Tudo ao contrário!

Hugo Dionísio [*]

Cartoon de Liu Rui .

Oito anos de construções fortificadas, túneis, bunkers e depósitos de armamento sem fim, dois meses de reposicionamento de reservas e perdas humanas militares, eis que tudo começa, finalmente, a colapsar. As perdas humanas situam-se na casa das dezenas de milhares de jovens, menos jovens, nacionais e estrangeiros, eis que aconteceu o inevitável. O comediante que é presidente, nos seus vídeos diários a partir de um qualquer bunker ou numa qualquer mansão resistiu sempre a fazer o que o oponente faz quando considera que o esforço é demasiado para o ganho: recuar para uma linha de defesa mais sólida, poupando homens e equipamento.

A narrativa oficial, partilhada vezes sem fim, sobre “vitórias mais importantes desde a segunda grande guerra”, para o lado doméstico, não será despicienda, para a decisão de lutar até ao último homem. Afinal, qualquer decisão, de dar por perdida uma importante cadeia defensiva, implica uma inversão total na narrativa propagada pela imprensa corporativa do atlântico norte. Há que preparar primeiro o público seguidor implacável de tais narrativas. Dizer-lhe a verdade, não é uma opção, pois tal significaria dizer efectivamente o contrário dos que se tem dito, nomeadamente quanto ao desfecho inevitável do conflito.

Em mais uma guerra usada como ciclo de acumulação capitalista, facto bem patente na importância destes últimos 9 anos de sanções para a inversão da tendência no mercado mundial de armamento, que colocava os dois indirectos contendores em competição directa e com números muito próximos, esta situação como que se inverteu, sendo hoje os EUA, o incontestável líder da venda mundial de armamento, com cerca de 2/3 a mais em valor de vendas do que o seu maior concorrente directo (a FR).

Não quer dizer que vendam mais quantidade…. Vendem sobretudo mais caro. Os dados ao dispor são elucidativos sobre o uso da guerra e do complexo militar industrial enquanto instrumento do ciclo de acumulação capitalista, ou, ao contrário, enquanto instrumento que tem como objectivo fundamental a defesa nacional.

O “Global Fire Power 2023” que estabelece o “ Fire Power Index”, coloca os EUA em primeiro com 0,0712, a FR com 0,0714 e a RPC com 0,0722. Ou seja, os dois primeiros surgem empatados e o terceiro está muito próximo. O 4.º lugar, da India, já está muito mais longe, com 0,1025. O que é que isto nos diz sobre o papel de cada exército?

A primeira questão que salta à vista é, como é que um país que gasta 800 mil milhões de dólares de orçamento militar (e não integramos aqui o “dark money” das secretas, nem toda a investigação paga através de programas federais que também vai para fins militares), tem praticamente o mesmo poder de fogo que um país que gasta US$65 mil milhões e pouco mais do que outro que gasta US$290 mil milhões?

A resposta está em vários vectores: 1.º o complexo militar industrial norte americano é privado, logo, visa prosseguir o lucro, o enriquecimento de uma elite e a concentração de riqueza, sendo o estado um instrumento dessa acumulação; 2.º os outros dois têm um complexo militar industrial essencialmente público – não exclusivamente –, principalmente nas áreas mais sensíveis, não se destinando a mais do que cumprir o seu papel público, ou seja, garantir uma defesa nacional eficaz e capaz de defender a soberania do país.

Esta diferença é primordial, pois enquanto o primeiro faz armas para vender, nomeadamente e como dizem muitos especialistas, produzindo “brinquedos” de luxo, muito sofisticados e complexos, e por isso muito caros, quer no acto de compra, quer na manutenção, formação e exigências técnicas do pessoal, quer quando em combate, normalmente muito dados a avarias. Ao contrário, os outros dois contendores tentam produzir o mais barato possível, produtos eficazes, eficientes e com durabilidade. O facto de se tratarem, em grande parte, de empresas públicas, permite comprar a preço de custo e mesmo quando se tratam de empresas privadas, o preço que exigem está condicionado por um mercado dominado pelo sector empresarial publico, cujas dinâmicas de acumulação são controladas pelo estado, na defesa do que entende como interesse nacional. A isto, os EUA, chamam de “falta de liberdade económica”. Dos mais ricos, claro!

A estes dois vectores poderemos ainda adicionar outras variáveis que não deixarão de ter grande importância: qualquer uma das economias do 2.º e 3.º classificados são menos financeirizadas e, nesse sentido, menos especulativas, principalmente em sectores estratégicos, o que se reflecte em preços mais baixos e um menor peso do sector rentista sobre a indústria; ambos os países têm um potencial industrial instalado muito grande, o que permite a produção nacional quase exclusiva, com cadeias de produção quase totalmente em moeda nacional e por isso muito pouco vulneráveis a ataques especulativos ou a disrupções de outro tipo (no caso da federação russa, ainda tem a vantagem de ter acesso a todas as matérias-primas em seu território); por fim e entroncando na anterior, ambos os países têm contas de capitais fechadas (pelo menos em parte, sendo que a FR tem vindo a fechar com as sanções e a RPC só abre em determinadas áreas e com muitos limites), o que permite estabelecer cadeias de produção de alto valor acrescentado, mas de baixo custo comparativo, quando avaliado o seu produto nominalmente, em dólares. As vantagens que aqui constatamos em matéria de defesa são também visíveis noutros domínios como por exemplo a investigação espacial, a ferrovia e a banca. Só assim se suportam sanções em catadupa (caso da FR), só assim é possível usar o potencial acumulado para um desenvolvimento mais rápido do país (como no caso da RPC).

Venham de lá agora os defensores do neoliberalismo e da “abertura” dos mercados, defender que os países defendem melhor a sua soberania dessa forma, e não através das medidas protecionistas atrás referidas. Não fossem essas medidas e as duas economias em causa já estariam absolutamente arrasadas, quer por sanções, quer por ataques especulativos e os seus povos na mais absoluta indigência, de que tanto lhes custou sair. Não é por acaso que as duas grandes reivindicações dos EUA quanto às mudanças na RPC estão relacionadas com a privatização do seu imenso (cerca de 30% da propriedade do país) sector público empresarial (principalmente a banca) e com a abertura total da conta de capitais. Não é por acaso, também, que os EUA acusaram a FR de valorizar a sua moeda através do controlo de capitais. Eis porque razão a Casa Branca diz ser necessária uma “mudança de regime”. Este não interessa à “sua” democracia, dificulta a entrada de cavalos de Tróia.

Mas se este constitui um dos mais importantes factores em disputa, um dos outros, o energético, já deu frutos, pelo menos no curto prazo. De acordo com o Bloomberg, os EUA tornaram-se, em 2022, o maior produtor mundial de gás. Tudo à custa da transição da compra europeia, da FR para os EUA. Se, para os EUA, esta “oportunidade” (como disse Blinken) foi fantástica, para a Europa, deixa à mostra toda a sua fragilidade, política, económica e cultural. Para se ter uma ideia do custo que tem o “desacoplamento” da FR e “acoplamento” nos EUA, em matéria de dependência energética, basta ver os dados relativos à balança comercial em Novembro de 2022, período em que estes países se dedicaram a encher as suas reservas de gás natural e outros combustíveis.

Os dados fornecidos pelo Golden Sachs dizem que, para a França, o ultimo novembro foi o mais negativo dos últimos 20 anos, em matéria de défice comercial (-15%). A Suécia, tal como a França, também teve o pior novembro dos últimos 20 anos, um dos únicos 5 que em 20, tiveram défice, sendo o deste ano muito superior ao do ano passado, que já era negativo e reflectia a “grande” decisão de Úrsula em se passar a comprar o gás “on the spot” ao invés de celebrar contratos de longa duração (já estava em preparação o “desacoplamento”), como seria aconselhável. A Alemanha, mantendo-se em terreno positivo, teve, mesmo assim, o seu pior novembro dos últimos 18 anos. Em matéria de produção industrial química e farmacêutica (que exigem gás), está em queda livre, baixando para níveis muito inferiores a 2010, em plena crise subprime. O preço elevadíssimo do gás americano torna inviável a produção e, por outro lado, a falta de gás, devido ao encerramento e destruição do Nord Stream pelos seus “aliados”, leva a que tenha de se optar entre a produção industrial por um lado, e a manutenção das reservas estratégicas de gás, por outro, tão necessárias ao aquecimento em pleno inverno. A Alemanha tem optado pelo encerramento e deslocalização de empresas. Umas para a RPC, outras para os EUA, que até tem um competitivo sector farmacêutico (nada é por acaso).

O Japão também está numa situação complicada, também com o pior Novembro dos últimos 20 anos. A esta razão não será alheia a decisão de voltar a comprar petróleo da FR, nomeadamente voltando ao projecto Sahkalin e sem cumprir o tecto de preço que antes havia “contribuído” no G7 para fixar. Esta decisão certamente não deixará os seus mestres atlanticistas muito contentes.

A conclusão de um dos economistas do Golden Sachs que divulgou estes dados é esta: “os campeões mundiais da exportação já o deixaram de ser”. Eis no que dá prescindir da soberania nacional e deixar os “aliados” passarem a tomar as decisões que a cada um cabem.

A total sujeição dos países do G7 e EU aos ditames da NATO, organização criada para os arregimentar, confundindo-se hoje com a própria União Europeia; a aplicação cega de todas as sanções e orientações económicas e financeiras; a falta de mecanismos de protecção dos respectivos mercados internos… Não deixam de ter o efeito a que estamos a assistir, que havia sido previsto por tanta gente silenciada ao longo deste tempo. Como devem detestar ter razão.

Perdas totais das FAU em 2022.

E enquanto todos mantêm tal abertura, o “aliado” atlântico adopta medidas proteccionistas que visam precisamente captar o que de melhor a indústria dos seus “amigos” ainda tiver para dar.

Depois disto e do anunciado – manobra de diversão para os desaires militares recentes – pela cúpula da União Europeia, só falta ver o nosso primeiro-ministro, presidente e demais direitas e esquerdas atlanticistas virem defender a entrada rápida da Ucrânia, da Geórgia, da Moldávia, na União Europeia… Tudo por solidariedade, claro! Quero ver depois quando esta gente, que tanta empresa tem que vive dos fundos comunitários, deixar de os receber… De certeza que vão encontrar culpados onde não existem. Afinal essa é a sua praxis!

Querem mudanças? É fazer tudo ao contrário do que estes dizem!

12/Janeiro/2023

[*] Jurista da CGTP-IN.   Seu canal no Telegram é https://t.me/canalfactual

Do mesmo autor:
  • Um merecido prémio!
  • O original encontra-se em canalfactual.wordpress.com/2023/01/12/tudo-ao-contrario/.

    Este artigo encontra-se em resistir.info

    13/Jan/23