Sob o véu da mundialização
Crise, imperialismo e guerra
A Humanidade atravessa uma
crise global,
extremamente grave, sem dúvida uma das mais profundas de toda a
história. Crise global quer dizer crise do
sistema capitalista mundial
o qual se caracteriza por uma assimetria na acumulação do
capital entre a existência de um mercado global, integrado em todas as
suas dimensões (à excepção do trabalho), e a
ausência de uma ordem política única à escala
mundial, que seria mais que uma pluralidade de instâncias estatais
regidas pelo direito internacional e/ou pela violência da
relação de forças.
[1]
. Esta crise global é assinalável, prioritariamente, nas suas
dimensões : económica, política ou
político-militar e ideológica.
Crise económica do sistema capitalista mundial
A actual crise do sistema capitalista mundial é em primeiro lugar
económica
. Manifesta-se fundamentalmente pelos lucros retirados da
exploração capitalista em alta nos Estados Unidos e em
numerosos grandes paises da triade desde os anos 80 e pela
submissão das
economias à mundialização neoliberal que não
encontram colocação nos sectores produtivos em
condições de rentabilidade suficientes e se vêm
constrangidos a procurar novas saídas para evitar uma
desvalorização
[2]
. As novas saídas encontradas por estas enormes massas de capitais
flutuantes, de grande mobilidade, virados para a mais elevada rentabilidade
imediata, indiferentes às necessidades do desenvolvimento e da
necessidadde de satisfação das necessidades humanas, tomam a
forma de aplicações
financeiras
.
Neste contexto, os grandes problemas económicos contemporâneos,
como:
i)
o défice da balança do comércio exterior dos Estados
Unidos, que se acumula de forma ininterrupta desde o fim dos anos 70,
ii)
o défice dos orçamentos publicos norte-americanos, de novo
consideravelmente aprofundado depois do 11 de Setembro, absorvendo as
poupanças mundiais,
iii)
a dívida dos países do Sul, reforçando a sua
dependência, entravando o seu crescimento económico, agravando as
devastações causados pelo ajustamento estrutural,
iv)
a desmonopolização e privatização de empresas
estatais que, nos mais variados domínios, passam para o controle de
alguns oligopólios internacionais
v)
a mercantilização dos bens públicos, que afecta mesmo os
patrimónios comuns da Humanidade, como a educação e a
saúde
,
vi)
desmantelamento progressivo da investigação pública, cada
vez mais directamente submetida às leis do mercado
(biotecnologias
),
vii)
a destruição das conquistas sociais (as
aposentações, por exemplo, ameaçadas pelos fundos de
pensões, ou protecções sobre mercados de trabalho
flexibilizados),
viii)
a pressão à atractividade dos territórios nacionais a fim
de atrair o capital estrangeiro, abrir zonas francas ou encorajar as
deslocalizações para os países do Sul,
ix)
acentuação das flutuações dos preços das
matérias-primas, num fundo cuja tendência geral claramente para a
baixa,
x)
a volatilidade dos preços nos mercados imobiliários, cujas altas
vertiginosas prosseguem até ao rebentamento das «
bolhas
»,
xi)
a adopção de regimes de taxas de câmbio flexíveis,
o que origina a instabilidade das economias regionais,
xii)
a liberalização das transferências de capitais, que
expõe as balanças de pagamentos a fluxos autónomos de
saídas de capitais
todos estes grandes problemas os da mundialização
neoliberal integram em conjunto uma
estratégia global,
cuja finalidade é oferecer aos
proprietários do capital
a oportunidade para colocações financeiras diversificadas. Estes
utilizam instrumentos tecnicamente sofisticados, nascidos da
modernização
dos mercados financeiros e dos sistemas
monetários: a modernização dos mercados financeiros e dos
sistemas de financiamento das economias, para realizar operações
muito simples: operações de
especulação
.
Estes problemas, que fazem objectivamente pesar, em graus diversos e em
condições diferentes, pesadas restrições nas
escolhas de políticas económicas, dão do sistema mundial
capitalista a nítida impressão de um
caos
, a imagem de uma marcha
irracional
. Esta percepção é confirmada, tanto pelo
vazio
de entidade política supra-estatal no plano mundial, que fizesse face
aos mercados globais de capitais e de mercadorias, como pelo contraste
existente entre a ideologia da « liberdade » e dos
« direitos do Homem » e uma segmentação
planetária dos mercados do trabalho, constrangendo os trabalhadores a
uma quase imobilidade internacional. Esta e
stratégia global
da expansão do capital é no entanto, em vista da presente
relação de forças capital/trabalho e da luta de classes
contemporânea, inteiramente
racional
do ponto de vista do capital mundialmente dominante. E é racional,
antes de mais e sobretudo por ser
vital
para a fracção actualmente hegemónica desse capital.
É a condição da manutenção do poder mundial
da
finança
.
Do ponto de vista das classes populares, o caso muda de figura: o sistema, sob
o comando da finança, intra e internacionalmente cada vez mais
polarizado, tornou-se
inaceitável
. Inflige aos povos do mundo insuportáveis sofrimentos. São
inumeráveis as suas vítimas entre os mais humildes e
vulneráveis, e as devastações humanas e sociais produzidas
pela sua lógica são de tal amplitude que será
supérfluo traçar aqui o quadro
[3]
. Os economistas dominantes, cujos modelos calculam quase até às
décimas os benefícios do neoliberalismo em unidades de utilidade
(fictícia) e em taxa de crescimento de longo prazo (a 100 anos)
são incapazes de contabilizar os prejuízos em número de
mortos.
O sistema capitalista mundial funciona agora, portanto, cada vez mais
abertamente
pela violência
, a ponto de originar um verdadeiro «ge
nocídio silencioso
»
[4]
. Este sistema, em que o capital dispõe de direitos que são
recusados ao trabalho (o direito de circulação, por exemplo), em
que os muros do Río Grande e de Schengen,
mortíferos
, substituíram o de Berlim, mantêm-se, em última
análise, apenas
pela força
. No Sul, povos inteiros são confinados em terras devastadas por mais de
dois decénios de neoliberalismo, condenados ao subdesenvolvimento e
à exploração mais brutal com excepção
de indivíduos altamente qualificados, engolidos pelo
brain drain
, e outros, sem qualificação, utilizados como carne para
canhão pela
U.S. Army
. A Leste, o capitalismo selvagem conseguiu liquidar o que de socialmente
válido o socialismo real tinha edificado, fazendo cair a
esperança de vida da população, dissimulando a origem
social do fenómeno mas sem Goulag, o que não pode
senão satisfazer os experts da «
barbárie moderna
» (o comunismo). No Norte, os trabalhadores estrangeiros ilegais
são criminalizados e expulsos em condições que já
não preocupam apenas os militantes dos direitos humanos.
A mundialização capitalista neoliberal não é guiada
por uma «
mão invisível
», mas por um «
punho invisível
»
[5]
.
O verdadeiro rosto da mundialização : imperialismo e guerra
Este
punho invisível
chama-se
exército dos Estados Unidos
, e o rosto da mundialização que ele revela é menos o de
um império do que aquele, muito mais conhecido, do
imperialismo
. Hegemonista do sistema mundial, golpeado nos símbolos do seu
exército e da sua finança em Setembro de 2001, os Estados Unidos
deixaram hoje cair a máscara: empenharam-se numa lógica
mundializada de
guerras de agressão
que decidem sózinhos. Por agora circunscritos a certos elos mais
frágeis da resistência anti-imperialista (o mundo
árabe mussulmano
: Afganistão, Iraque, antes a Somália), estas guerras
caracterizam-se por forças em presença extremamente
desequilibradas: as do agredido são sub-equipadas, as do agressor
ultra-capitalisticas
.
Põe-se então a questão da possibilidade (da
necessidade
?) para a hegemonia norte-americana de redinamizar a
acumulação no centro do sistema mundial capitalista
através da guerra
. As destruições de capital (constante e variável)
provocadas pelo imperialismo são consideráveis para os
países atacados, mas de qualquer modo «insuficientes» para
impulsionar um novo e largo
ciclo longo de acumulação
capitalista nos Estados Unidos como aconteceu no fim da Segunda Guerra
Mundial. Vão, de resto, neste sentido as queixas formuladas por certos
empresários ocidentais (sobretudo em
The Economist
)
[6]
aquando da guerra contra a Jugoslávia: as destruições de
capital no Kosovo e na Sérvia foram, segundo eles, demasiado limitadas
para poder oferecer aos capitalistas os mercados da reconstrucção
(energia, infraestruturas
) que tanto esperavam ! Do mesmo modo os
efeitos de encomenda efectiva associados a estes conflitos (bens de consumo das
tropas mobilizadas e apoios logísticos
) são apenas de
curto prazo, e as incidências tecnológicas, no essencial, apenas
no sector militar (comunicações, bens de equipamento
).
Estas guerras imperialistas mostrar-se-íam
« insuficientes » para relançar um ciclo longo de
expansão do capital
a menos que se tornassem
permanentes
. Para além das suas ruidosas e esmagadoras «
vitórias
» militares, os Estados Unidos mostram-se incapazes de
concluir
estas guerras, que prosseguem a mais baixa intensidade por actos
espontâneos de resistência à ocupação. Mas
não é de excluir que tais guerras se generalizemquem
sobre
viver verá!, dada a agressividade do
establishment
norte-americano, acolitado por uma extrema direita toda poderosa. São
lançadas ameaças contra a Síria, a Coreia do Norte, o
Irão
As revoluções socialista em Cuba e bolivariana
na Venezuela estão mais do que nunca na linha de mira. A própria
China se sente visada, quem sabe se o
sonho americano
pós Guerra Fria não é o de a desmantelar também,
como ontem a União Soviética, para melhor a controlar.
Estas ameaças dirigem-se igualmente, em regiões sob controle
norte-americano (aínda que parcial), a movimentos revolucionários
verdadeiros povos em armas em certos casos, diabolisados,
caluniados, qualificados de «
terroristas
». No primeiro lugar encontram-se as guerrilhas colombianas (FARC-EP
e ELN), em luta total contra uma das piores oligarquias do mundo, apoiada por
milícias paramilitares néo-fascistas responsáveis pela
grande maioría dos crimes perpetrados naquele país, e fortemente
apoiada pelos Estados Unidos, através de uma ajuda militar,
tecnológica e económica considerável (Plano Colombia)
[7]
.
Os Estados Unidos, que atravessam uma conjuntura de crescimento frouxo (e com
eles o resto da tríade e o conjunto da economia mundial, à
excepção da China e duma parte da Ásia), disporão
de recursos para
financiar
estas novas guerras ?
Três observações sobre este ponto.
Convém antes de mais, não subestimar a capacidade dos Estados
Unidos para drenar para o seu território o excedente da renda em
pétrodolares, gerada pela alta do preço do petróleo
ocorrida no decurso dos meses que precederam a agressão ao Iraque
[8]
. Esta capacidade decorre directamente da
rede planetária de
bases militares
que estabeleceram, consideravelmente reforçada no último
decénio, da península arábica à Ásia
Central. Esta presença militar permite-lhes pressionar os regimes dos
países árabes produtores de petróleo, que lhes devem a sua
segurança exterior, mas também a manutenção no
poder das suas ditaduras, apesar de uma impopularidade crescente, a ceder uma
parte do excedente, de modo a pagar a despesa da guerra do Iraque como
aconteceu em 1991, durante a primeira Guerra do Golfo, aínda que em
circunstâncias muito diversas.
Convém também não esquecer que, se o
euro
está temporariamente forte contra o dólar no mercado de
câmbios, na perspectiva de alargamento da União Europeia, e
também pelo facto de numerosos países terem optado por cotar o
petróleo em euros (Iraque final de 2000, Irão meados de 2002,
Coreia do Norte fim de 2002), o dólar norte-americano continua a ser,
até nova ordem, a
divisa-chave
internacional em parte porque os Estados Unidos continuam a ser os
únicos líderes do jogo militar à escala global.
Enfim, é precisamente este papel chave desempenhado pelo dólar,
apoiado pelo mais poderoso exército da Terra, que permite aos Estados
Unidos, sobre endividados, em crise económica, impôr
de facto
ao mundo os seus défices gêmeos e
fazer suportar
a maior parte desse encargo aos seus parceiros da tríade e, sobretudo,
aos países do Sul.
Crise político-militar do sistema capitalista mundial
Isto equivale a dizer como estão embricadas as dimenções
económicas e político-militares da crise do sistema capitalista
mundial. Multidimensional, assente num gigantesco arsenal de armas de
destruição maciça, a hegemonia norte-americana afirma-se
em toda a sua arrogância. Entrou, no entanto, claramente
em crise
e encontra-se ameaçada pela evolução da
correlação de forças mundial.
A fragilização da posição dos Estados Unidos
não provém substancialmente do aumento do poderio de rivais. Nem
a Europa nem o Japão pretendem, ou não estão em
posição de pretender, a liderença mundial. A Europa
não existe (aínda) como força política unida. As
pressões norte-americanas, particularmente fortes nas semanas que
precederam a guerra do Iraque, fizeram-na aliás explodir, dividindo-a,
para além das tradicionais clivagenas esquerda direita, entre
alinhamento servil
com Washington (horizonte inultrapassável dos actuais governos
britânico, espanhol, italiano, português
) e
reivindicação de um lugar na
nova partilha do mundo
(ambição da França e da Alemanha, apoiadas pela
Rússia). A recente multiplicação das
intervenções militares francesas na África
(República Centro-Africana, Costa do Marfim, República
Democrática do Congo
) lembra-nos, todavia, que um imperialismo
pode esconder outro. Economicamente, a Europa continua na expectativa: a
Grã-Bretanha aínda não integrou a zona euro, o impacto da
absorção-subordinação da Europa de Leste é
aínda incerto em razão da sua vassalagem aos Estados
Unidos. O Japão, mergulhado numa crise persistente, reduz a sua
óptica à escala regional e inscreve prudentemente o seu futuro na
esteira de Washington.
Um dos maiores factores de fragilização da hegemonia dos Estados
Unidos vem antes de tudo do seu isolamento político. Relativo e sem
dúvida passageiro, este real isolamento é devido à
negação do direito internacional e ao desprezo pelas
Nações Unidas de que deram prova, ao cinismo e à
agressividade que demonstram na edificação do seu projecto
imperialista, mas aínda à própria
barbárie
deste projecto. Trata-se, com efeito, de desenhar os contornos dum
apartheid mundial
, tipicamente no espírito da extrema direita no poder na Casa Branca
[9]
.
Uma questão não pode já passar em branco : a de saber
se não nos encontraremos, longe de um passado que se crê
enterrado, num contexto histórico diferente, face a uma
fascização do imperialismo
norte-americano
.
Esta questão, terrível, torna necessária, sem qualquer
dúvida, a sua teorização que deve ser objecto de um
tratamento especial, aprofundado, e a maior prudência e rigor de
análise. Limitamo-nos aqui a constatar que alguns dos traços do
fascismo «clássico» são visíveis nas
tendências actuais
do imperialismo norte-americano:
i)
a sua
violência consubstancial
: interna, social, patológica a bem dizer, mas igualmente externa,
sistemática e programada, tornada
modo de estar no mundo
dos Estados-Unidos (se bem que este seja talvez o carácter distintivo
deste país desde a sua origem)
[10]
;
ii)
a
violação do direit
o: do Estado de Direito,
i.e.
os direitos dos seus cidadãos (da
«eleição » de Bush à vaga de
repressão no interior dos Estados Unidos), como do direito
internacional, dos direitos dos outros povos (do bloqueio a Cuba à
guerra contra o povo iraquiano);
iii)
a crença numa civilização, ou melhor numa nacionalidade,
superior
, que se auto-proclama habilitada a dirigir o mundo, e elemento chave do
nazismo, doravante integrada no coração do projecto de apartheid
mundial regenerada
pelo sangue
, na guerra.
iv)
Dir-se-á: o fascismo é o
Estado totalitário
. Mas que vemos? Que o dogma neoliberal do «
menos Estado
» é aplicado por toda a parte, excepto nos Estados Unidos, onde o
Estado
militariza
ao exagero a economia, onde uma ficção de democracia dissimula
mal a amplitude da sua falência, onde o bipartidismo dos
milionários se tornou no
partido único do capital
.
v)
Dir-se-á ainda, justamente: o fascismo, é acima de tudo o
genocídio
. Como não ver que o efeito da polarização do sistema
mundial capitalista, opondo um Sul recompradorisado, pilhado, esmagado pela
miséria, a um Norte super-armado, barricado nas suas fronteiras,
enquistado nas sua riquezas, é o «
genocídio silencioso
» dos mais pobres ?
A
extrema direita
está no poder nos Estados Unidos, não o esqueçamos, e o
seu poder é mundial. Tenhamos em conta esta ameaça de ditadura
militar planetária fascizante, muito seriamente, pois tentará
sempre reforçar-se, à medida que se reforçarem os
movimentos de resistência progressista do mundo inteiro. De resto,
é esta viragem fascizante do imperialismo que explica em parte as
recentes contradições aparecidas na direcção do
sistema. Estas abrem, ao mesmo tempo que uma era de repressão em larga
escala sob o pretexto de «
anti-terrorismo
», novas margens de manobra à acção das
forças progressistas. No seguimento da tragédia do 11 de
Setembro, os fazedores de opinião da imprensa de mercado recitavam-nos o
refrão do «
todos Americanos
» ; hoje em dia, muitos são os que tomaram
consciência do que é capaz o imperialismo americano para quebrar
os que lhe resistem. A resistência das forças populares, que se
opoem tanto às guerras imperialistas como às próprias
bases do sistema mundial capitalista duas faces duma mesma
realidade : a mundialização financiarizada , ganha
terreno, em todo o mundo, lenta, mas seguramente.
[11]
.
As guerras imperialistas e as suas causas sistémicas
Quais são as causas profundas destas guerras imperialistas, muito
especialmente da recentemente lançada contra o povo iraquiano? A
resposta a esta questão deve ser procurada fora da
propaganda
mediático-governamental anglo-americana do ante-guerra, falsamente
obnubilada pela ameaça de posse de armas de destruição
maciça ou de ligações com o terrorismo islâmico, que
não passaram de
mentiras
.
Convirá, de qualquer modo, não nos ficarmos pelas
aparências. Com efeito, o argumento avançado, quase
sistemáticamente, para explicar a motivação dos Estados
Unidos e do seu aliado britânico para levar a guerra a solo iraquiano,
é o petróleo o controle da sua produção e do
seu preço, dos canais de aprovisionamento, das suas reservas. Isto
é uma
evidência
incontornável. Mas as autoridades norte-americanas embaraçam-se
pouco com longos discursos e volumosos relatórios, e aínda menos
com o direito, com as Nações Unidas e com uma opinião
pública internacional agredida pelos médias, para dissimular a
sua vontade, de resto conhecida de todos, de controle global dos recursos
energéticos.
Esta evidência não deve contudo fazer-nos perder de vista uma
realidade aínda mais decisiva : através destas guerras,
está em jogo, não apenas a manutenção da hegemonia
norte-americana sobre o sistema capitalista mundial, mas também e
sobretudo a liderança da
fracção da classe dominante
actualmente hegemónica
a finança
, tomada no seu conjunto , que torna estas guerras
necessárias
.
A história não se repete, como sabemos. Lembremo-nos, no entanto,
da viragem imperialista e da transformação do capitalismo que
produziu no fim do século XIX
o ascenso da finança. Há pouco mais de um século, em 1898,
a intervenção militar dos Estados Unidos em Cuba sob o
pretexto já nessa altura, de a «
libertar
» e a imposição na ilha de um regime
neo-colonial (ditatorial) se explicaria
à evidência
pelo espírito guerreiro de alguns homens políticos e de
militares norte-americanos, e decerto também pela avidez de lucro dum ou
doutro capitalista americano (no açúcar, nas minas, nos caminhos
de ferro
), mas era, além de tudo, o
produto
do ascenso do
capital financeiro
dos Estados Unidos, o próprio
efeito
do seu ascenso como uma nova fracção da classe dominante, e
como a
condição de expansão para o exterior
da alta finança (a dos Morgan, Rockefeller e companhia) que
começava então a dominar os meios de negócios nos Estados
Unidos, e depressa se lançaria à conquista do mundo
[12]
.
Como as coisas mudaram desde essa altura, dir-se-á. É no entanto
uma realidade que o domínio da finança, dos maiores
proprietários do capital mundialmente dominante, está de volta. E
sabem-no bem os povos que sofrem desde há mais de vinte anos as
consequências cada vez mais devastadoras desse regresso. O que se trata,
a nosso ver, de distinguir, é que são as classes dominantes
colocadas actualmente sob a hegemonia da alta finança e
não apenas G. W. Bush, D. Cheney, e a sua clique de falcões
fanáticos, de magnatas do petróleo
que não
podem esperar manter o seu poder, com o sistema mundial de
exploração e de opressão que lhe está na base, com
as relações
capitalistas
de produção que o constituem, senão pela
violência
. A forma
visível
dessa violência, reverso daquela,
invisível
, das relações sociais capitalistas, é o
terrorismo de Estado
dos Estados Unidos, em guerra contra todos os que recusam expressamente
submeter-se ao seu diktat.
Temos aqui, sem dúvida, uma das razões susceptíveis de
explicar as aparentes divisões surgidas entre os países ricos,
que estiveram na origem das contradições assinaladas
divisões que não puderam ser dissimuladas, nem na ONU nem,
novidade, na NATO , não provocaram nenhuma
ruptura
no seio da tríade. Isto porque as classes dominantes têm uma
necessidade vital desta aliança interna do sistema inter-estatal que as
suporta, para conter as múltiplas resistências à
polarização que a sua expansão estruturalmente provoca.
É este capital financiarizado mundialmente dominante que decidiu entrar
em guerra contra todos os que se lhe opuserem e procurarem conduzir um projecto
de desenvolvimento autónomo, seja ele de que natureza for.
Não é menos verdade que o futuro depende também
de nós
, progressistas de todo o mundo, nós que fomos dezenas de milhões
a manifestar-nos por todo o mundo contra a guerra, em 15 de Fevereiro de 2003 e
nos dias seguintes. A guerra de agressão imperialista contra o povo
iraquiano não pôde ser evitada, mas a mobilização
contra a guerra ainda que desorganizada e confusa então
atingiu, massivamente, um nível ainda há pouco
inimaginável, e jamais atingido anteriormente
[13]
.
Crise ideológica do sistema capitalista mundial
A actual crise do sistema capitalista mundial é também uma crise
ideológica. Uma das suas consequências mais insuportáveis
é a tentativa de manipulação e de
neutralização das consciências, numa palavra, a
guerra
mediático-ideológica através de incessantes
bombardeamentos de propaganda e de desinformação. Os fazedores de
opinião da intelligentsia dominante descreveram-nos o quadro do
«
triunfo do capitalismo
» do início dos anos 90 como sendo «
o fim da história
». Pouco tempo foi preciso para que a mundialização
capitalista, pretensamente «
sem alternativa
», conduzisse ao afundamento em cadeia de muitos dos seus aparelhos
financeiros, que arrastariam na sua queda o
mito
da infalibilidade de um sistema mundial de mercados desregulamentados que era
suposto trazer equilíbrio e harmonia, crescimento económico e
bem-estar social.
Desde 1997, que o «
milagre asiático
» se dissipou e cedeu lugar à crise, profunda, que desviou a
trajectória de desenvolvimento dos países emergentes afectados
tornando-os aínda mais dependentes. A crise asiática, pela
avalanche de falências que acarretou, foi também a ocasião,
para os Estados Unidos, de deitar a mão, em apenas alguns meses, aos
aparelhos produtivos que estas nações, em alguns casos, haviam
levado decénios a erguer. Sob o choque desta crise, a Coreia do Sul,
perdeu a segurança do emprego (o seu mercado de trabalho continua a ser
dual, mas a partir de agora totalmente flexibilizado) e um certo controle
nacional
da estrutura de propriedade do seu capital. Pouco depois, a Rússia foi
igualmente atingida. A pilhagem em grande escala das suas poderosas
indústrias, levada a cabo pelo capital mundialmente dominante e seus
« intermediários » locais, foi bem sucedida. Depois
foi a vez do Brasil, primeira potência económica do continente
latino-americano. Poucos meses depois, mergulhou a Argentina no caos, sob o
efeito das estratégias combinadas da gestão neoliberal do FMI e
da captação da renda financeira pela élite
(anti-)nacional. Neste país, como na Rússia e na Coreia do Sul, a
crise empobreceu a população, à excepção do
seu decil superior, o mais afortunado, que continua a enriquecer
apesar da crise
. Recentemente, a Costa do Marfim afundou-se, fazendo tocar a finados pelo
modelo africano de crescimento, extravertido, desestatizado, neo-colonial
sob ocupação militar estrangeira.
Em todos os continentes está feita a prova da falência total do
neoliberalismo. Quase em todo o lado, no entanto, para lá destes
fracassos retumbantes, repetidos, provados, o neoliberalismo continua a ser
imposto aos povos,
pela força pura e simples
. A ideologia da « liberdade » e dos « direitos
do Homem » não lhe vale de nada : anti-popular,
anti-democrático,
criminoso
, o neoliberalismo impõe unilateralmente aos mais fracos a
submissão à lógica de um sistema capitalista mundial, que
apenas funciona em benefício dos mais fortes.
Tudo contribuia, neste contexto conturbado, para reintroduzir a ideia de
«
regulação
» no discurso ideológico dominante. Tratou-se subitamente de
«
salvar o capitalismo do integrismo dos mercados
» ; e a condição suficiente seria a simples
«
regulação dos fluxos financeiros
»
[14]
No campo da teoria, os economistas
soft
do
mainstream
néo-clássico fizeram flores. Autores na moda, como North,
Stiglitz, Sen, Krugman, Romer
cobriram-se de glória e
alguns, obtiveram até a recompensa de um Nobel. A era neoliberal
produziu uma ciência económica à sua imagem
sinistrada. Tem os economistas que merece. A assim chamada
« renovação teórica » produzida,
revelou-se perfeitamente estéril, incapaz de dar o mínimo
resultado analítico autenticamente inovador e de produzir conhecimentos
científicos de qualquer utilidade para a sociedade. O objectivo visado
por todos estes autores é o mesmo : preservar o capitalismo dos
perigos do ultra-liberalismo
[15]
.
No campo da prática, por detrás da retórica do Banco
Mundial sobre o «
saber ao serviço do desenvolvimento
» ou a «
luta contra a pobreza
» perfilam-se programas concretos de privatização dos
muito lucrativos sectores da informação e das
telecomunicações, da investigação e da
formação, e mesmo da ajuda humanitária
instrumentalizando de passagem numerosas ONG. O objectivo é sempre
o mesmo: asseguar aos oligopólios do capital financeiro mundialmente
dominante um controle total das regras do jogo.
Entregue a si mesma, a lógica de expansão do capital não
garante qualquer desenvolvimento. A realidade do funcionamento do capitalismo
não está na economia de mercado, mas no limite imposto à
concorrência pela monopolização da propriedade privada. Sob
o impulso de uma relação de forças tornada muito
desfavorável ao trabalho e de um poder da finança assente na
formação de alianças de classe anti-populares, o
próprio Estado foi voltado
contra o serviço público
. A ideologia neoliberal, pregando de forma artificial a «
livre concorrência
» e a «
livre-troca
», está perfeitamente em crise.
Actualidade do marxismo, da revolução e duma
transformação radical
A violência do projecto imperialista, imanente à expansão
do capital
financiarizado
, sem dúvida reforçará
as resistências e as lutas sociais
de uns três quartos da humanidade, esmagados pelo sistema capitalista
mundial: tanto as classes populares do centro do capitalismo como as dos povos
da periferia, às quais se juntarão numerosos movimentos
progressistas com as finalidades mais diversas (ecologia, feminismo, identidade
indígena
). Estes são no seu conjunto, os verdadeiros
sujeitos da história, os únicos susceptíveis de por em
cheque este projecto imperialista e de formular uma alternativa de progresso.
É no entanto forçoso admitir que a pressão do
pensamento único
(
i.e.
a ideologia dominante) é capaz de manter, através de subtil e
eficaz censura, a confusão nas fileiras progressistas. Por outro lado,
na sua grande maioria, partidos operários, com longas
tradições de luta, abandonaram o
marxismo
e renunciaram aos
programas revolucionários
enquanto
alternativas
respectivamente
teórica
e
prática
ao capitalismo, para se virarem para uma social-democracia que, no poder, se
contenta em gerir o neoliberalismo e situar qualquer mudança sempre no
interior do sistema. Daqui resulta um
afastamento
das forças progressistas, nomeadamente dos movimentos sociais e dos
forums altermundialistas, relativamente aos utensílios semânticos,
conceptuais e teóricos que lhe são próprios, mas
também uma
perda de autonomia e de radicalidade
das críticas formuladas contra o sistema capitalista mundial e a sua
hegemonia imperialista. Ora, o «
outro mundo possível
» ao qual todos aspiramos, não emancipará a humanidade
se estas transformações não começarem por destruir
as próprias bases do capitalismo, ou seja, as da
exploração
(e da especulação).
Nestas condições, pode o marxismo contribuir para fundar um
projecto
moderno
de emancipação? Seguramente que sim, na condição
que a sua renovação conduza não à
capitulação ou à adopção de formas de
acção próprias do capitalismo mas, pelo contrário,
ao reforço dos ideais revolucionários. A referência a Marx
continua a ser central; ao Marx que efectua a ruptura do materialismo
histórico, mas também o que chamarei a « segunda
ruptura » (sempre em relação a Hegel), acontecida
aquando das trocas epistolares com os revolutionários russos, entre 1877
(Mikhaïlovski) e 1881 (Vera Zassoulitch). Através desta
«segunda ruptura» Marx rompeu com a visão de um
desenvolvimento histórico segundo uma linha universal, indo do mundo
oriental à civilização ocidental e rejeitou toda a
«
teoria historico-filosófica da marcha geral fatalmente imposta a todos
os povos
», para finalmente se manter afastado do determinismo e tolerar
trajectórias históricas de formações sociais
diferenciadas, não lineares, articulando relações de
dominação de nações com relações de
exploração de classe.
Renovar o marxismo, voltar aos ideais revolucionários, significa atacar
frontalmente tanto a manutenção do sistema capitalista, como a da
hegemonia norte-americana, para unir as forças progressistas contra o
inimigo comum. Em resumo : fazer convergir lutas anti-capitalistas e
anti-imperialistas.
Porque continua a revolução na ordem do dia a Sul sem
dúvida, e talvez mesmo a Norte? Porque as mesmas causas que determinaram
no passado as grandes revoluções aquelas que, radicais, se
anunciavam como impossibilidades absolutas não desapareceram. De
modo nenhum
no Sul,
nem mesmo
no Norte, onde as desigualdades e injustiças se acumulam continuamente.
A revolução continua actual, também porque a luta
organizada
dos explorados contra o sistema capitalista e a ameaça que o seu
imperialismo norte-americano em vias de fascização sobre aqueles
faz pesar, se apresenta, mais que nunca, como uma
exigência histórica.
Recusemos fazer das realidades de ontem, agora desaparecidas, as utopias
capitalistas
de amanhã:
capitalismo
nacional-social no Norte (
Welfare State
),
capitalismo
periférico no Sul (desenvolvimentismo nacional-burguês
dependente),
capitalismo
sem capitalistas a Leste (estatismo despótico e
apofático
)
Elaboremos o nosso próprio
projecto social alternativo,
colocando a humanidade no seu centro mesmo que apenas seja «
aproximativamente coerente
», como dizia o Che. Desenvolvamos as nossas propostas alternativas,
teóricas e práticas, articuladas nas suas dimensões
nacionais e internacionais, assentes sobre as lutas anti-sistémicas que
apenas os explorados do sistema mundial poderão conduzir para impor ao
capital limitações estranhas à sua lógica de lucro
e chegar a uma transformação radical do mundo: bloqueio das
operações financeiras de especulação,
questionamento dos fundamentos do FMI e do Banco Mundial, desmembramento das
regras da OMC e dos privilégios dos oligopólios transnacionais,
estabilização das trocas a nível regional, fiscalidade de
alcance mundial, reorientação prioritária do investimento
para as necessidades sociais e as actividades produtivas,
modificação das regras que determinam a
distribuição do rendimento e da repartição do
consumo, transformação da ONU numa organização
democrática conciliando universalismo e direitos socio-políticos
dos indivíduos e dos povos, desenvolvimento do internacionalismo e da
solidariedade Norte-Sul, desmilitarização do planeta, recolocar
em causa a propriedade privada dos meios de produção,
edificação de condições de direcção
pelos trabalhadores do seu desenvolvimento social... É chegada a hora de
voltar a falar de
socialismo.
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Notas
1- Ver : R. Herrera (2001).
2- Ver : S. Amin et R. Herrera (2000).
3- Ver, por exemplo : N. Chomsky (2001).
4- UNESCO (2001).
5- Opinião de Thomas Friedman no
New York Times
de 28 de Março de 1999.
6- Ver : P. Nakatani (2003) em
www.rebelion.org
.
7- Sobre a Colômbia, ler os artigos de M. U. Rodrigues em :
resistir.info
e
www.rebelion.org
.
8- Ver : W. Clark (2003).
9- Ver : S. Amin (2003).
10- Ver : W. Blum (2002).
11- Ver : S. Amin e F. Houtart (2002) e também os artigos de :
J. Petras em
www.rebelion.org
.
12- Ver : R. Herrera (2003a).
13- Ver : G. Labica (2003).
14- Ler aqui os artigos de vulgarização respectivos de Soros e
Stiglitz.
15- Ver : R. Herrera (2003b).
[*]
Economista, investigador no CNRS, UMR 8595 Matisse, Université de Paris
1 Panthéon Sorbonne. Email :
herrera1@univ-paris1.fr
. Tradução de Carlos Coutinho.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
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