Mas onde estão os líderes da
esquerda francesa nas lutas actuais?
por Rémy Herrera
Numerosos
coletes amarelos dizem e repetem: eles não têm
líderes – e também não querem. O
espontaneísmo tem as suas virtudes e os encantos, com
certeza, mas igualmente os seus limites e as suas ilusões,
portadores dos perigos mais terríveis. A história
contemporânea já o mostrou reiteradamente, desde a
Revolução Espartaquista alemã até os
recentes levantamentos a "Primavera árabe". Se
pretendem desembocar em avanços sociais concretos, todo
levantamento popular precisa – além da energia,
determinação e coragem do povo – uma certa
unidade, uma organização partidária, um
programa político. Ora, o mínimo que se pode dizer
é que, na França actual, em rebelião
generalizada, o desmembramento das forças progressistas é
extremo e é mantido por querelas de chefes muitas vezes
mais pessoais do que políticas. Na tragédia da
divisão da esquerda francesa, que a enfraquece por
completo, acrescenta-se ainda o paradoxo de que esta situação
ocorre no preciso momento em que se construiu uma unanimidade
popular para rejeitar não só as políticas
neoliberais, mas também o próprio presidente
Macron.
Actualmente o mais bem colocado na batalha
interna da esquerda é sem dúvida o líder da
França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon. Este realiza
efectivamente o verdadeiro feito de chegar a reunir no seu nome
cerca de 20% dos votos aquando da primeira volta das eleições
presidenciais de Abril/2017 – ou seja, quatro pontos e
algumas decimais menos do que o candidato autorizado finalmente a
mudar-se para o Palácio do Eliseu. O Partido Comunista,
apesar de dissensões persistentes, tomou a opção
de se alinhar sob a sua bandeira. Na realidade, para terminar à
frente os votos que lhe faltaram – ironia da sorte –
foram os dos seus "velhos amigos": socialistas por um
lado (Benoît Hamon obteve 6%)... e trotskistas (Nathalie
Arthaud [do Lutte ouvrière] e Philippe Pouton [do Nouveau
Parti anticapitaliste], registaram respectivamente 1% e 0,6% dos
votos).
Após esta derrota eleitoral consumada e
dolorosamente digerida, J.-L. Mélenchon não perdeu
a oportunidade que se lhe apresentava com o surgimento da
mobilização dos coletes amarelos. É verdade
que ele precisava recuperar uma popularidade seriamente maculada
por uma série de processos judiciais (relativos a suas
contas de campanha, nomeadamente, em que os media dominantes se
deleitaram), mas também por uma insurreição
afectando a direcção do seu próprio
movimento (provocando a demissão de vários dos seus
lugar-tenentes). Em consequência, e após hesitação,
ele postou nas redes sociais, já em Novembro, seu apoio
aos coletes amarelos e sua intenção de desfilar
entre eles – mas "discretamente",
segundo disse.
O papel político
de Jean-Luc Mélenchon foi, nestes últimos anos,
eminentemente positivo para o conjunto da esquerda francesa. E
mesmo para além dela. Seus talentos reais de tribuno
souberam reunir as multidões, remotivá-las,
recolocá-las em movimento, dar nova esperança,
insuflar novamente a ideia de que uma mudança progressista
para o país é não só necessário
mas, sobretudo, possível.
Correctamente, e melhor do que ninguém,
ele formulou, sistematizou, radicalizou as críticas contra
"o sistema". Teve o mérito de falar novamente no
internacionalismo, especialmente em relação à
América Latina em luta. Nestes tempos particularmente
difíceis, é uma felicidade para a esquerda francesa
que um homem político como ele estivesse actuante.
Alguns não esquecem que Jean-Luc Mélenchon
foi, durante mais de 32 anos, membro (conselheiro geral, senador,
ministro!) de um Partido Socialista que traiu absolutamente tudo
quanto podia quanto às expectativas do povo de esquerda e
que, além disso, escravizou o país a uma União
Europeia ultraliberal, atlantista, antidemocrática,
destruidora das conquistas sociais e da soberania nacional. O
anticomunismo exacerbado de alguns de seus próximos
recorda que ele militou algum tempo na Organização
Comunista Internacional, grupo trotskista
de choque que doou à França homens tão
"notáveis" como Lionel Jospin – o
primeiro-ministro socialista que privatizou tanto quanto a
direita havia feito antes dele – ou Jean-Christophe
Cambadélis – ex-braço direito do "lamentado"
Dominique Strauss-Kahn. Como ele próprio gosta de repetir,
o modelo de J.-L. Mélenchon permanece sempre François
Mitterrand – antigo presidente da República
(condecorado em sua juventude com a Ordem
da Francisque pelo marechal Pétain), o qual foi o
introdutor do neoliberalismo em França, tal como uma
Margaret Thatcher ou um Ronald Reagan. Esta tarefa suja foi
cumprida em 1983 graças aos cuidados de um
primeiro-ministro, Laurent Fabius – ou seja, o "socialista"
tornado ministro das Relações Exteriores trinta
anos depois que queria ir à guerra contra a Síria!
E foi este "camarada Fabius" que J.L. Mélenchon
optou por apoiar como candidato do PS nas eleições
presidenciais de 2007... Como será compreendido, há
muito pouco risco de que o líder da França
Insubmissa tome a iniciativa de uma eventual ruptura
anti-capitalista. Ele que, em 1992, apelava a votar "sim"
ao Tratado de Maastricht porque acreditava nela perceber "um
começo da Europa dos cidadãos". Pode-se
enganar durante a vida, mas não quase
toda a vida.
Herdeiro de uma
longa história feita de resistências anti-fascistas
e anti-colonialistas heróicas, o Partido Comunista Francês
conserva bases militantes significativas e ainda administra, o
melhor que pode, várias municipalidades com perfis
sociológicos populares e complicados. Mas o apagamento da
sua direcção actual, amplamente reformista e com
estratégia demasiado estreitamente eleitoralista, conduziu
o PCF ao seguidismo mais raso e sem brilho, substituindo a luta
das classes pela "luta dos lugares". Outrora "na
vanguarda do proletariado", o PCF encontra-se agora, sob a
batuta dos seus dirigentes sem convicções, a
reboque de sociais-democratas que estão eles próprios
completamente desorientados e transformados na maior parte em
medíocres neoliberais. A miríade de minúsculos
partidos comunistas (que permanecem autênticos) que gravita
em torno do PCF – e contra a sua direcção –
está dilacerada entre os "por" e os "contra"
os coletes amarelos. O que equivale a dizer que as suas diversas
tomadas de posição sobre as mobilizações
em curso passam dramaticamente desapercebidas.
Os líderes
dos partidos trotsquistas – singularmente numerosos em
França – estão pelo seu lado amuralhados em
rivalidades e sectarismos que beiram o ridículo, que os
dividem profundamente e os afastam cada vez mais da perspectiva
de uma responsabilidade política qualquer, mesmo local. No
comment sobre sua ausência de
posições internacionalistas. E os ecologistas?
Conduzidos por fervorosos neoliberais, grosseiramente maquilhados
(tais como Nicolas Hulot, que foi ministro de Emmanuel Macron até
Setembro/2018, ou o indescritível Daniel Cohn-Bendit...),
eles nem sempre compreenderam que a causa mais fundamental das
devastações sofridas pelo ambiente se encontra no
próprio sistema capitalista. Ainda precisam de tempo para
isso. Finalmente, os chefes dos movimentos anarquistas permanecem
encerrados nas contradições entre um activismo útil
(aquando dos movimentos de ocupação da última
Primavera, nomeadamente) e um programa de acção
extraordinariamente confuso – para não dizer
contraproducente.
As bases destas diversas forças
progressistas estão portanto, por assim dizer, entregues a
si próprias. E convidadas pelas suas respectivas
lideranças a entreter entre si todas as desconfianças.
Os ódios. Isto é certamente totalmente absurdo e
suicida. Esta triste constatação é tanto
mais terrível quando segmentos inteiros da população
francesa pauperizada hoje não são mais
representados por todas estas organizações de
esquerda. Dentre outros: "novos pobres", como são
chamados, imensamente numerosos, batidos pelo desemprego e pela
precariedade; pequenos agricultores familiares crivados de
dívidas, isolados, desesperados; jovens dos arrabaldes,
sem objectivos, guetizados, abandonados por todos (excepto os
polícias, os traficantes de drogas e salafistas ricos...)
– ainda que estes jovens constituam muito provavelmente o
mais forte baluarte contra o racismo no país, e que já
se tenham levantado durante os motins de 2005-2007 –;
famílias saídas da imigração,
deixadas à margem da sociedade; gente sem domicílio
fixo, sem tecto e direito, "intocáveis" do nosso
país, desumanizados, espectros errantes com rostos
distorcidos pela miséria que se vêem por toda parte,
mas que já não olhamos... Tantos outros ainda. Um
lumpem-proletariado? São sobretudo milhões de
franceses cuja existência foi sacrificada no altar do
capitalismo moderno. Como os responsáveis dos nossos
partidos progressistas puderam desistir de se baterem também
por todos eles? O que aconteceu nas
nossas fileiras para que abdicarmos até este ponto?
Face
ao espectáculo lamentável apresentado por esta
esquerda-nebulosa pulverizada, a burguesia francesa jogo sobre
veludo. Por enquanto, pelo menos. A direita certamente implodiu.
Sua componente que chamaremos "centrista" – neste
caso, o Partido Socialista – vendeu sua alma desde há
mais de três décadas (e com a presidência de
F. Mitterrand) convertendo-se aos dogmas do neoliberalismo e
alinhando-se em posição de combate atrás dos
exércitos da NATO, como se viu. Quanto ao outro componente
da direita, que chamaremos de "tradicional" –
representado no momento por Les Républicains –, ela
liquidou (sob a presidência de Nicolas Sarkozy) seus
antigos ideais intervencionistas e nacionalistas para se
prosternar aos pés da alta finança globalizada e do
hegemonismo belicista dos EUA.
Da deliquescência
inevitável destes dois componentes desnaturados – a
"falsa esquerda" que era o PS do presidente François
Hollande e a "nova direita" sarkozista –, com
visões do mundo e programas intercambiáveis, surgiu
logicamente a sua síntese: a "ficção
Macron". Ou seja, o ideal da renovação
impossível da burguesia. Será que esta última
será constrangida a lançar contra o povo francês
em revolta, quando chegar o momento, tal como soube fazer alhures
um milhar de vezes no século XX, o cão de guarda do
capitalismo que para ela sempre foi a extrema-direita? Este
molosso que o poder burguês alimenta com xenofobia e
aversão, mantendo-o firmemente na trela.
O quadro
sombrio da esquerda francesa que aqui se desenha não
proporcionará amizades, smileys e
polegares para cima. Sem dúvida. Infelizmente, é
provável que seja compartilhado por muitos coletes
amarelos, assim como pelo grupo desavergonhado de camaradas que,
por nojo ou esgotamento, deixaram de militar para se dissolverem
na invisibilidade dos 50% de franceses que preferem se abster de
votar nas eleições. Este inventário não
pretende ofender, muito menos desmoralizar; ele recorda a
exigência de uma ultrapassagem das divisões e da
união dos progressistas ao serviço de um povo que
luta e mostra o caminho; visa compreender a raiva que hoje anima
este povo e as razões da sua rejeição dos
próprios partidos de esquerda. Isto, deixando bem claro
que as razões profundas da rebelião francesa não
se resumem, longe disso, apenas às insuficiências
das forças progressistas, por mais patentes que elas
sejam. O que é reclamado é uma mudança
completa de sistema. Na esquerda, contudo, ainda são raros
aquelas e aqueles que o dizem muito claramente: é uma
saída do capitalismo destruidor que se impõe.
Nestas condições, no fundo não há
nada de espantoso em que os coletes amarelos – e com eles
grandes porções das bases sindicais – lutem
sozinhos. E
frequentemente contra "os políticos",
infelizmente. Também não é surpresa –
uma vez que as forças de esquerda não têm o
menor programa de saída do capitalismo (nem mesmo do
euro!) – que as reivindicações dos coletes
amarelos sejam díspares, vão em todas as direcções:
rever em baixa todos os impostos, mas restabelecer o imposto
sobre a riqueza; diminuir as contribuições
patronais e aumentar a ajuda financeira do Estado às
empresas; mas desenvolver o Estado social; revalorizar as
pensões, mas uniformizar os diferentes sistemas de reforma
(como o governo quer!); suprimir o Senado (como se o problema
estivesse [apenas] nele!), mas contabilizar os votos brancos nas
eleições; criar assembleias de cidadãos que
decidam leis por democracia directa, mas permitir referendos por
iniciativa dos cidadãos; aumentar os salários, mas
o que quanto aos dos quadros superiores e dirigentes?; aumentar
as despesas sociais, mas reduzir o assistencialismo; adoptar uma
verdadeira política de protecção ambiental,
mas abandonar o imposto sobre o carbono; diminuir os preços
do gás e da electricidade, mas sem nacionalizar os
sectores de energia?, suprimir os ágios bancários,
mas deixar intacto o poder ditatorial das finanças?,
recuperar a soberania nacional, mas permanecer na União
Europeia?, etc. Esta bela desordem é ridicularizada pelos
"peritos" da burguesia, que se divertem a apontar
contradições demasiado gritantes. Mas o importante
está alhures: um ponto de não retorno parece ter
sido atingido; a inteligência popular saiu da masmorra ou
era mantida agrilhoada; um povo de coletes amarelos se ergueu;
uma palavra libertada, democrática, oh quanto salutar,
invadiu as telas da televisão, e exige que as regras do
jogo sejam alteradas. Finalmente.
Em 1789, a igualmente
óbvia dispersão das reivindicações
formuladas nos "Cadernos de queixas" ("Cahiers
de doléances") do campesinato
e dos sans-culotte que produziram a Revolução
Francesa não contribuiu de modo algum para travar a
inevitabilidade da mesma. Porque – coisa incongruente? –
nesta cólera que sobe e que se generaliza por toda parte
em França, chega-se aqui e ali a falar novamente de...
revolução. Em
rotundas bloqueadas, nos piquetes de greve, nas redes sociais...,
é mesmo de uma revolução
que se fala. Estamos muito longe,
certamente. Sem um líder de envergadura e sincero, sem
partido organizado, sem programa consequente e, dever-se-ia
acrescentar, sem teoria, a grande noite da revolução
certamente não é para amanhã.
"E
ao mesmo tempo" (conforme a fórmula
afectada de Emmanuel Macron), os tablóides populares ficam
maravilhados com o gosto requintado da "primeira-dama",
Brigitte, cujos vestidos Louis Vuitton, penteados da moda e
generosas recepções elísianas fazem "a
alegria de todos"... É como
estar de volta à epoca da rainha Maria Antonieta que, ao
ver o populacho parisiense aglomerado diante do Palácio de
Versalhes a gritar que não tinha mais pão, lança:
"que comam brioches!".
28/Dezembro/2018
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