Entrevista de Henry Alleg
A derrota do PC Francês
Esta entrevista de Henry Alleg foi realizada em 29/Abr/02, antes das
últimas eleições legislativas que levaram ao afundamento
do governo da coligação PS-PCF dirigido por Leonel Jospin. No entanto, as
ideias aqui
expostas pelo autor de
La Question
permanecem plenamente válidas e até se pode afirmar que foram
confirmadas pelos acontecimentos posteriores. A entrevista foi efectuada em
Paris por uma jornalista brasileira e foi publicada no portal
O Vermelho
, do Partido Comunista do Brasil.
Alleg:
Devo começar por dizer que já não sou um homem jovem.
Tenho quase 81 anos e a parte mais importante da minha vida foi sempre dedicada
ao trabalho de jornalista e, ao mesmo tempo, ao de militante comunista. Comecei
a ser militante do Partido Comunista Francês quando tinha 20 anos. Foi no
período em que o Partido era ilegal na Argélia, onde eu morava
nessa época. Eu era secretário da juventude comunista. Depois,
fui diretor de um jornal diário que se chamava "Alger
Republicain". Ele tinha uma particularidade, era o único
diário que existia nessa época na Argélia e que combatia o
sistema colonial francês.
Naturalmente era uma situação muito difícil, porque a
repressão era muito forte contra os que não aceitavam a
dominação colonial francesa. O jornal, apesar de todas essas
dificuldades, continuou a existir até o momento em que foi proibido, em
1955. A guerra de libertação havia começado em 1954.
Então, em 1955 entrei para a clandestinidade e, em 1957, fui preso.
Minha prisão foi feita em circunstâncias habituais na
época: todos os que eram presos, eram torturados. Eu consegui escrever.
Quando saí das mãos dos páraquedistas, escrevi
clandestinamente um livro que se chama "A Questão". Esse livro
ficou logo muito conhecido, teve uma grande difusão, apesar da sua
proibição pelo governo francês. Era uma
revelação para os franceses. Eles estavam se dando conta do que
era a guerra colonial e a maneira com que as tropas francesas do
país que era pretensamente a pátria dos Direitos Humanos
estavam fazendo uma guerra terrível na Argélia, com atrocidades,
desaparecimentos, bombardeamentos com napalm, massacres. O que os franceses
até então não sabiam ou não queriam saber. Havia
quem soubesse.
Então, esse livro teve uma grande difusão e eu fiquei na
prisão durante quase cinco anos...
"Vermelho": Na Argélia?
Alleg:
Na Argélia e na França. Fui transferido para a França.
Consegui, com a ajuda do Partido Comunista Francês, fugir antes que os
anos de prisão que eu deveria cumprir chegassem ao termo. Em seguida, a
guerra tendo terminado, voltei para a Argélia e a ser diretor do mesmo
jornal que, após a independência, tornou-se o maior jornal do
país; mesmo da África do norte. Porque todo o mundo reconhecia
que esse jornal e as pessoas que nele colaboravam eram verdadeiros combatentes.
Em 1965, o jornal foi novamente proibido, porque houve um golpe de estado na
Argélia. A partir desse momento, vim para a França.
Trabalhei para diversos semanários, até tornar-me
secretário geral do diário "L'Humanité". Ao
mesmo tempo eu era adjunto do chefe de
redação. E fui também, durante um bom tempo,
correspondente internacional. Fiz reportagens em vários países:
na União Soviética, nos países socialistas da Ásia
central, nas Filipinas, na América do norte, nos países
árabes. Em seguida, escrevi alguns livros, em particular sobre a guerra
de independência da Argélia, mas também sobre a
União Soviética, a China, os Estados Unidos, etc.
Fui membro da direção do Partido Comunista Argelino. Depois, na
França, eu era apenas filiado ao Partido Comunista Francês, com
responsabilidades no jornal. Mas eu não concordava com as
orientações do Partido embora fosse, e ainda seja, membro
dele nem com seu julgamento sobre os países socialistas, em
particular sobre a União Soviética.
O PCF, na minha opinião, retomou todas as críticas dos piores
anticomunistas e anti-soviéticos. Minha avaliação pessoal
era a de que obviamente havia coisas negativas, coisas ruins e que não
funcionaram, as quais deveríamos conhecer e criticar. Claro que houve,
num certo momento, atentados terríveis à legalidade, inclusive
alguns crimes. Não se deve fechar os olhos e negar isso mas, por outro
lado, é preciso ver também tudo o que a existência da
União Soviética trouxe de positivo ao mundo. Em particular aos
países do terceiro mundo, na luta contra a opressão, contra o
poder dos países do imperialismo. Por conseguinte, não se pode
ter uma atitude radical e dizer, como o disse o secretário-geral do
Partido Comunista Francês, Robert Hue, que estamos contentes pela
União Soviética ter acabado. Foi o que ele disse.
Essa não é a minha posição. Acho que apesar de
todas as falhas, dos erros e dos grandes defeitos que esse regime tinha, sua
existência foi uma coisa muito positiva, não só para os
países onde esse regime tinha sido estabelecido, em toda a União
Soviética, mas igualmente, para os países exteriores a ela. Por
exemplo, quando os países do terceiro mundo tinham necessidade de uma
ajuda econômica, política, eles podiam se apoiar na
existência da União Soviética, o que não foi mais
possível a partir do momento em que esse país acabou.
Eu também não concordei, há uns dez anos, com a
orientação dada pela direção, com a idéia de
que era preciso abandonar tudo o que tinha feito a originalidade do Partido
Comunista. Abandonar, por exemplo, a idéia de que para compreender as
coisas é preciso tomar como referência princípios que a meu
ver continuam válidos, mesmo que o mundo esteja mudando. Há
coisas que continuam válidas porque estamos num regime capitalista.
Nós não saímos desse regime, mesmo que tenha havido
modificações.
Ainda há exploração do homem pelo homem, ainda há
opressão dos povos pelo imperialismo e, por conseguinte, é a
partir desses dados que devemos construir uma política e não
abandonando esses princípios, como se tivessem saído da validade.
A segunda coisa é que, num país como a França, temos de
nos apoiar nos explorados, em primeiro lugar nos trabalhadores, naqueles que
sofrem mais. Entre os quais, os operários estrangeiros que são
importados pelo país e que são explorados.
O Partido francês sob essa nova direção, infelizmente
abandonou isso tudo.
"Vermelho": Em função de quem, dos intelectuais?
Alleg:
Eu não quero dizer que deve-se abandonar os intelectuais, mas acredito
que um partido comunista é antes de tudo um partido da classe dos
trabalhadores. Quero dizer dos que vivem de seu salário, que são
explorados pelo imperialismo e, em conseqüência, a quem é
preciso abrir a perspectiva de uma nova sociedade.
Uma das características do Partido Comunista Francês durante todos
os anos em que militei quando era jovem, é que ele considerava como seu
dever lutar sempre ao lado dos povos que eram explorados pela sua
própria burguesia. São noções que não foram
varridas, mas das quais quase não se fala mais. E isso leva a posturas
que, pessoalmente, e não apenas eu, mas dezenas de milhares de
comunistas, que continuaram comunistas, não se pode admitir. Por
exemplo, o fato de o Partido Comunista não ter condenado a
agressão contra a Iugoslávia [Sérvia] pelo imperialismo
norte-americano. O fato de, quando houve a guerra no Iraque, as
reações do PCF terem sido muito, muito fracas. E toda uma
série de ações como essas que chocam em
relação às posturas anteriores de um Partido Comunista.
Por outro lado, o Partido Comunista Francês, na minha opinião,
não é mais realmente um partido comunista, a partir do momento em
que sua ideologia não se refere mais diretamente ao marxismo e ao
leninismo, enfim, a todo o acervo do movimento operário, do movimento
comunista numa escala mundial. Na prática, o que parece mais importante
para esse partido é participar do governo e da
administração nos negócios da burguesia. Não
acredito que seja esse o papel de um partido comunista.
Isso não quer dizer que um partido comunista não possa participar
do governo, claro, mas tem de participar fazendo avançar a hora da
revolução e não para atrasá-la. Como quando se
participa, como foi o caso, de um governo socialista, social-democrata, que
está fazendo o trabalho que a direita durante muito tempo gostaria de
ter feito, mas não fez com medo das reações populares. Por
exemplo, a França tem empresas nacionais há muito tempo. Elas
não caíram do céu. Foi uma luta travada pelos
trabalhadores, principalmente no período que se seguiu à Segunda
Guerra Mundial, para que as grandes empresas capitalistas, as que dominavam a
produção do gás, da eletricidade, das ferrovias, da
aviação, das minas que quase já não existem
mais , do petróleo, do telefone, do correio, isso tudo, estivessem
nas mãos da nação. Mesmo que a nação
não fosse socialista. A tática da burguesia é de retomar
tudo isso e privatizar. No programa dos comunistas constava a defesa das
nacionalizações e a luta contra as privatizações
que eram programadas pela direita.
Ora, no governo no qual eles entraram há cinco anos, o que nós
vimos? Vimos que houve mais privatizações do que durante o
governo anterior, de direita; e os comunistas fazem parte desse governo.
Inclusive, há um ministro, Jean-Claude Guesseau, que é membro da
direção do Partido e que está organizando a
privatização da Air France. E o inacreditável é que
se acha que os comunistas e o povo são imbecis, porque dizem que
não se trata de uma privatização, mas de uma abertura de
capital para o setor privado. E todo mundo fica se perguntando qual é a
diferença.
Não se pode, hoje, quando se é ministro, concordar com tal
orientação. Naturalmente não sou o único. Há
milhares, dezenas de milhares de comunistas que manifestaram seu desacordo, que
o disseram há muito tempo. Vários grupos que se criaram em
resistência a essa liquidação.
Por outro lado, fora esse programa, que está sendo deixado de lado, fora
a ideologia, que está sendo abandonada, há o que está
sendo feito no plano da organização do Partido. O que é um
partido para os comunistas? É uma ferramenta, é um instrumento
para encaminhar a luta. Conseqüentemente, esse instrumento deve ser
constantemente educado, formado, para ser capaz de trazer as massas em torno
desse partido. Então é preciso dar uma educação a
toda essa gente, é necessário haver grupos, células, onde
educa-se, fala-se, aprende-se. Ora, a nova orientação do Partido
é a destruição das células, dos grupos, das
discussões. As pessoas se filiam ao partido, às vezes vão
às reuniões, às vezes não... Quer dizer que a
noção de um verdadeiro partido comunista foi completamente
destruída.
A conclusão é dada pelos próprios números, e
não nos surpreende. O Partido há dez anos atrás, segundo
eles, contava com 550 mil membros. Pouco a pouco, esse número foi caindo
para 300 mil, de acordo com os dados que eles mesmos dão.
Depois, caiu para 150 mil e, agora, eles dizem que há 130 mil, mas na
verdade há muito menos. Onde essa gente toda foi parar? Será que
de repente deixou de ser comunistas? Essa gente continuou comunista, mas
está insatisfeita. Insatisfeita com o que os dirigentes dizem, com a
política deles, com a destruição do Partido e com os
próprios dirigentes.
Tudo isso para chegar às últimas eleições. Elas
são para o conjunto da esquerda uma verdadeira catástrofe. Mas a
maior catástrofe foi para o Partido Comunista. Porque percebe-se, no
final das contas, que a extrema-direita fascista de Le Pen obteve, se
considerarmos toda a extrema-direita, quase 20%. O que parece enorme. Mas se
observarmos mais de perto os números, contrariamente à
impressão que os jornais, as rádios, todas as manchetes
dão, não se trata de uma vitória incontestável da
extrema-direita. Porque nas últimas eleições
presidenciais, em 1995, há sete anos, Le Pen e a extrema-direita
tiveram, no seu conjunto, 11,8%. E agora eles têm 13,55%. Quer dizer que
o ganho exato não em função das porcentagens dos
resultados de Le Pen foi de 1,75. Longe de uma grande vitória.
Mas por que há essa impressão? Porque há uma porcentagem
enorme de abstenção. Porque o Partido Socialista desmoronou,
perdeu quase 3%. O Partido Comunista perdeu quase 4,5%, de maneira que agora
não tem nem 3%, o que significa um desmoronamento completo. Foi o
partido que mais perdeu. Ele tinha 6,75 e está com 2,38%. Quer dizer que
o que marcou o sucesso de Le Pen foram: a abstenção, a perda dos
socialistas e a perda dos comunistas. (Esses votos foram também para a
extrema-esquerda trotskista.) A direita clássica de Jacques Chirac e
companhia também perdeu muito. Evidentemente todas essas perdas
consideráveis fizeram com que a porcentagem de Le Pen aumentasse. Mas em
votos, não é um maremoto, não é a onda que submerge
tudo como querem fazer crer.
Apesar disso, a situação é bastante grave. A esquerda
esteve no poder durante cinco anos. E o povo está dando um tapa na cara
dessa esquerda que não cumpriu nenhuma das grandes promessas que tinha
feito. Nem no plano da defesa da saúde pública e da aposentadoria
que estão sendo ameaçadas...
"Vermelho": E a jornada de 35 horas semanais de trabalho?
Alleg:
Faz-se muito barulho em torno das 35 horas. Algumas pessoas estão
satisfeitas. Mas, em primeiro lugar, é uma porcentagem muito reduzida.
Depois, as 35 horas não foram seguidas de um ganho real, nem em termos
de menos trabalho, nem em termos de mais dinheiro. E no que diz respeito ao
emprego, há um aspecto enganoso. Porque é verdade que foram
criados empregos, mas quando estes são considerados no seu conjunto,
vê-se que são empregos de salários baixíssimos. Quer
dizer que para muitos, o fato de não trabalhar é mais vantajoso
do que trabalhar nos empregos que lhes são oferecidos. Por outro lado,
não é uma coisa suficientemente marcada para que as pessoas digam
que estamos indo no bom sentido. Ao contrário, há o medo que as
coisas sejam ainda piores.
Há a questão da Europa. Isso é mais que um
escândalo, é uma vigarice da parte daqueles que dirigem o Partido.
Ninguém falou da Europa. Ora, esta Europa que se diz Estados Unidos da
Europa, de acordo com a análise de uma grande parte dos democratas,
não apenas dos comunistas, não é uma Europa que vai no
sentido de uma melhora das condições de vida dos pobres, da
classe operária. Ela está sendo tomada pelos grandes banqueiros,
pelos grandes industriais. Eles se unem para explorar ainda mais os povos
europeus.
Certas leis francesas estão sendo consideradas como não
válidas a partir do momento em que existe uma lei européia que a
contradiz. Um exemplo, entre vários, é o do trabalho noturno das
mulheres. Deve-se levar em conta que a constituição feminina
não é como a masculina e que os homens, num trabalho cansativo,
muscular, físico, agüentam mais que as mulheres. É assim.
Talvez daqui a 2 mil anos a coisa seja diferente. Sem falar que para as
mulheres há a maternidade, etc. Bom, era uma conquista progressista
essa, das mulheres não trabalharem à noite. Ora, com as leis
européias, em nome da igualdade e tudo o mais, agora as mulheres podem
trabalhar à noite. E ainda por cima, enquanto na França as
crianças não podiam trabalhar até completarem 16 anos, de
acordo com a lei européia elas podem começar a partir de 13 anos.
Há muitas coisas desse tipo. E por quê? É muito claro.
Porque há lucro para as grandes empresas em fazer as mulheres, as
crianças trabalharem.
Isso acontece na Europa. Há países onde as crianças
trabalham. E não estou falando de dezenas de milhares de
crianças, mas de centenas de milhares. Não estou falando da
Malásia ou do Brasil, mas da Europa, que se diz civilizada. Em Portugal,
no sul da Itália, na Grécia, na Turquia que vai entrar na
Europa. Por questões pretensamente econômicas, adaptam-se as leis.
Então, na França, coisas que tinham sido varridas pela luta dos
trabalhadores, acabam voltando. E há ainda outros aspectos que
são totalmente opostos ao interesse nacional francês.
"Vermelho": E paradoxalmente, parece que Le Pen é o
único que se opõe à Comunidade Européia...
Alleg:
De fato. Mas isso é uma espécie de traição,
não há outra expressão, daqueles que se comprometeram a
lutar contra essa Europa. Porque não se pode esquecer que houve um
plebiscito na França, há uns sete, oito anos atrás. E esse
plebiscito foi muito apertado. Por muito pouco, não ganhou o NÃO
à Europa, como na Dinamarca. Deu 49 vírgula alguma coisa por
cento. O Partido, na época, tinha defendido a idéia de que
não estávamos contra a união dos países da Europa,
mas contra essa união em particular. E era uma velha questão para
os comunistas, porque já se falava nessa idéia dos Estados Unidos
da Europa na época de Lênin. Lênin havia explicado que se
são os capitalistas a organizar isso, será evidentemente no
interesse deles e não no dos trabalhadores. Conseqüentemente os
povos devem lutar contra. Depois vê-se. Não somos contra os
Estados Unidos da Europa, mas, enfim, não é algo que esteja na
ordem do dia.
O Partido havia feito uma grande campanha, havíamos feito
petições. Recolheu-se 700, 800 mil assinaturas, com a
idéia de que era necessário impedir essa Europa que, se se
concretizasse como era descrita, seria um golpe mortal contra a
existência da nação. De um dia para outro, tudo isso
acabou. Quando os comunistas entraram no governo com os socialistas, esses
últimos disseram para eles pararem com a campanha contra a Europa e eles
pararam. E há 700 ou 800 mil assinaturas que os camaradas recolheram
subindo e descendo os andares, que devem estar nos porões das
seções do Partido, porque eles não tiveram nem a coragem
de dizer "bem, nós vamos pegá-las e entregá-las ao
Primeiro Ministro, ao Presidente da República, já que nós
pedimos às pessoas que assinassem". Nem isso foi feito.
Abandonou-se uma posição de princípio para compor com os
socialistas.
Então, eles acham que as pessoas são imbecis, que o
indivíduo que assinou esqueceu. Em toda a campanha [presidencial],
ninguém falou da Europa, a não ser, como você disse, a
direita.
"Vermelho": Inclusive, é por isso que há toda essa
unanimidade contra Le Pen no seio da Europa. Porque mesmo gente como Berlusconi
diz que Le Pen é um horror, sendo que ele é um deles...
Alleg:
Sim. Le Pen o faz por demagogia. Ele é inteligente e entendeu muito bem
que havia uma coisa que os franceses não estavam engolindo. E que ele
podia explorar, já que os comunistas não falam mais no assunto e
os socialistas e todos os outros são a favor da Europa. Mesmo
Chévènement [ex-ministro de Jospin] na sua campanha eleitoral
não falou muito no assunto, sendo que antes tinha se apresentado contra
a Europa. Então Le Pen aparece como o super patriota. Aquele que defende
a pátria francesa contra os que querem liquidá-la, submergi-la.
O Partido Comunista votou em tudo o que os socialistas quiseram. E quando era
algo impossível de engolir, porque era demais, calculavam: "se
nós nos abstivermos, a proposta do governo vai passar de qualquer
jeito"; e havia uma espécie de acordo tácito entre Jospin e
a direção do Partido. Eles diziam "Bom, você precisa
compreender, se nós votarmos nessa lei, vai ficar difícil para
nós, então vamos nos abster. Isso não mudará nada,
porque de qualquer modo você tem um número suficiente de votos
para passar a lei e nós não ficaremos tão sujos".
Isso também é acreditar que os eleitores, e particularmente os
comunistas, não vêem essas coisas. Eles vêem. E na
última hora, tomado de pânico, três meses antes das
eleições, Robert Hue vem com essa: "Não é
possível, esse governo e essas privatizações. Esqueceram
as reivindicações, a saúde pública, a
aposentadoria, tudo isso, assim não dá. E nós dissemos ao
governo que era preciso ser mais de esquerda", etc. E quando perguntamos a
ele, "Está certo, mas no segundo turno, em quem você vai
votar?". Porque é esse o problema. Isso é só conversa
para boi dormir. Se no segundo turno ele vota Jospin, quer dizer que eles
recolheram votos, mesmo dos que estavam descontentes, e depois, no segundo
turno, vão dá-los a Jospin. E ele não podia dizer "Eu
não vou votar no Jospin".
Muitos se deram conta, que não dava pé, particularmente os
comunistas. Por isso houve abstenções, as pessoas estavam
decepcionadas. Houve votos em Arlette Laguiller e em Besancenot, que são
candidatos trotskistas, mas que retomam as palavras de ordem dos comunistas:
luta pelo aumento dos salários, luta pela defesa da saúde
pública, luta contra o trabalho intermitente. Com exceção
da Europa. É um pouco como no Brasil, onde as questões nacionais
não interessam os trotskistas. Os comunistas, que não são
trotskistas até meus filhos pensaram "vou votar neles
para dar uma lição, nós somos comunistas, mas nós
não admitiremos isso, nós vamos votar de outro jeito, talvez isso
dê uma lição aos dirigentes". Naturalmente eu
não concordava com isso, mas também não concordava em
votar no Robert Hue, porque se ele e o Partido Comunista tivessem uma grande
votação, isso quereria dizer que a política deles é
certa, que é preciso continuar assim.
Então muitos comunistas se abstiveram. Eles se perguntavam o que podiam
fazer. E, no pior dos casos, porque isso aconteceu também, alguns
operários que antes votavam nos comunistas, votaram em Le Pen. Eles
pensaram "Nós não somos fascistas, mas" desculpe
a expressão que vou empregar "votando em Le Pen, vamos jogar
merda no ventilador, talvez isso mude alguma coisa". Uma confusão
extrema. Isso não quer dizer que a França esteja indo para a
direita, mas é extremamente perigoso. Porque um indivíduo como Le
Pen é um fascista, um racista e, naturalmente isso lhe dá um
estatuto de pessoa aceitável, de pessoa com quem se pode discutir. Sendo
que ele é um filho da mãe, um escroto, um torturador ele
torturou na época da guerra da Argélia.
A situação de hoje, se nós analisarmos os diversos
elementos, não deve nos surpreender. O que podemos fazer agora? Estamos
um pouco como num campo em ruínas. É preciso ver que essa
situação também é o resultado da crise na qual se
encontra o capitalismo em geral, que não consegue mais ter partidos
organizados e concordando com uma certa orientação. Porque o que
acontece na França, o desgosto, a abstenção, isso
também acontece nos Estados Unidos. Lá, atualmente, há 50%
do corpo eleitoral que não se inscreveu. Desses 50% que sobram,
há 50%, ainda, que se abstêm. Quer dizer que sobra 25% de pessoas
que decidem. E decidem como? Em geral, a metade ou perto disso vota nos
democratas, e a outra metade nos republicanos. E às vezes, quando
são os democratas que ganham, eles dão um jeito para que sejam os
republicanos. Então não são nem 15% dos norte-americanos
que decidem.
Conheço um pouco os Estados Unidos, estive lá não faz
muito tempo. Todo mundo diz a mesma coisa: "Mas é igual,
você vota nos democratas ou nos republicanos, dá na mesma".
Um responsável sindical, há algum tempo atrás me disse:
"Dizem que aqui tem dois partidos, não é verdade. Só
há um partido, o do dinheiro. Falam de republicanos e de democratas, mas
poderia-se dizer demopublicano ou republicrata". Porque é a mesma
coisa. Ou quase. Uns se fazem de humanos, de esquerda etc, como o Clinton e os
outros que não têm vergonha de se mostrar como são, uns
verdadeiros filhos da mãe como o Bush. No plano geral, é a mesma
coisa, seja a Palestina, o Vietnam, o Iraque; não se sabe jamais quem
começou a guerra e quem a terminou. Porque os imperialistas têm os
mesmos interesses.
Naturalmente, nessas condições, é o próprio regime
que não funciona mais. Tomemos por exemplo a Inglaterra. Que
diferença há verdadeiramente entre Blair e Margareth Tatcher,
entre os conservadores e os trabalhistas? E que diferença houve aqui
entre Jospin socialista e Jupé, que era o primeiro ministro de direita
antes? Tem uma coisa que se dizia, e que é verdade, "o que
Jupé não conseguiu fazer ele tinha feito um plano que
não conseguiu realizar, porque havia greves, manifestações
, Jospin fez". E Jospin o fez porque muita gente que tinha votado
nele, os comunistas, os socialistas, dizia: "nós não vamos
fazer uma greve contra o Jospin, afinal ele é nosso primeiro
ministro". Até a hora em que as pessoas não votam mais. E
ocorre uma catástrofe como essa.
"Vermelho": Não acha que há também uma
crise de paradigmas da esquerda? Porque é um pouco como se ela
não tivesse nada a oferecer. E não falo só da
França, mas de outros lugares. Não é à toa que a
direita, ou a extrema-direita tomou o poder na Itália, em Portugal, na
Áustria...
Alleg:
Sim, é preciso notar que nos grandes países que você citou,
em particular na Itália, houve um fenômeno semelhante, o
desaparecimento enquanto tal do Partido Comunista Italiano. Mesmo que ainda
tenha sobrado uma base, ainda há grupos importantes de comunistas. O
povo italiano, que havia depositado tanta esperança nesse partido
comunista, de repente deparou-se com um partido socialista, ou social-democrata.
É verdade que depois da queda da União Soviética, da
idéia que o socialismo acabou, da traição de certos
partidos comunistas, evidentemente o movimento operário, não
somente da Europa, mas do mundo inteiro, ficou enfraquecido. Sem dúvida.
Mas hoje em dia, eu acho que estamos entrando numa nova fase, porque se
vêem os limites da social-democracia e desses partidos comunistas que
abandonaram seus fundamentos e princípios. E em vários lugares
está nascendo a idéia de que é necessário fundar
verdadeiros partidos de classe. Isso não quer dizer partidos
sectários, fechados, mas partidos que têm sua doutrina, seu ideal
e que são abertos a todas as outras forças. E existem, em todos
os países, outras forças que querem caminhar adiante, o que quer
dizer se ver livre do enorme poder dos monopólios, do peso do
imperialismo, em particular do imperialismo norte-americano que quer dominar o
mundo inteiro.
Parece-me que são idéias que estão sendo desenvolvidas,
reforçadas. Na minha opinião, apesar das dificuldades,
amanhã essas idéias vão se impor para a juventude.
É ao mesmo tempo muito entusiasmante ver que são os jovens que se
manifestam na rua, são os estudantes, isso é formidável. E
sem palavras de ordem que venham de qualquer partido. São eles que
decidem. Eles estão desapontados com os que pretendiam fornecer as
palavras de ordem e que foram incapazes de ver o que ia acontecer, agindo de
maneira tão hipócrita e falsa, chegando a essa catástrofe.
O que dá medo, é a ausência de partido estruturado, com uma
ideologia científica, séria. Há riscos de desvio, de
refluxo, de divisão. Nós já vimos coisas assim. Na
França, em 1968, houve pessoas, inclusive pessoas próximas de
Jospin, que se tornaram os piores anticomunistas e que tinham sido os
campeões de 1968. Eles, como se diz, fizeram primeiro uma carreira no
comunismo e depois uma outra no anticomunismo.
É isso que acho que podemos pensar hoje em dia. É evidentemente
meio genérico, mas é bem difícil dizer outra coisa. Talvez
quando as eleições legislativas acontecerem, as coisas fiquem
mais precisas. Porque muitos que não votaram e muitos que quiseram dar
uma lição, acordaram bruscamente se a perguntar-se "o que
nós fizemos?". Inclusive pessoas que não são muito
politizadas, mas que estão com vergonha de ver a França, com toda
a sua reputação de país dos Direitos Humanos, e ainda por
cima um país que dá lições ao mundo inteiro, nessa
situação tão vergonhosa para ela e para tudo o que ela
quer representar.
O original desta entrevista encontra-se em
http://www.vermelho.org.br/
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info
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