mas a liberdade espera.

[*] O novo livro de John Pilger, Tell Me No Lies: Investigative Journalism and Its Triumphs, será publicado em Outubro pela Jonathan Cape

O original deste artigo encontra-se em Newstatesman . Tradução de JF.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

10/Set/04