Entrevista de Henry Alleg

A derrota do PC Francês

Esta entrevista de Henry Alleg foi realizada em 29/Abr/02, antes das últimas eleições legislativas que levaram ao afundamento do governo da coligação PS-PCF dirigido por Leonel Jospin. No entanto, as ideias aqui expostas pelo autor de La Question permanecem plenamente válidas e até se pode afirmar que foram confirmadas pelos acontecimentos posteriores. A entrevista foi efectuada em Paris por uma jornalista brasileira e foi publicada no portal O Vermelho , do Partido Comunista do Brasil.


Capa da 1ª edição de 'La Question', lançado pela Ed. Minuit Alleg: Devo começar por dizer que já não sou um homem jovem. Tenho quase 81 anos e a parte mais importante da minha vida foi sempre dedicada ao trabalho de jornalista e, ao mesmo tempo, ao de militante comunista. Comecei a ser militante do Partido Comunista Francês quando tinha 20 anos. Foi no período em que o Partido era ilegal na Argélia, onde eu morava nessa época. Eu era secretário da juventude comunista. Depois, fui diretor de um jornal diário que se chamava "Alger Republicain". Ele tinha uma particularidade, era o único diário que existia nessa época na Argélia e que combatia o sistema colonial francês.

Naturalmente era uma situação muito difícil, porque a repressão era muito forte contra os que não aceitavam a dominação colonial francesa. O jornal, apesar de todas essas dificuldades, continuou a existir até o momento em que foi proibido, em 1955. A guerra de libertação havia começado em 1954. Então, em 1955 entrei para a clandestinidade e, em 1957, fui preso. Minha prisão foi feita em circunstâncias habituais na época: todos os que eram presos, eram torturados. Eu consegui escrever. Quando saí das mãos dos páraquedistas, escrevi clandestinamente um livro que se chama "A Questão". Esse livro ficou logo muito conhecido, teve uma grande difusão, apesar da sua proibição pelo governo francês. Era uma revelação para os franceses. Eles estavam se dando conta do que era a guerra colonial e a maneira com que as tropas francesas — do país que era pretensamente a pátria dos Direitos Humanos — estavam fazendo uma guerra terrível na Argélia, com atrocidades, desaparecimentos, bombardeamentos com napalm, massacres. O que os franceses até então não sabiam ou não queriam saber. Havia quem soubesse.

Então, esse livro teve uma grande difusão e eu fiquei na prisão durante quase cinco anos...

"Vermelho": Na Argélia?

Cartaz do filme 'Henri Alleg et La Question', dirigido por Laurent Heynemann Alleg: Na Argélia e na França. Fui transferido para a França. Consegui, com a ajuda do Partido Comunista Francês, fugir antes que os anos de prisão que eu deveria cumprir chegassem ao termo. Em seguida, a guerra tendo terminado, voltei para a Argélia e a ser diretor do mesmo jornal que, após a independência, tornou-se o maior jornal do país; mesmo da África do norte. Porque todo o mundo reconhecia que esse jornal e as pessoas que nele colaboravam eram verdadeiros combatentes.

Em 1965, o jornal foi novamente proibido, porque houve um golpe de estado na Argélia. A partir desse momento, vim para a França.

Trabalhei para diversos semanários, até tornar-me secretário geral do diário "L'Humanité". Ao mesmo tempo eu era adjunto do chefe de redação. E fui também, durante um bom tempo, correspondente internacional. Fiz reportagens em vários países: na União Soviética, nos países socialistas da Ásia central, nas Filipinas, na América do norte, nos países árabes. Em seguida, escrevi alguns livros, em particular sobre a guerra de independência da Argélia, mas também sobre a União Soviética, a China, os Estados Unidos, etc.

Fui membro da direção do Partido Comunista Argelino. Depois, na França, eu era apenas filiado ao Partido Comunista Francês, com responsabilidades no jornal. Mas eu não concordava com as orientações do Partido — embora fosse, e ainda seja, membro dele — nem com seu julgamento sobre os países socialistas, em particular sobre a União Soviética.

O PCF, na minha opinião, retomou todas as críticas dos piores anticomunistas e anti-soviéticos. Minha avaliação pessoal era a de que obviamente havia coisas negativas, coisas ruins e que não funcionaram, as quais deveríamos conhecer e criticar. Claro que houve, num certo momento, atentados terríveis à legalidade, inclusive alguns crimes. Não se deve fechar os olhos e negar isso mas, por outro lado, é preciso ver também tudo o que a existência da União Soviética trouxe de positivo ao mundo. Em particular aos países do terceiro mundo, na luta contra a opressão, contra o poder dos países do imperialismo. Por conseguinte, não se pode ter uma atitude radical e dizer, como o disse o secretário-geral do Partido Comunista Francês, Robert Hue, que estamos contentes pela União Soviética ter acabado. Foi o que ele disse.

Essa não é a minha posição. Acho que apesar de todas as falhas, dos erros e dos grandes defeitos que esse regime tinha, sua existência foi uma coisa muito positiva, não só para os países onde esse regime tinha sido estabelecido, em toda a União Soviética, mas igualmente, para os países exteriores a ela. Por exemplo, quando os países do terceiro mundo tinham necessidade de uma ajuda econômica, política, eles podiam se apoiar na existência da União Soviética, o que não foi mais possível a partir do momento em que esse país acabou.

Eu também não concordei, há uns dez anos, com a orientação dada pela direção, com a idéia de que era preciso abandonar tudo o que tinha feito a originalidade do Partido Comunista. Abandonar, por exemplo, a idéia de que para compreender as coisas é preciso tomar como referência princípios que a meu ver continuam válidos, mesmo que o mundo esteja mudando. Há coisas que continuam válidas porque estamos num regime capitalista. Nós não saímos desse regime, mesmo que tenha havido modificações.

Ainda há exploração do homem pelo homem, ainda há opressão dos povos pelo imperialismo e, por conseguinte, é a partir desses dados que devemos construir uma política e não abandonando esses princípios, como se tivessem saído da validade.

A segunda coisa é que, num país como a França, temos de nos apoiar nos explorados, em primeiro lugar nos trabalhadores, naqueles que sofrem mais. Entre os quais, os operários estrangeiros que são importados pelo país e que são explorados.

O Partido francês sob essa nova direção, infelizmente abandonou isso tudo.

"Vermelho": Em função de quem, dos intelectuais?

Alleg: Eu não quero dizer que deve-se abandonar os intelectuais, mas acredito que um partido comunista é antes de tudo um partido da classe dos trabalhadores. Quero dizer dos que vivem de seu salário, que são explorados pelo imperialismo e, em conseqüência, a quem é preciso abrir a perspectiva de uma nova sociedade.

Uma das características do Partido Comunista Francês durante todos os anos em que militei quando era jovem, é que ele considerava como seu dever lutar sempre ao lado dos povos que eram explorados pela sua própria burguesia. São noções que não foram varridas, mas das quais quase não se fala mais. E isso leva a posturas que, pessoalmente, e não apenas eu, mas dezenas de milhares de comunistas, que continuaram comunistas, não se pode admitir. Por exemplo, o fato de o Partido Comunista não ter condenado a agressão contra a Iugoslávia [Sérvia] pelo imperialismo norte-americano. O fato de, quando houve a guerra no Iraque, as reações do PCF terem sido muito, muito fracas. E toda uma série de ações como essas que chocam em relação às posturas anteriores de um Partido Comunista.

Por outro lado, o Partido Comunista Francês, na minha opinião, não é mais realmente um partido comunista, a partir do momento em que sua ideologia não se refere mais diretamente ao marxismo e ao leninismo, enfim, a todo o acervo do movimento operário, do movimento comunista numa escala mundial. Na prática, o que parece mais importante para esse partido é participar do governo e da administração nos negócios da burguesia. Não acredito que seja esse o papel de um partido comunista.

Isso não quer dizer que um partido comunista não possa participar do governo, claro, mas tem de participar fazendo avançar a hora da revolução e não para atrasá-la. Como quando se participa, como foi o caso, de um governo socialista, social-democrata, que está fazendo o trabalho que a direita durante muito tempo gostaria de ter feito, mas não fez com medo das reações populares. Por exemplo, a França tem empresas nacionais há muito tempo. Elas não caíram do céu. Foi uma luta travada pelos trabalhadores, principalmente no período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, para que as grandes empresas capitalistas, as que dominavam a produção do gás, da eletricidade, das ferrovias, da aviação, das minas — que quase já não existem mais —, do petróleo, do telefone, do correio, isso tudo, estivessem nas mãos da nação. Mesmo que a nação não fosse socialista. A tática da burguesia é de retomar tudo isso e privatizar. No programa dos comunistas constava a defesa das nacionalizações e a luta contra as privatizações que eram programadas pela direita.

Ora, no governo no qual eles entraram há cinco anos, o que nós vimos? Vimos que houve mais privatizações do que durante o governo anterior, de direita; e os comunistas fazem parte desse governo. Inclusive, há um ministro, Jean-Claude Guesseau, que é membro da direção do Partido e que está organizando a privatização da Air France. E o inacreditável é que se acha que os comunistas e o povo são imbecis, porque dizem que não se trata de uma privatização, mas de uma abertura de capital para o setor privado. E todo mundo fica se perguntando qual é a diferença.

Não se pode, hoje, quando se é ministro, concordar com tal orientação. Naturalmente não sou o único. Há milhares, dezenas de milhares de comunistas que manifestaram seu desacordo, que o disseram há muito tempo. Vários grupos que se criaram em resistência a essa liquidação.

Por outro lado, fora esse programa, que está sendo deixado de lado, fora a ideologia, que está sendo abandonada, há o que está sendo feito no plano da organização do Partido. O que é um partido para os comunistas? É uma ferramenta, é um instrumento para encaminhar a luta. Conseqüentemente, esse instrumento deve ser constantemente educado, formado, para ser capaz de trazer as massas em torno desse partido. Então é preciso dar uma educação a toda essa gente, é necessário haver grupos, células, onde educa-se, fala-se, aprende-se. Ora, a nova orientação do Partido é a destruição das células, dos grupos, das discussões. As pessoas se filiam ao partido, às vezes vão às reuniões, às vezes não... Quer dizer que a noção de um verdadeiro partido comunista foi completamente destruída.

A conclusão é dada pelos próprios números, e não nos surpreende. O Partido há dez anos atrás, segundo eles, contava com 550 mil membros. Pouco a pouco, esse número foi caindo para 300 mil, de acordo com os dados que eles mesmos dão.

Depois, caiu para 150 mil e, agora, eles dizem que há 130 mil, mas na verdade há muito menos. Onde essa gente toda foi parar? Será que de repente deixou de ser comunistas? Essa gente continuou comunista, mas está insatisfeita. Insatisfeita com o que os dirigentes dizem, com a política deles, com a destruição do Partido e com os próprios dirigentes.

Tudo isso para chegar às últimas eleições. Elas são para o conjunto da esquerda uma verdadeira catástrofe. Mas a maior catástrofe foi para o Partido Comunista. Porque percebe-se, no final das contas, que a extrema-direita fascista de Le Pen obteve, se considerarmos toda a extrema-direita, quase 20%. O que parece enorme. Mas se observarmos mais de perto os números, contrariamente à impressão que os jornais, as rádios, todas as manchetes dão, não se trata de uma vitória incontestável da extrema-direita. Porque nas últimas eleições presidenciais, em 1995, há sete anos, Le Pen e a extrema-direita tiveram, no seu conjunto, 11,8%. E agora eles têm 13,55%. Quer dizer que o ganho exato — não em função das porcentagens dos resultados — de Le Pen foi de 1,75. Longe de uma grande vitória.

Mas por que há essa impressão? Porque há uma porcentagem enorme de abstenção. Porque o Partido Socialista desmoronou, perdeu quase 3%. O Partido Comunista perdeu quase 4,5%, de maneira que agora não tem nem 3%, o que significa um desmoronamento completo. Foi o partido que mais perdeu. Ele tinha 6,75 e está com 2,38%. Quer dizer que o que marcou o sucesso de Le Pen foram: a abstenção, a perda dos socialistas e a perda dos comunistas. (Esses votos foram também para a extrema-esquerda trotskista.) A direita clássica de Jacques Chirac e companhia também perdeu muito. Evidentemente todas essas perdas consideráveis fizeram com que a porcentagem de Le Pen aumentasse. Mas em votos, não é um maremoto, não é a onda que submerge tudo como querem fazer crer.

Apesar disso, a situação é bastante grave. A esquerda esteve no poder durante cinco anos. E o povo está dando um tapa na cara dessa esquerda que não cumpriu nenhuma das grandes promessas que tinha feito. Nem no plano da defesa da saúde pública e da aposentadoria que estão sendo ameaçadas...

"Vermelho": E a jornada de 35 horas semanais de trabalho?

Alleg: Faz-se muito barulho em torno das 35 horas. Algumas pessoas estão satisfeitas. Mas, em primeiro lugar, é uma porcentagem muito reduzida. Depois, as 35 horas não foram seguidas de um ganho real, nem em termos de menos trabalho, nem em termos de mais dinheiro. E no que diz respeito ao emprego, há um aspecto enganoso. Porque é verdade que foram criados empregos, mas quando estes são considerados no seu conjunto, vê-se que são empregos de salários baixíssimos. Quer dizer que para muitos, o fato de não trabalhar é mais vantajoso do que trabalhar nos empregos que lhes são oferecidos. Por outro lado, não é uma coisa suficientemente marcada para que as pessoas digam que estamos indo no bom sentido. Ao contrário, há o medo que as coisas sejam ainda piores.

Há a questão da Europa. Isso é mais que um escândalo, é uma vigarice da parte daqueles que dirigem o Partido. Ninguém falou da Europa. Ora, esta Europa que se diz Estados Unidos da Europa, de acordo com a análise de uma grande parte dos democratas, não apenas dos comunistas, não é uma Europa que vai no sentido de uma melhora das condições de vida dos pobres, da classe operária. Ela está sendo tomada pelos grandes banqueiros, pelos grandes industriais. Eles se unem para explorar ainda mais os povos europeus.

Certas leis francesas estão sendo consideradas como não válidas a partir do momento em que existe uma lei européia que a contradiz. Um exemplo, entre vários, é o do trabalho noturno das mulheres. Deve-se levar em conta que a constituição feminina não é como a masculina e que os homens, num trabalho cansativo, muscular, físico, agüentam mais que as mulheres. É assim. Talvez daqui a 2 mil anos a coisa seja diferente. Sem falar que para as mulheres há a maternidade, etc. Bom, era uma conquista progressista essa, das mulheres não trabalharem à noite. Ora, com as leis européias, em nome da igualdade e tudo o mais, agora as mulheres podem trabalhar à noite. E ainda por cima, enquanto na França as crianças não podiam trabalhar até completarem 16 anos, de acordo com a lei européia elas podem começar a partir de 13 anos. Há muitas coisas desse tipo. E por quê? É muito claro. Porque há lucro para as grandes empresas em fazer as mulheres, as crianças trabalharem.

Isso acontece na Europa. Há países onde as crianças trabalham. E não estou falando de dezenas de milhares de crianças, mas de centenas de milhares. Não estou falando da Malásia ou do Brasil, mas da Europa, que se diz civilizada. Em Portugal, no sul da Itália, na Grécia, na Turquia — que vai entrar na Europa. Por questões pretensamente econômicas, adaptam-se as leis. Então, na França, coisas que tinham sido varridas pela luta dos trabalhadores, acabam voltando. E há ainda outros aspectos que são totalmente opostos ao interesse nacional francês.

"Vermelho": E paradoxalmente, parece que Le Pen é o único que se opõe à Comunidade Européia...

Alleg: De fato. Mas isso é uma espécie de traição, não há outra expressão, daqueles que se comprometeram a lutar contra essa Europa. Porque não se pode esquecer que houve um plebiscito na França, há uns sete, oito anos atrás. E esse plebiscito foi muito apertado. Por muito pouco, não ganhou o NÃO à Europa, como na Dinamarca. Deu 49 vírgula alguma coisa por cento. O Partido, na época, tinha defendido a idéia de que não estávamos contra a união dos países da Europa, mas contra essa união em particular. E era uma velha questão para os comunistas, porque já se falava nessa idéia dos Estados Unidos da Europa na época de Lênin. Lênin havia explicado que se são os capitalistas a organizar isso, será evidentemente no interesse deles e não no dos trabalhadores. Conseqüentemente os povos devem lutar contra. Depois vê-se. Não somos contra os Estados Unidos da Europa, mas, enfim, não é algo que esteja na ordem do dia.

O Partido havia feito uma grande campanha, havíamos feito petições. Recolheu-se 700, 800 mil assinaturas, com a idéia de que era necessário impedir essa Europa que, se se concretizasse como era descrita, seria um golpe mortal contra a existência da nação. De um dia para outro, tudo isso acabou. Quando os comunistas entraram no governo com os socialistas, esses últimos disseram para eles pararem com a campanha contra a Europa e eles pararam. E há 700 ou 800 mil assinaturas que os camaradas recolheram subindo e descendo os andares, que devem estar nos porões das seções do Partido, porque eles não tiveram nem a coragem de dizer "bem, nós vamos pegá-las e entregá-las ao Primeiro Ministro, ao Presidente da República, já que nós pedimos às pessoas que assinassem". Nem isso foi feito. Abandonou-se uma posição de princípio para compor com os socialistas.

Então, eles acham que as pessoas são imbecis, que o indivíduo que assinou esqueceu. Em toda a campanha [presidencial], ninguém falou da Europa, a não ser, como você disse, a direita.

"Vermelho": Inclusive, é por isso que há toda essa unanimidade contra Le Pen no seio da Europa. Porque mesmo gente como Berlusconi diz que Le Pen é um horror, sendo que ele é um deles...

Alleg: Sim. Le Pen o faz por demagogia. Ele é inteligente e entendeu muito bem que havia uma coisa que os franceses não estavam engolindo. E que ele podia explorar, já que os comunistas não falam mais no assunto e os socialistas e todos os outros são a favor da Europa. Mesmo Chévènement [ex-ministro de Jospin] na sua campanha eleitoral não falou muito no assunto, sendo que antes tinha se apresentado contra a Europa. Então Le Pen aparece como o super patriota. Aquele que defende a pátria francesa contra os que querem liquidá-la, submergi-la.

O Partido Comunista votou em tudo o que os socialistas quiseram. E quando era algo impossível de engolir, porque era demais, calculavam: "se nós nos abstivermos, a proposta do governo vai passar de qualquer jeito"; e havia uma espécie de acordo tácito entre Jospin e a direção do Partido. Eles diziam "Bom, você precisa compreender, se nós votarmos nessa lei, vai ficar difícil para nós, então vamos nos abster. Isso não mudará nada, porque de qualquer modo você tem um número suficiente de votos para passar a lei e nós não ficaremos tão sujos". Isso também é acreditar que os eleitores, e particularmente os comunistas, não vêem essas coisas. Eles vêem. E na última hora, tomado de pânico, três meses antes das eleições, Robert Hue vem com essa: "Não é possível, esse governo e essas privatizações. Esqueceram as reivindicações, a saúde pública, a aposentadoria, tudo isso, assim não dá. E nós dissemos ao governo que era preciso ser mais de esquerda", etc. E quando perguntamos a ele, "Está certo, mas no segundo turno, em quem você vai votar?". Porque é esse o problema. Isso é só conversa para boi dormir. Se no segundo turno ele vota Jospin, quer dizer que eles recolheram votos, mesmo dos que estavam descontentes, e depois, no segundo turno, vão dá-los a Jospin. E ele não podia dizer "Eu não vou votar no Jospin".
Muitos se deram conta, que não dava pé, particularmente os comunistas. Por isso houve abstenções, as pessoas estavam decepcionadas. Houve votos em Arlette Laguiller e em Besancenot, que são candidatos trotskistas, mas que retomam as palavras de ordem dos comunistas: luta pelo aumento dos salários, luta pela defesa da saúde pública, luta contra o trabalho intermitente. Com exceção da Europa. É um pouco como no Brasil, onde as questões nacionais não interessam os trotskistas. Os comunistas, que não são trotskistas — até meus filhos — pensaram "vou votar neles para dar uma lição, nós somos comunistas, mas nós não admitiremos isso, nós vamos votar de outro jeito, talvez isso dê uma lição aos dirigentes". Naturalmente eu não concordava com isso, mas também não concordava em votar no Robert Hue, porque se ele e o Partido Comunista tivessem uma grande votação, isso quereria dizer que a política deles é certa, que é preciso continuar assim.
Então muitos comunistas se abstiveram. Eles se perguntavam o que podiam fazer. E, no pior dos casos, porque isso aconteceu também, alguns operários que antes votavam nos comunistas, votaram em Le Pen. Eles pensaram "Nós não somos fascistas, mas" — desculpe a expressão que vou empregar — "votando em Le Pen, vamos jogar merda no ventilador, talvez isso mude alguma coisa". Uma confusão extrema. Isso não quer dizer que a França esteja indo para a direita, mas é extremamente perigoso. Porque um indivíduo como Le Pen é um fascista, um racista e, naturalmente isso lhe dá um estatuto de pessoa aceitável, de pessoa com quem se pode discutir. Sendo que ele é um filho da mãe, um escroto, um torturador — ele torturou na época da guerra da Argélia.
A situação de hoje, se nós analisarmos os diversos elementos, não deve nos surpreender. O que podemos fazer agora? Estamos um pouco como num campo em ruínas. É preciso ver que essa situação também é o resultado da crise na qual se encontra o capitalismo em geral, que não consegue mais ter partidos organizados e concordando com uma certa orientação. Porque o que acontece na França, o desgosto, a abstenção, isso também acontece nos Estados Unidos. Lá, atualmente, há 50% do corpo eleitoral que não se inscreveu. Desses 50% que sobram, há 50%, ainda, que se abstêm. Quer dizer que sobra 25% de pessoas que decidem. E decidem como? Em geral, a metade ou perto disso vota nos democratas, e a outra metade nos republicanos. E às vezes, quando são os democratas que ganham, eles dão um jeito para que sejam os republicanos. Então não são nem 15% dos norte-americanos que decidem.
Conheço um pouco os Estados Unidos, estive lá não faz muito tempo. Todo mundo diz a mesma coisa: "Mas é igual, você vota nos democratas ou nos republicanos, dá na mesma". Um responsável sindical, há algum tempo atrás me disse: "Dizem que aqui tem dois partidos, não é verdade. Só há um partido, o do dinheiro. Falam de republicanos e de democratas, mas poderia-se dizer demopublicano ou republicrata". Porque é a mesma coisa. Ou quase. Uns se fazem de humanos, de esquerda etc, como o Clinton e os outros que não têm vergonha de se mostrar como são, uns verdadeiros filhos da mãe como o Bush. No plano geral, é a mesma coisa, seja a Palestina, o Vietnam, o Iraque; não se sabe jamais quem começou a guerra e quem a terminou. Porque os imperialistas têm os mesmos interesses.
Naturalmente, nessas condições, é o próprio regime que não funciona mais. Tomemos por exemplo a Inglaterra. Que diferença há verdadeiramente entre Blair e Margareth Tatcher, entre os conservadores e os trabalhistas? E que diferença houve aqui entre Jospin socialista e Jupé, que era o primeiro ministro de direita antes? Tem uma coisa que se dizia, e que é verdade, "o que Jupé não conseguiu fazer — ele tinha feito um plano que não conseguiu realizar, porque havia greves, manifestações —, Jospin fez". E Jospin o fez porque muita gente que tinha votado nele, os comunistas, os socialistas, dizia: "nós não vamos fazer uma greve contra o Jospin, afinal ele é nosso primeiro ministro". Até a hora em que as pessoas não votam mais. E ocorre uma catástrofe como essa.

"Vermelho": Não acha que há também uma crise de paradigmas da esquerda? Porque é um pouco como se ela não tivesse nada a oferecer. E não falo só da França, mas de outros lugares. Não é à toa que a direita, ou a extrema-direita tomou o poder na Itália, em Portugal, na Áustria...

Alleg:
Sim, é preciso notar que nos grandes países que você citou, em particular na Itália, houve um fenômeno semelhante, o desaparecimento enquanto tal do Partido Comunista Italiano. Mesmo que ainda tenha sobrado uma base, ainda há grupos importantes de comunistas. O povo italiano, que havia depositado tanta esperança nesse partido comunista, de repente deparou-se com um partido socialista, ou social-democrata.

É verdade que depois da queda da União Soviética, da idéia que o socialismo acabou, da traição de certos partidos comunistas, evidentemente o movimento operário, não somente da Europa, mas do mundo inteiro, ficou enfraquecido. Sem dúvida. Mas hoje em dia, eu acho que estamos entrando numa nova fase, porque se vêem os limites da social-democracia e desses partidos comunistas que abandonaram seus fundamentos e princípios. E em vários lugares está nascendo a idéia de que é necessário fundar verdadeiros partidos de classe. Isso não quer dizer partidos sectários, fechados, mas partidos que têm sua doutrina, seu ideal e que são abertos a todas as outras forças. E existem, em todos os países, outras forças que querem caminhar adiante, o que quer dizer se ver livre do enorme poder dos monopólios, do peso do imperialismo, em particular do imperialismo norte-americano que quer dominar o mundo inteiro.

Parece-me que são idéias que estão sendo desenvolvidas, reforçadas. Na minha opinião, apesar das dificuldades, amanhã essas idéias vão se impor para a juventude. É ao mesmo tempo muito entusiasmante ver que são os jovens que se manifestam na rua, são os estudantes, isso é formidável. E sem palavras de ordem que venham de qualquer partido. São eles que decidem. Eles estão desapontados com os que pretendiam fornecer as palavras de ordem e que foram incapazes de ver o que ia acontecer, agindo de maneira tão hipócrita e falsa, chegando a essa catástrofe. O que dá medo, é a ausência de partido estruturado, com uma ideologia científica, séria. Há riscos de desvio, de refluxo, de divisão. Nós já vimos coisas assim. Na França, em 1968, houve pessoas, inclusive pessoas próximas de Jospin, que se tornaram os piores anticomunistas e que tinham sido os campeões de 1968. Eles, como se diz, fizeram primeiro uma carreira no comunismo e depois uma outra no anticomunismo.

É isso que acho que podemos pensar hoje em dia. É evidentemente meio genérico, mas é bem difícil dizer outra coisa. Talvez quando as eleições legislativas acontecerem, as coisas fiquem mais precisas. Porque muitos que não votaram e muitos que quiseram dar uma lição, acordaram bruscamente se a perguntar-se "o que nós fizemos?". Inclusive pessoas que não são muito politizadas, mas que estão com vergonha de ver a França, com toda a sua reputação de país dos Direitos Humanos, e ainda por cima um país que dá lições ao mundo inteiro, nessa situação tão vergonhosa para ela e para tudo o que ela quer representar.

O original desta entrevista encontra-se em http://www.vermelho.org.br/

Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info

07/Out/02