Sob o véu da mundialização

Crise, imperialismo e guerra

por Rémy Herrera [*]

Em frente à Casa Branca. A Humanidade atravessa uma crise global, extremamente grave, sem dúvida uma das mais profundas de toda a história. Crise global quer dizer crise do sistema capitalista mundial — o qual se caracteriza por uma assimetria na acumulação do capital entre a existência de um mercado global, integrado em todas as suas dimensões (à excepção do trabalho), e a ausência de uma ordem política única à escala mundial, que seria mais que uma pluralidade de instâncias estatais regidas pelo direito internacional e/ou pela violência da relação de forças. [1] . Esta crise global é assinalável, prioritariamente, nas suas dimensões : económica, política ou político-militar e ideológica.

Crise económica do sistema capitalista mundial

A actual crise do sistema capitalista mundial é em primeiro lugar económica . Manifesta-se fundamentalmente pelos lucros retirados da exploração capitalista — em alta nos Estados Unidos e em numerosos grandes paises da triade desde os anos 80 — e pela submissão das economias à mundialização neoliberal — que não encontram colocação nos sectores produtivos em condições de rentabilidade suficientes e se vêm constrangidos a procurar novas saídas para evitar uma desvalorização [2] . As novas saídas encontradas por estas enormes massas de capitais flutuantes, de grande mobilidade, virados para a mais elevada rentabilidade imediata, indiferentes às necessidades do desenvolvimento e da necessidadde de satisfação das necessidades humanas, tomam a forma de aplicações financeiras .

Neste contexto, os grandes problemas económicos contemporâneos, como:
i) o défice da balança do comércio exterior dos Estados Unidos, que se acumula de forma ininterrupta desde o fim dos anos 70,
ii) o défice dos orçamentos publicos norte-americanos, de novo consideravelmente aprofundado depois do 11 de Setembro, absorvendo as poupanças mundiais,
iii) a dívida dos países do Sul, reforçando a sua dependência, entravando o seu crescimento económico, agravando as devastações causados pelo ajustamento estrutural,
iv) a desmonopolização e privatização de empresas estatais que, nos mais variados domínios, passam para o controle de alguns oligopólios internacionais
v) a mercantilização dos bens públicos, que afecta mesmo os patrimónios comuns da Humanidade, como a educação e a saúde …,
vi) desmantelamento progressivo da investigação pública, cada vez mais directamente submetida às leis do mercado (biotecnologias…),
vii) a destruição das conquistas sociais (as aposentações, por exemplo, ameaçadas pelos fundos de pensões, ou protecções sobre mercados de trabalho flexibilizados),
viii) a pressão à atractividade dos territórios nacionais a fim de atrair o capital estrangeiro, abrir zonas francas ou encorajar as deslocalizações para os países do Sul,
ix) acentuação das flutuações dos preços das matérias-primas, num fundo cuja tendência geral claramente para a baixa,
x) a volatilidade dos preços nos mercados imobiliários, cujas altas vertiginosas prosseguem até ao rebentamento das «  bolhas  »,
xi) a adopção de regimes de taxas de câmbio flexíveis, o que origina a instabilidade das economias regionais,
xii) a liberalização das transferências de capitais, que expõe as balanças de pagamentos a fluxos autónomos de saídas de capitais…

todos estes grandes problemas — os da mundialização neoliberal — integram em conjunto uma estratégia global, cuja finalidade é oferecer aos proprietários do capital a oportunidade para colocações financeiras diversificadas. Estes utilizam instrumentos tecnicamente sofisticados, nascidos da modernização dos mercados financeiros e dos sistemas monetários: a modernização dos mercados financeiros e dos sistemas de financiamento das economias, para realizar operações muito simples: operações de especulação .

Estes problemas, que fazem objectivamente pesar, em graus diversos e em condições diferentes, pesadas restrições nas escolhas de políticas económicas, dão do sistema mundial capitalista a nítida impressão de um caos , a imagem de uma marcha irracional . Esta percepção é confirmada, tanto pelo vazio de entidade política supra-estatal no plano mundial, que fizesse face aos mercados globais de capitais e de mercadorias, como pelo contraste existente entre a ideologia da « liberdade » e dos « direitos do Homem » e uma segmentação planetária dos mercados do trabalho, constrangendo os trabalhadores a uma quase imobilidade internacional. Esta e stratégia global da expansão do capital é no entanto, em vista da presente relação de forças capital/trabalho e da luta de classes contemporânea, inteiramente racional do ponto de vista do capital mundialmente dominante. E é racional, antes de mais e sobretudo por ser vital para a fracção actualmente hegemónica desse capital. É a condição da manutenção do poder mundial da finança .

Do ponto de vista das classes populares, o caso muda de figura: o sistema, sob o comando da finança, intra e internacionalmente cada vez mais polarizado, tornou-se inaceitável . Inflige aos povos do mundo insuportáveis sofrimentos. São inumeráveis as suas vítimas entre os mais humildes e vulneráveis, e as devastações humanas e sociais produzidas pela sua lógica são de tal amplitude que será supérfluo traçar aqui o quadro [3] . Os economistas dominantes, cujos modelos calculam quase até às décimas os benefícios do neoliberalismo em unidades de utilidade (fictícia) e em taxa de crescimento de longo prazo (a 100 anos) são incapazes de contabilizar os prejuízos em número de mortos.

O sistema capitalista mundial funciona agora, portanto, cada vez mais abertamente pela violência , a ponto de originar um verdadeiro «ge nocídio silencioso » [4] . Este sistema, em que o capital dispõe de direitos que são recusados ao trabalho (o direito de circulação, por exemplo), em que os muros do Río Grande e de Schengen, mortíferos , substituíram o de Berlim, mantêm-se, em última análise, apenas pela força . No Sul, povos inteiros são confinados em terras devastadas por mais de dois decénios de neoliberalismo, condenados ao subdesenvolvimento e à exploração mais brutal — com excepção de indivíduos altamente qualificados, engolidos pelo brain drain , e outros, sem qualificação, utilizados como carne para canhão pela U.S. Army . A Leste, o capitalismo selvagem conseguiu liquidar o que de socialmente válido o socialismo real tinha edificado, fazendo cair a esperança de vida da população, dissimulando a origem social do fenómeno — mas sem Goulag, o que não pode senão satisfazer os experts da «  barbárie moderna  » (o comunismo). No Norte, os trabalhadores estrangeiros ilegais são criminalizados e expulsos em condições que já não preocupam apenas os militantes dos direitos humanos.

A mundialização capitalista neoliberal não é guiada por uma «  mão invisível  », mas por um «  punho invisível  » [5] .

O verdadeiro rosto da mundialização : imperialismo e guerra

Este punho invisível chama-se exército dos Estados Unidos , e o rosto da mundialização que ele revela é menos o de um império do que aquele, muito mais conhecido, do imperialismo . Hegemonista do sistema mundial, golpeado nos símbolos do seu exército e da sua finança em Setembro de 2001, os Estados Unidos deixaram hoje cair a máscara: empenharam-se numa lógica mundializada de guerras de agressão que decidem sózinhos. Por agora circunscritos a certos elos mais frágeis da resistência anti-imperialista (o mundo árabe mussulmano  : Afganistão, Iraque, antes a Somália), estas guerras caracterizam-se por forças em presença extremamente desequilibradas: as do agredido são sub-equipadas, as do agressor ultra-capitalisticas .

Põe-se então a questão da possibilidade (da necessidade  ?) para a hegemonia norte-americana de redinamizar a acumulação no centro do sistema mundial capitalista através da guerra . As destruições de capital (constante e variável) provocadas pelo imperialismo são consideráveis para os países atacados, mas de qualquer modo «insuficientes» para impulsionar um novo e largo ciclo longo de acumulação capitalista nos Estados Unidos — como aconteceu no fim da Segunda Guerra Mundial. Vão, de resto, neste sentido as queixas formuladas por certos empresários ocidentais (sobretudo em The Economist ) [6] aquando da guerra contra a Jugoslávia: as destruições de capital no Kosovo e na Sérvia foram, segundo eles, demasiado limitadas para poder oferecer aos capitalistas os mercados da reconstrucção (energia, infraestruturas…) que tanto esperavam ! Do mesmo modo os efeitos de encomenda efectiva associados a estes conflitos (bens de consumo das tropas mobilizadas e apoios logísticos…) são apenas de curto prazo, e as incidências tecnológicas, no essencial, apenas no sector militar (comunicações, bens de equipamento…).

Estas guerras imperialistas mostrar-se-íam « insuficientes » para relançar um ciclo longo de expansão do capital… a menos que se tornassem permanentes . Para além das suas ruidosas e esmagadoras «  vitórias  » militares, os Estados Unidos mostram-se incapazes de concluir estas guerras, que prosseguem a mais baixa intensidade por actos espontâneos de resistência à ocupação. Mas não é de excluir que tais guerras se generalizem—quem sobre viver verá!—, dada a agressividade do establishment norte-americano, acolitado por uma extrema direita toda poderosa. São lançadas ameaças contra a Síria, a Coreia do Norte, o Irão… As revoluções socialista em Cuba e bolivariana na Venezuela estão mais do que nunca na linha de mira. A própria China se sente visada, quem sabe se o sonho americano pós Guerra Fria não é o de a desmantelar também, como ontem a União Soviética, para melhor a controlar.

Estas ameaças dirigem-se igualmente, em regiões sob controle norte-americano (aínda que parcial), a movimentos revolucionários —verdadeiros povos em armas em certos casos—, diabolisados, caluniados, qualificados de «  terroristas  ». No primeiro lugar encontram-se as guerrilhas colombianas (FARC-EP e ELN), em luta total contra uma das piores oligarquias do mundo, apoiada por milícias paramilitares néo-fascistas responsáveis pela grande maioría dos crimes perpetrados naquele país, e fortemente apoiada pelos Estados Unidos, através de uma ajuda militar, tecnológica e económica considerável (Plano Colombia) [7] .

Os Estados Unidos, que atravessam uma conjuntura de crescimento frouxo (e com eles o resto da tríade e o conjunto da economia mundial, à excepção da China e duma parte da Ásia), disporão de recursos para financiar estas novas guerras ?

Três observações sobre este ponto.

Convém antes de mais, não subestimar a capacidade dos Estados Unidos para drenar para o seu território o excedente da renda em pétrodolares, gerada pela alta do preço do petróleo ocorrida no decurso dos meses que precederam a agressão ao Iraque [8] . Esta capacidade decorre directamente da rede planetária de bases militares que estabeleceram, consideravelmente reforçada no último decénio, da península arábica à Ásia Central. Esta presença militar permite-lhes pressionar os regimes dos países árabes produtores de petróleo, que lhes devem a sua segurança exterior, mas também a manutenção no poder das suas ditaduras, apesar de uma impopularidade crescente, a ceder uma parte do excedente, de modo a pagar a despesa da guerra do Iraque — como aconteceu em 1991, durante a primeira Guerra do Golfo, aínda que em circunstâncias muito diversas.

Convém também não esquecer que, se o euro está temporariamente forte contra o dólar no mercado de câmbios, na perspectiva de alargamento da União Europeia, e também pelo facto de numerosos países terem optado por cotar o petróleo em euros (Iraque final de 2000, Irão meados de 2002, Coreia do Norte fim de 2002), o dólar norte-americano continua a ser, até nova ordem, a divisa-chave internacional — em parte porque os Estados Unidos continuam a ser os únicos líderes do jogo militar à escala global.

Enfim, é precisamente este papel chave desempenhado pelo dólar, apoiado pelo mais poderoso exército da Terra, que permite aos Estados Unidos, sobre endividados, em crise económica, impôr de facto ao mundo os seus défices gêmeos e fazer suportar a maior parte desse encargo aos seus parceiros da tríade e, sobretudo, aos países do Sul.

Crise político-militar do sistema capitalista mundial

Isto equivale a dizer como estão embricadas as dimenções económicas e político-militares da crise do sistema capitalista mundial. Multidimensional, assente num gigantesco arsenal de armas de destruição maciça, a hegemonia norte-americana afirma-se em toda a sua arrogância. Entrou, no entanto, claramente em crise e encontra-se ameaçada pela evolução da correlação de forças mundial.

A fragilização da posição dos Estados Unidos não provém substancialmente do aumento do poderio de rivais. Nem a Europa nem o Japão pretendem, ou não estão em posição de pretender, a liderença mundial. A Europa não existe (aínda) como força política unida. As pressões norte-americanas, particularmente fortes nas semanas que precederam a guerra do Iraque, fizeram-na aliás explodir, dividindo-a, para além das tradicionais clivagenas esquerda direita, entre alinhamento servil com Washington (horizonte inultrapassável dos actuais governos britânico, espanhol, italiano, português…) e reivindicação de um lugar na nova partilha do mundo (ambição da França e da Alemanha, apoiadas pela Rússia). A recente multiplicação das intervenções militares francesas na África (República Centro-Africana, Costa do Marfim, República Democrática do Congo…) lembra-nos, todavia, que um imperialismo pode esconder outro. Economicamente, a Europa continua na expectativa: a Grã-Bretanha aínda não integrou a zona euro, o impacto da absorção-subordinação da Europa de Leste é aínda incerto — em razão da sua vassalagem aos Estados Unidos. O Japão, mergulhado numa crise persistente, reduz a sua óptica à escala regional e inscreve prudentemente o seu futuro na esteira de Washington.

Um dos maiores factores de fragilização da hegemonia dos Estados Unidos vem antes de tudo do seu isolamento político. Relativo e sem dúvida passageiro, este real isolamento é devido à negação do direito internacional e ao desprezo pelas Nações Unidas de que deram prova, ao cinismo e à agressividade que demonstram na edificação do seu projecto imperialista, mas aínda à própria barbárie deste projecto. Trata-se, com efeito, de desenhar os contornos dum apartheid mundial , tipicamente no espírito da extrema direita no poder na Casa Branca [9] .

Uma questão não pode já passar em branco : a de saber se não nos encontraremos, longe de um passado que se crê enterrado, num contexto histórico diferente, face a uma fascização do imperialismo norte-americano .

Esta questão, terrível, torna necessária, sem qualquer dúvida, a sua teorização —que deve ser objecto de um tratamento especial, aprofundado, — e a maior prudência e rigor de análise. Limitamo-nos aqui a constatar que alguns dos traços do fascismo «clássico» são visíveis nas tendências actuais do imperialismo norte-americano:

i) a sua violência consubstancial : interna, social, patológica a bem dizer, mas igualmente externa, sistemática e programada, tornada modo de estar no mundo dos Estados-Unidos (se bem que este seja talvez o carácter distintivo deste país desde a sua origem) [10]  ;
ii) a violação do direit o: do Estado de Direito, i.e. os direitos dos seus cidadãos (da «eleição » de Bush à vaga de repressão no interior dos Estados Unidos), como do direito internacional, dos direitos dos outros povos (do bloqueio a Cuba à guerra contra o povo iraquiano);
iii) a crença numa civilização, ou melhor numa nacionalidade, superior , que se auto-proclama habilitada a dirigir o mundo, e —elemento chave do nazismo, doravante integrada no coração do projecto de apartheid mundial— regenerada pelo sangue , na guerra.
iv) Dir-se-á: o fascismo é o Estado totalitário . Mas que vemos? Que o dogma neoliberal do « menos Estado » é aplicado por toda a parte, excepto nos Estados Unidos, onde o Estado militariza ao exagero a economia, onde uma ficção de democracia dissimula mal a amplitude da sua falência, onde o bipartidismo dos milionários se tornou no partido único do capital .
v) Dir-se-á ainda, justamente: o fascismo, é acima de tudo o genocídio . Como não ver que o efeito da polarização do sistema mundial capitalista, opondo um Sul recompradorisado, pilhado, esmagado pela miséria, a um Norte super-armado, barricado nas suas fronteiras, enquistado nas sua riquezas, é o « genocídio silencioso » dos mais pobres ?

A extrema direita está no poder nos Estados Unidos, não o esqueçamos, e o seu poder é mundial. Tenhamos em conta esta ameaça de ditadura militar planetária fascizante, muito seriamente, pois tentará sempre reforçar-se, à medida que se reforçarem os movimentos de resistência progressista do mundo inteiro. De resto, é esta viragem fascizante do imperialismo que explica em parte as recentes contradições aparecidas na direcção do sistema. Estas abrem, ao mesmo tempo que uma era de repressão em larga escala sob o pretexto de «  anti-terrorismo  », novas margens de manobra à acção das forças progressistas. No seguimento da tragédia do 11 de Setembro, os fazedores de opinião da imprensa de mercado recitavam-nos o refrão do «  todos Americanos  » ; hoje em dia, muitos são os que tomaram consciência do que é capaz o imperialismo americano para quebrar os que lhe resistem. A resistência das forças populares, que se opoem tanto às guerras imperialistas como às próprias bases do sistema mundial capitalista — duas faces duma mesma realidade : a mundialização financiarizada —, ganha terreno, em todo o mundo, lenta, mas seguramente. [11] .

As guerras imperialistas e as suas causas sistémicas

Quais são as causas profundas destas guerras imperialistas, muito especialmente da recentemente lançada contra o povo iraquiano? A resposta a esta questão deve ser procurada fora da propaganda mediático-governamental anglo-americana do ante-guerra, falsamente obnubilada pela ameaça de posse de armas de destruição maciça ou de ligações com o terrorismo islâmico, que não passaram de mentiras .

Convirá, de qualquer modo, não nos ficarmos pelas aparências. Com efeito, o argumento avançado, quase sistemáticamente, para explicar a motivação dos Estados Unidos e do seu aliado britânico para levar a guerra a solo iraquiano, é o petróleo — o controle da sua produção e do seu preço, dos canais de aprovisionamento, das suas reservas. Isto é uma evidência incontornável. Mas as autoridades norte-americanas embaraçam-se pouco com longos discursos e volumosos relatórios, e aínda menos com o direito, com as Nações Unidas e com uma opinião pública internacional agredida pelos médias, para dissimular a sua vontade, de resto conhecida de todos, de controle global dos recursos energéticos.

Esta evidência não deve contudo fazer-nos perder de vista uma realidade aínda mais decisiva : através destas guerras, está em jogo, não apenas a manutenção da hegemonia norte-americana sobre o sistema capitalista mundial, mas também e sobretudo a liderança da fracção da classe dominante actualmente hegemónica — a finança , tomada no seu conjunto —, que torna estas guerras necessárias .

A história não se repete, como sabemos. Lembremo-nos, no entanto, da viragem imperialista e da transformação do capitalismo que produziu no fim do século XIX o ascenso da finança. Há pouco mais de um século, em 1898, a intervenção militar dos Estados Unidos em Cuba — sob o pretexto já nessa altura, de a «  libertar  » — e a imposição na ilha de um regime neo-colonial (ditatorial) se explicaria à evidência pelo espírito guerreiro de alguns homens políticos e de militares norte-americanos, e decerto também pela avidez de lucro dum ou doutro capitalista americano (no açúcar, nas minas, nos caminhos de ferro…), mas era, além de tudo, o produto do ascenso do capital financeiro dos Estados Unidos, o próprio efeito do seu ascenso como uma nova fracção da classe dominante, e como a condição de expansão para o exterior da alta finança (a dos Morgan, Rockefeller e companhia) que começava então a dominar os meios de negócios nos Estados Unidos, e depressa se lançaria à conquista do mundo [12] .

Como as coisas mudaram desde essa altura, dir-se-á. É no entanto uma realidade que o domínio da finança, dos maiores proprietários do capital mundialmente dominante, está de volta. E sabem-no bem os povos que sofrem desde há mais de vinte anos as consequências cada vez mais devastadoras desse regresso. O que se trata, a nosso ver, de distinguir, é que são as classes dominantes colocadas actualmente sob a hegemonia da alta finança — e não apenas G. W. Bush, D. Cheney, e a sua clique de falcões fanáticos, de magnatas do petróleo…— que não podem esperar manter o seu poder, com o sistema mundial de exploração e de opressão que lhe está na base, com as relações capitalistas de produção que o constituem, senão pela violência . A forma visível dessa violência, reverso daquela, invisível , das relações sociais capitalistas, é o terrorismo de Estado dos Estados Unidos, em guerra contra todos os que recusam expressamente submeter-se ao seu diktat.

Temos aqui, sem dúvida, uma das razões susceptíveis de explicar as aparentes divisões surgidas entre os países ricos, que estiveram na origem das contradições assinaladas — divisões que não puderam ser dissimuladas, nem na ONU nem, novidade, na NATO —, não provocaram nenhuma ruptura no seio da tríade. Isto porque as classes dominantes têm uma necessidade vital desta aliança interna do sistema inter-estatal que as suporta, para conter as múltiplas resistências à polarização que a sua expansão estruturalmente provoca. É este capital financiarizado mundialmente dominante que decidiu entrar em guerra contra todos os que se lhe opuserem e procurarem conduzir um projecto de desenvolvimento autónomo, seja ele de que natureza for.

Não é menos verdade que o futuro depende também de nós , progressistas de todo o mundo, nós que fomos dezenas de milhões a manifestar-nos por todo o mundo contra a guerra, em 15 de Fevereiro de 2003 e nos dias seguintes. A guerra de agressão imperialista contra o povo iraquiano não pôde ser evitada, mas a mobilização contra a guerra — ainda que desorganizada e confusa então — atingiu, massivamente, um nível ainda há pouco inimaginável, e jamais atingido anteriormente [13] .

Crise ideológica do sistema capitalista mundial

A actual crise do sistema capitalista mundial é também uma crise ideológica. Uma das suas consequências mais insuportáveis é a tentativa de manipulação e de neutralização das consciências, numa palavra, a guerra mediático-ideológica através de incessantes bombardeamentos de propaganda e de desinformação. Os fazedores de opinião da intelligentsia dominante descreveram-nos o quadro do «  triunfo do capitalismo  » do início dos anos 90 como sendo «  o fim da história  ». Pouco tempo foi preciso para que a mundialização capitalista, pretensamente « sem alternativa », conduzisse ao afundamento em cadeia de muitos dos seus aparelhos financeiros, que arrastariam na sua queda o mito da infalibilidade de um sistema mundial de mercados desregulamentados que era suposto trazer equilíbrio e harmonia, crescimento económico e bem-estar social.

Desde 1997, que o «  milagre asiático  » se dissipou e cedeu lugar à crise, profunda, que desviou a trajectória de desenvolvimento dos países emergentes afectados tornando-os aínda mais dependentes. A crise asiática, pela avalanche de falências que acarretou, foi também a ocasião, para os Estados Unidos, de deitar a mão, em apenas alguns meses, aos aparelhos produtivos que estas nações, em alguns casos, haviam levado decénios a erguer. Sob o choque desta crise, a Coreia do Sul, perdeu a segurança do emprego (o seu mercado de trabalho continua a ser dual, mas a partir de agora totalmente flexibilizado) e um certo controle nacional da estrutura de propriedade do seu capital. Pouco depois, a Rússia foi igualmente atingida. A pilhagem em grande escala das suas poderosas indústrias, levada a cabo pelo capital mundialmente dominante e seus « intermediários » locais, foi bem sucedida. Depois foi a vez do Brasil, primeira potência económica do continente latino-americano. Poucos meses depois, mergulhou a Argentina no caos, sob o efeito das estratégias combinadas da gestão neoliberal do FMI e da captação da renda financeira pela élite (anti-)nacional. Neste país, como na Rússia e na Coreia do Sul, a crise empobreceu a população, à excepção do seu decil superior, o mais afortunado, que continua a enriquecer apesar da crise . Recentemente, a Costa do Marfim afundou-se, fazendo tocar a finados pelo modelo africano de crescimento, extravertido, desestatizado, neo-colonial… sob ocupação militar estrangeira.

Em todos os continentes está feita a prova da falência total do neoliberalismo. Quase em todo o lado, no entanto, para lá destes fracassos retumbantes, repetidos, provados, o neoliberalismo continua a ser imposto aos povos, pela força pura e simples . A ideologia da « liberdade » e dos « direitos do Homem » não lhe vale de nada : anti-popular, anti-democrático, criminoso , o neoliberalismo impõe unilateralmente aos mais fracos a submissão à lógica de um sistema capitalista mundial, que apenas funciona em benefício dos mais fortes.

Tudo contribuia, neste contexto conturbado, para reintroduzir a ideia de «  regulação  » no discurso ideológico dominante. Tratou-se subitamente de «  salvar o capitalismo do integrismo dos mercados  » ; e a condição suficiente seria a simples «  regulação dos fluxos financeiros  » [14]

No campo da teoria, os economistas soft do mainstream néo-clássico fizeram flores. Autores na moda, como North, Stiglitz, Sen, Krugman, Romer… cobriram-se de glória — e alguns, obtiveram até a recompensa de um Nobel. A era neoliberal produziu uma ciência económica à sua imagem — sinistrada. Tem os economistas que merece. A assim chamada « renovação teórica » produzida, revelou-se perfeitamente estéril, incapaz de dar o mínimo resultado analítico autenticamente inovador e de produzir conhecimentos científicos de qualquer utilidade para a sociedade. O objectivo visado por todos estes autores é o mesmo : preservar o capitalismo dos perigos do ultra-liberalismo [15] .

No campo da prática, por detrás da retórica do Banco Mundial sobre o «  saber ao serviço do desenvolvimento » ou a «  luta contra a pobreza  » perfilam-se programas concretos de privatização dos muito lucrativos sectores da informação e das telecomunicações, da investigação e da formação, e mesmo da ajuda humanitária —instrumentalizando de passagem numerosas ONG. O objectivo é sempre o mesmo: asseguar aos oligopólios do capital financeiro mundialmente dominante um controle total das regras do jogo.

Entregue a si mesma, a lógica de expansão do capital não garante qualquer desenvolvimento. A realidade do funcionamento do capitalismo não está na economia de mercado, mas no limite imposto à concorrência pela monopolização da propriedade privada. Sob o impulso de uma relação de forças tornada muito desfavorável ao trabalho e de um poder da finança assente na formação de alianças de classe anti-populares, o próprio Estado foi voltado contra o serviço público . A ideologia neoliberal, pregando de forma artificial a «  livre concorrência  » e a «  livre-troca  », está perfeitamente em crise.

Actualidade do marxismo, da revolução e duma transformação radical

A violência do projecto imperialista, imanente à expansão do capital financiarizado , sem dúvida reforçará as resistências e as lutas sociais de uns três quartos da humanidade, esmagados pelo sistema capitalista mundial: tanto as classes populares do centro do capitalismo como as dos povos da periferia, às quais se juntarão numerosos movimentos progressistas com as finalidades mais diversas (ecologia, feminismo, identidade indígena…). Estes são no seu conjunto, os verdadeiros sujeitos da história, os únicos susceptíveis de por em cheque este projecto imperialista e de formular uma alternativa de progresso.

É no entanto forçoso admitir que a pressão do pensamento único ( i.e. a ideologia dominante) é capaz de manter, através de subtil e eficaz censura, a confusão nas fileiras progressistas. Por outro lado, na sua grande maioria, partidos operários, com longas tradições de luta, abandonaram o marxismo e renunciaram aos programas revolucionários enquanto alternativas respectivamente teórica e prática ao capitalismo, para se virarem para uma social-democracia que, no poder, se contenta em gerir o neoliberalismo e situar qualquer mudança sempre no interior do sistema. Daqui resulta um afastamento das forças progressistas, nomeadamente dos movimentos sociais e dos forums altermundialistas, relativamente aos utensílios semânticos, conceptuais e teóricos que lhe são próprios, mas também uma perda de autonomia e de radicalidade das críticas formuladas contra o sistema capitalista mundial e a sua hegemonia imperialista. Ora, o «  outro mundo possível  » ao qual todos aspiramos, não emancipará a humanidade se estas transformações não começarem por destruir as próprias bases do capitalismo, ou seja, as da exploração (e da especulação).

Nestas condições, pode o marxismo contribuir para fundar um projecto moderno de emancipação? Seguramente que sim, na condição que a sua renovação conduza não à capitulação ou à adopção de formas de acção próprias do capitalismo mas, pelo contrário, ao reforço dos ideais revolucionários. A referência a Marx continua a ser central; ao Marx que efectua a ruptura do materialismo histórico, mas também o que chamarei a « segunda ruptura » (sempre em relação a Hegel), acontecida aquando das trocas epistolares com os revolutionários russos, entre 1877 (Mikhaïlovski) e 1881 (Vera Zassoulitch). Através desta «segunda ruptura» Marx rompeu com a visão de um desenvolvimento histórico segundo uma linha universal, indo do mundo oriental à civilização ocidental e rejeitou toda a «  teoria historico-filosófica da marcha geral fatalmente imposta a todos os povos  », para finalmente se manter afastado do determinismo e tolerar trajectórias históricas de formações sociais diferenciadas, não lineares, articulando relações de dominação de nações com relações de exploração de classe.

Renovar o marxismo, voltar aos ideais revolucionários, significa atacar frontalmente tanto a manutenção do sistema capitalista, como a da hegemonia norte-americana, para unir as forças progressistas contra o inimigo comum. Em resumo : fazer convergir lutas anti-capitalistas e anti-imperialistas.

Porque continua a revolução na ordem do dia — a Sul sem dúvida, e talvez mesmo a Norte? Porque as mesmas causas que determinaram no passado as grandes revoluções — aquelas que, radicais, se anunciavam como impossibilidades absolutas — não desapareceram. De modo nenhum no Sul, nem mesmo no Norte, onde as desigualdades e injustiças se acumulam continuamente. A revolução continua actual, também porque a luta organizada dos explorados contra o sistema capitalista e a ameaça que o seu imperialismo norte-americano em vias de fascização sobre aqueles faz pesar, se apresenta, mais que nunca, como uma exigência histórica.

Recusemos fazer das realidades de ontem, agora desaparecidas, as utopias capitalistas de amanhã: capitalismo nacional-social no Norte ( Welfare State ), capitalismo periférico no Sul (desenvolvimentismo nacional-burguês dependente), capitalismo sem capitalistas a Leste (estatismo despótico e apofático )… Elaboremos o nosso próprio projecto social alternativo, colocando a humanidade no seu centro — mesmo que apenas seja «  aproximativamente coerente  », como dizia o Che. Desenvolvamos as nossas propostas alternativas, teóricas e práticas, articuladas nas suas dimensões nacionais e internacionais, assentes sobre as lutas anti-sistémicas que apenas os explorados do sistema mundial poderão conduzir para impor ao capital limitações estranhas à sua lógica de lucro e chegar a uma transformação radical do mundo: bloqueio das operações financeiras de especulação, questionamento dos fundamentos do FMI e do Banco Mundial, desmembramento das regras da OMC e dos privilégios dos oligopólios transnacionais, estabilização das trocas a nível regional, fiscalidade de alcance mundial, reorientação prioritária do investimento para as necessidades sociais e as actividades produtivas, modificação das regras que determinam a distribuição do rendimento e da repartição do consumo, transformação da ONU numa organização democrática conciliando universalismo e direitos socio-políticos dos indivíduos e dos povos, desenvolvimento do internacionalismo e da solidariedade Norte-Sul, desmilitarização do planeta, recolocar em causa a propriedade privada dos meios de produção, edificação de condições de direcção pelos trabalhadores do seu desenvolvimento social... É chegada a hora de voltar a falar de socialismo.

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  • Herrera, R. (2003b), « L'État contre le service public », Actuel Marx , n°. 34, à paraître, Paris.
  • Labica, G. (2003), Contribution au colloque Marx Siglo XXI , mai, La Havane.
  • UNESCO (2001), « Le Sous-développement, ce “ génocide silencieux ” » Le Courrier de l'UNESCO , sur internet, décembre.
Notas

1- Ver : R. Herrera (2001).
2- Ver : S. Amin et R. Herrera (2000).
3- Ver, por exemplo : N. Chomsky (2001).
4- UNESCO (2001).
5- Opinião de Thomas Friedman no New York Times de 28 de Março de 1999.
6- Ver : P. Nakatani (2003) em www.rebelion.org .
7- Sobre a Colômbia, ler os artigos de M. U. Rodrigues em : resistir.info e www.rebelion.org .
8- Ver : W. Clark (2003).
9- Ver : S. Amin (2003).
10- Ver : W. Blum (2002).
11- Ver : S. Amin e F. Houtart (2002) e também os artigos de : J. Petras em www.rebelion.org .
12- Ver : R. Herrera (2003a).
13- Ver : G. Labica (2003).
14- Ler aqui os artigos de vulgarização respectivos de Soros e Stiglitz.
15- Ver : R. Herrera (2003b).

[*] Economista, investigador no CNRS, UMR 8595 Matisse, Université de Paris 1 Panthéon – Sorbonne. Email : herrera1@univ-paris1.fr . Tradução de Carlos Coutinho.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
11/Ago/03