Pode-se concluir uma controvérsia científica quando esta é uma questão social?

por Jean-Marie Harribey [*]

Jean-Marie Harribey Ao publicar duas tribunas livres sobre o mesmo assunto, uma oposta à outra, o jornal Le Monde deu uma nova ilustração da mais importante controvérsia que atravessa a economia política desde há 300 anos e da qual decorrem todas as outras. [1]

Um pouco de teoria afasta da realidade, muito aproxima.

O que permitiu o relançamento desta controvérsia foi o anúncio feito a 26/Jun/01 pelo presidente da Alcatel da sua intenção de criar "uma empresa sem fábricas" pela revenda de todas as suas unidades fabris a fim de conservar apenas as actividades financeiras ou as actividades de investigação e concepção. Tentei então explicar que a evolução do capitalismo para uma regime de acumulação financeira significava a extensão à escala planetária do processo de captação do valor pelos grupos financeiros que assim transferiam, no total do capital investido na produção, o custo da gestão da mão-de-obra. Isto traduzia-se, afinal das contas, por uma exploração acrescida da força de trabalho — sendo esta a única criadora de valor e sendo o capital estéril — através de uma precarização das condições de emprego no interior das empresas submetidas à finança. O meu contraditor respondeu que isto não passava de "sofismas" e "fantasias" pois o trabalho é o fundamento do "custo" não o "valor", que resulta do "confronto da oferta e da procura".

Antes de examinar o fundo desta controvérsia, é preciso situar a questão social. Se todo valor produzido é o fruto do trabalho e apenas do trabalho como ensinaram Adam Smith e David Ricardo, o lucro é um levantamento sobre este valor e o capitalismo não tem justificação teórica, havia concluído Karl Marx. Portanto, o capital não é senão a acumulação entre as mãos dos seus proprietários da mais-valia extorquida aos trabalhadores assalariados. Se, pelo contrário, fosse possível mostrar que o valor provinha de uma outra fonte diferente do trabalho, o capital seria fecundo — não se poderia mais acusar a finança de desviar em seu proveito uma parte das riquezas criadas e nem mesmo o capital investido na esfera produtiva de explorar a força de trabalho.

A dificuldade reside no facto de que a controvérsia refere-se a uma questão de ordem científica na qual são misturadas considerações que têm a marca das representações das classes sociais acerca das suas próprias práticas. Nas ciências da sociedade, ciência e ideologia formam um par explosivo. É ilusão acreditar que se pode decidir entre duas representações ideológicas. Mas é possível avançar no terreno propriamente científico se se utilizar o raciocínio lógico.

Um valor pode esconder outro

Aristóteles foi o primeiro a ter esta intuição: as mercadorias têm um valor de uso pela utilidade que elas proporcionam aos seus utilizadores e têm um valor de troca pela sua capacidade para entrar em relações quantificáveis entre si. Retomando esta distinção, Smith, Ricardo e Marx dela fizeram o ponto de partida de toda a economia política, clássica para os dois primeiros e o centro da sua crítica para o terceiro. O valor de uso é a razão pela qual uma mercadoria é produzida e a seguir comprada, mas não é susceptível de medição. O valor de troca é a relação em que duas mercadorias vão permutar-se e depende de três séries de factores que se encaixam uns nos outros para explicar os preços: na base, a quantidade de trabalho necessário à produção; a seguir, a aplicação de uma taxa média de remuneração exigida pelos fornecedores de capitais, tendo em conta a relação de forças que eles impõem à sociedade; por fim, as flutuações da oferta e da procura no mercado. Na problemática da economia política, em caso algum o valor de troca é redutível ao valor de uso. Ao contrário disso, na problemática da teórica neoclássica, construída ulteriormente em reacção à hipótese clássica, o valor de troca e o valor de uso confundem-se, o que permite excluir do campo da análise económica as condições sociais da produção, ou seja, as relações sociais. Não restam senão indivíduos racionais, autónomos pois isolados de todo ambiente social e, evidentemente, nem explorados nem exploradores.

Para julgar da validade da hipótese da não redutibilidade do valor de troca ao valor de uso ou, inversamente, daquela da sua identidade, basta proceder metodicamente: enquanto não se tiver encontrado um contra-exemplo, uma hipótese é considerada válida. O leite bebido pelo bebé no seio de sua mãe tem um valor de troca? Não. Tem um valor de uso? Sim. Portanto está feita a prova de que a hipótese de reduzir uma à outra é irremediavelmente falsa. Simultaneamente, está feita a prova de que a hipótese da distinção entre os dois tipos de "valor" tem fundamento.

Esta distinção tem um alcance imenso, grandioso mesmo. Ela estabelece que a soma dos valores mercantis produzidos não cobre toda a riqueza disponível pois esta última a ultrapassa devido a todos os bens e serviços não mercantis e não monetários que a actividade humana engendra e a todos os recursos da natureza, que são verdadeiros valores de uso [2] . Tal distinção constitui a base teórica da recusa à mercantilização capitalista. A satisfação das necessidades humanas não passa necessariamente por um consumo mercantil. Pior ainda, o mercado selecciona dentre estas necessidades aquelas para as quais existe uma procura solvável. As outras não têm a possibilidade de entrar no cabaz que define o "óptimo social" [3] .

O mito da fecundidade do capital

A separação entre riqueza (conjunto dos valores de uso de origem natural ou humana) e valor (subentende-se monetário) é crucial — daí o interesse de ter efectuado a demonstração lógica anterior — para abordar o ponto seguinte da discussão. O trabalho inserido na relação salarial que o aliena ao capital é o único factor criador de valor e, em consequência, será o capital estéril?

O valor das mercadorias diminui à medida que os equipamentos se tornam cada mais importantes e eficazes. Não há excepção: todos os preços das mercadorias baixam a médio e longo prazo em paralelo com o progresso da produtividade do trabalho e, tendencialmente, o valor de troca de uma mercadoria alinha-se com o seu custo em trabalho [4] . Valor e produtividade são, aliás, o inverso um do outro. A evolução para um trabalho cada vez mais qualificado e para uma produção imaterial em nada altera esta regra [5] . Dito por outras palavras, o capital (no seu sentido técnico) permite ao trabalho produzir cada vez mais riquezas, ou seja, valores de uso, que têm um valor de troca unitário em constante diminuição. Raciocinemos passando ao limite: quanto mais a produção se automatiza — portanto incorporando cada vez menos trabalho vivo, que tende pouco a pouco para zero — mais o valor tende para zero.

Afirmar que o capital técnico não produz nenhum valor acrescentado não equivale a dizer que ele é inútil. Criam-se mais riquezas no mesmo tempo de trabalho com uma boa ferramenta do que com uma má, mas a melhoria da produtividade é o sinónimo exacto da baixa do valor.

Se o capital técnico não acrescenta qualquer valor, por mais forte razão o capital financeiro, que designa o equivalente do capital técnico sob a forma de títulos financeiros, ou seja, em termos de propriedade, não tem por si próprio qualquer fecundidade. Ele não pode acrescer-se se não for valorizado pela força de trabalho. E sua concentração num número de mãos cada vez mais restrito aumenta sua capacidade de captar uma maior parte do valor acrescentado no mundo pela força de trabalho explorada. CQD. A propósito, as bolhas financeiras arrebentariam se o capital fosse fecundo?

Uma teoria que não vale nada

Os economistas que detêm as posições dominantes seriam refractários à lógica? Por que a teoria liberal neoclássica, que repousa sobre hipóteses falsas e que está pejada de contradições internas, é dominante a ponto de serem as demonstrações heterodoxas estigmatizadas e julgadas incobráveis? Este mistério só é desvendado quando se recorda que as ideias dominantes são sempre aquelas da classe dominante.

A ideologia económica capitalista é um conjunto muito completo mas incoerente. Às relações sociais e às relações de forças que estão em questão, ela opõe indivíduos autónomos e iguais. E quanto a desigualdades? Elas são naturais, responde a ideologia. Primeira incoerência uma vez que os homens são, parece, naturalmente iguais.

Às condições materiais de produção de que decorre o valor, a ideologia opõe a subjectividade individual. Neste caso, porque o preço dos computadores baixa constantemente e em todo o mundo? Porque a utilidade suplementar que se retira diminui, responde a ideologia. Segunda incoerência: a utilidade não se mede. As elucubrações da teoria subjectiva do valor fundada sobre uma utilidade impossível de medir servem para eliminar do campo de análise as relações sociais de produções. Sua vacuidade chega ao seu resultado final com a crença de que os mercados financeiros criam valor.

Aos estragos sociais, a ideologia opõe o dinamismo do capitalismo que satisfaz as aspirações humanas. Por que então tantos subalimentados no planeta? Porque eles não têm rendimentos para comprarem os produtos aos produtores agrícolas dos países ricos, responde a ideologia. Terceira incoerência: por que deveriam eles comprar estes alimentos ao invés de produzi-los por si próprios? Porque eles custam menos caro no Norte do que no Sul, responde a ideologia. Quarta incoerência: ela evita cuidadosamente comparar a diferença de preço com o custo humano engendrado pela favelização do terceiro mundo que se segue ao abandono das culturas alimentares.

Por que existe desemprego? Porque os salários são demasiado elevados, responde a ideologia. Quinta incoerência: os salários compram as mercadorias que os capitalistas querem vender.

Por que existem poluições? Porque não se privatizou o ar e por isso não se lhe pode dar um preço, responde a ideologia. Sexta incoerência: o ar não é produto e seu preço não poderia deixar de ser fictício.

Por que o capitalismo conhece super-produções crónicas? A ideologia não responde, ela tartamudeia: a superprodução é impossível em economia de mercado! E no entanto, ela superproduz, poderia dizer Galileu. Esta foi a sétima incoerência: a negação da realidade.

Um valor pode esconder vários outros

Com toda a lógica, a controvérsia científica abordada nestas páginas pode ser resolvida. Ela não apresenta um problema inultrapassável. Mas como ela traduz finalmente uma relação de forças entre as classes sociais — entre aqueles que produzem e aqueles que vivem do trabalho dos outros — o veredicto que se poderia pronunciar com a razão não será levado à prática enquanto a relação de forças não se tiver tornado favorável aos desfavorecidos, a todos aqueles a quem o capital tem necessidade de destruir a consciência do mundo a fim de perpetuar sua dominação. Eis porque a questão económica do valor nos conduz àqueloutra dos valores, que é de ordem ética, filosófica e política. Não é simplesmente porque o capitalismo recolhe para si uma parte do valor produzido que ele deve ser combatido. É também, e talvez sobretudo, porque ao querer apoderar-se de todas as actividades para torná-las mercadorias ele põe em causa a dignidade humana, reduz tudo a um acto venal, põe em perigo os equilíbrios sociais e naturais, compromete as condições da vida futura, em nome do dinheiro erigido em finalidade última, em "valor" que suprime todos os outros, a ponto de pretender governar o mundo pela eternidade afora. Deus está morto, viva o capital? Nem deus, nem mestre, nem capital.

NOTAS
(1) J.M. Harribey, « L'entreprise sans usines ou la captation de valeur », Le Monde, 3 juillet 2001 ; P.J. Bernard, « Captation de la valeur ? », Le Monde, 10 juillet 2001.
(2) Ver neste numéro a cronica de B. Larsabal, « La bourse ou la vie : Tout ce qui vaut n'est pas argent ».
(3) Os economistas liberais neoclássicos retêm a definição dada por Pareto: uma situação é óptima se não se pode melhorar a situação de alguém sem piorar aquela de outro. Isto é genial pois tomar um único dólar àquele que possui centenas de milhões para o redistribuir deteriora a sua posição e a situação torna-se subóptima!
(4) Atenção: o custo em trabalho compreende os salários e a mais-valia.
(5) Ver J.M. Harribey, «Nouvelle économie ou nouvelle idéologie?», Le Passant Ordinaire, n° 33, février-mars 2001.


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[*] Professor na Universidade de Montesquieu- Bordeaux IV, França.
Sítio web pessoal em http://harribey.montesquieu.u-bordeaux.fr/


O original deste artigo encontra-se no n° 36 (sep-oct/2001) da revista Le Passant Ordinaire .
Tradução de J. Figueiredo.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info

22/Out/02