França: Crise política sem alternativa?

por Maurice Cukierman [*]

. Há um ano, a imprensa internacional e nacional interrogava-se com gravidade sobre as eleições presidenciais francesas. Falou-se de maremoto, de terramoto: o neofascista Le Pen ficava em segundo lugar na primeira volta, logo após Chirac e à frente de Jospin, o candidato que dirigira o Governo durante cinco anos à frente de uma coligação denominada de «esquerda pluralista». Foi a estupefacção. Eu regressava de Roma nessa noite, de comboio, com um grupo de professores. Não me lembro de ter vivido um ambiente semelhante: de uma ponta à outra do comboio, toda a gente se interpelava, assustada, os italianos referiam-se a Berlusconi, os franceses culpabilizavam-se e, na Gare de Lyon, apertámos a mão ao revisor, desejando-nos mutuamente coragem. Imediatamente no dia seguinte, os jovens dos liceus e das universidades começavam a sair para as ruas. Em alguns dias, erguia-se um movimento democrático para barrar o caminho a Le Pen, que culminou no Primeiro de Maio, com mais de um milhão de pessoas nas ruas das grandes aglomerações. Na segunda volta, Chirac era eleito com um resultado de 82% dos votos expressos numa percentagem de eleitores equivalente.

Todavia, para se compreender a situação política, temos de analisar o próprio resultado, pois não é em ter ou não Le Pen na segunda volta que reside o terramoto. Os resultados não foram mais do que a manifestação perigosa de uma crise política profunda, cujos elementos não cessavam de se manifestar, mas cujos efeitos tanto todos os «observadores» como os partidos políticos pensavam que seriam temperados pelo jogo da alternância – esquerda-direita e vice-versa – e pelo matraquear das sondagens de opinião. Esta crise política manifesta-se por várias facetas: de ano para ano o número de abstencionistas assume proporções à americana, com uma forte subida (que nunca foi realmente tomada em conta) dos boletins brancos e nulos. É um facto que, tradicionalmente, os eleitores ignoram determinados escrutínios, como as eleições départementalles [1] e as eleições europeias (mas neste caso é revelador). Em contrapartida, se até agora havia acto eleitoral que funcionava em pleno, eram as presidenciais, com o seu carácter altamente mistificador! O debate político é indigente, a oferta mediática tende a circunscrever a escolha entre duas personalidades divididas no pormenor e profundamente convergentes no essencial: o capitalismo monopolista é o melhor dos mundos possíveis!

Ora, desta vez, os recordes de abstenções/brancos e nulos eram batidos (mais de 30%) e, sobretudo, pela primeira vez, nenhum candidato ultrapassava os 20% dos votos expressos. O número de candidatos não explica nada, por dois motivos: o primeiro é que em 1988 havia também um grande número de candidatos (14 em lugar de 16), mas a dispersão não interferira; o segundo é que a multiplicidade das escolhas deveria ter mobilizado o eleitorado (e, observando melhor, foi precisamente o que se passou). Note-se aliás que o resultado de Le Pen não foi posto em causa pelo resultado de Mégret, que pescava nas mesmas águas (na configuração das eleições anteriores, em que os neofascistas não estavam divididos, Le Pen podia alcançar o primeiro lugar na primeira volta, mas não atingia os 20%).

Segundo elemento da crise: os partidos governamentais – os que participaram nos diferentes governos desde 1981, ou seja, o PS, o PCF, os Radicais de Esquerda, os Verdes pela «esquerda» e o RPR (Chirac), a UDF (Bayrou e a antiga formação de Valéry Giscard d'Estaing) e três outros candidatos pela direita, entre os quais o chefe de fila dos «neoliberais» (Alain Madelin) – obtinham apenas 42% dos inscritos, perdendo cerca de 6 milhões de eleitores. Paralelamente, dois dos candidatos trotskistas, apesar de adversários, passavam à frente do PCF e o seu sufrágio global progredia de 83%; Jean-Pierre Chevènement, em ruptura com o PS, e um candidato à caça e à pesca de votos em ruptura com o RPR, atingiam em conjunto 10%, e os neofascistas cerca de 20%. Em resumo, as eleições presidenciais traduziram uma rejeição em massa do quadro de representação política das forças sociais em presença. E é aqui que reside o indício mais significativo e mais grave da crise política. Pois não surgiu nenhuma alternativa política portadora de renovação ou de mobilização popular, tal como o demonstraram as eleições legislativas que se seguiram: a abstenção acentuou-se, e sobretudo o debate político foi ainda mais confrangedor do que o anterior.

Falta de confiança e perda dos pontos de referência

Esta crise não cai do céu. Ela afecta todos os partidos políticos e o movimento sindical, assim como o que se convencionou chamar direita e esquerda, e constitui o resultado de uma política. Tendo surgido após as desilusões Mitterrand, a política da Esquerda Pluralista coroou o desastre: durante cinco anos, as privatizações foram sistemáticas (atingindo um número sem precedentes), a legislação do trabalho foi esquartejada, as benesses ao patronato sucederam-se. A famosa lei «das 35 horas» é, a este respeito, emblemática e permite determinar um pouco melhor o grau de desilusões no seio da classe operária. Esta lei foi instituída por três anos, o que permitiu aos patrões acentuar a racionalização da exploração, intensificando os ganhos de mais-valia relativa. Lei-quadro, a sua aplicação devia decorrer não de negociações de convenções colectivas por ramos de actividade ou indústria, mas de negociações de empresas. O tempo de trabalho era calculado ao ano (velha reivindicação patronal retomada pela União Europeia), o que teve como consequência o fim das horas extraordinárias sazonais, mas também do desemprego parcial indemnizado, na medida em que a totalidade era recuperada em redução do tempo de trabalho (folga de recuperação se o número de horas fosse ultrapassado na quota das horas anuais, apenas as horas em excesso eram pagas como horas extraordinárias, mas anualmente). O Governo, com o apoio da CGT e do PCF, alegava que a lei permitiria aumentar os postos de trabalho e reduzir o desemprego. Ora, na realidade, a lei, não só não trouxe o aumento massivo de postos de trabalho anunciado, como conseguiu desorganizar os serviços públicos, pois o Governo deu o exemplo: não criou novos postos e, em determinados casos, a aplicação da lei traduziu-se por um agravamento das condições de trabalho. E que dizer da lei sobre os despedimentos «bolsistas» [2] - - um emplastro numa perna de pau , da lei sobre a «modernização social», que o PCF avalizou depois de um pseudo braço de ferro com o governo, coroada por uma decisão do Conselho Constitucional que levou a que o capitalismo fosse o sistema de referência constitucional? Não admira que, segundo a expressão de Sartre, houvesse motivos para desesperar Billancourt... só que, entretanto, a Renault tinha sido privatizada e Billancourt encerrada [3] .

O mundo do trabalho destabilizado, um medo latente do amanhã, o contra-golpe da derrota do sistema socialista, a inquietação perante uma União Europeia aceite por todos os partidos políticos e que cultiva o pessimismo e o fatalismo, o desemprego dos jovens e a precaridade generalizada, a multiplicação dos planos de despedimento para os trabalhadores com mais de 50 anos quando os mais ricos vivem dias melhores (um dado notório: a diferença de rendimentos entre os ordenados do pessoal assalariado das grandes sociedades monopolistas e os vencimentos das suas direcções, que em 1982 era de 1 para 40, passou actualmente a 1 para mais de 500, e isto sem ter em conta os rendimentos financeiros, as acções e outros prémios de presença) – são uma parte do cenário do drama social revelado pelos resultados eleitorais. A liquidação do PCF pela sua direcção e do sindicalismo de luta de classes pela da CGT são a outra parte: a dessindicalização na maior parte dos sectores atingiu valores sem precedentes (devendo ainda ter-se em conta a repressão patronal e a ausência generalizada de resposta), o PCF perdeu o essencial das suas forças militantes, a sua implantação territorial está em considerável recuo (de facto, a implantação reduz-se às municipalidades que dirige, mas em cada perca constata-se que a organização se desmorona), tendo praticamente desaparecido das empresas. É verdade que, nas legislativas, o PCF obterá mais de vinte lugares, graças à transferência de votos socialistas, mas esse elemento apenas sublinha o fosso existente entre um sistema político bloqueado e a realidade política. Anunciando, algumas semanas mais tarde, num jornal burguês, a sua retirada da direcção executiva do PCF após o congresso que deveria realizar-se em Abril de 2003, Robert Hue, imitando Gorbatchev, anunciava que ia criar uma fundação de estudos políticos (?). Para quando os anúncios publicitários para as pizzas Hut? Mas a mutação por ele conduzida deixava o seu partido exangue, mesmo do ponto de vista financeiro: é tal o endividamento que os bancos lhe recusam novos empréstimos e o Humanité abriu o seu capital (é assim que se diz) a capitalistas «amigos do pluralismo da imprensa», como o recentemente finado Lagardère (falecido em Abril de 2003). Este elemento é emblemático por dois motivos: o grupo Lagardère pertence à fina flor da indústria militar do imperialismo francês e tem como objectivo o controlo total da imprensa e das edições, à imagem de um Berlusconi ou de um Murdoch.

O governo Chirac-Raffarin

Se a social-democracia faz a cama da reacção, quando esta última apanha as rédeas então perde as estribeiras! Deste ponto de vista, o governo Raffarin-Chirac é quase uma caricatura. A sua composição merece que nos detenhamos uns instantes. Raramente, desde os primeiros governos gaullistas de 1958 a 1962, a oligarquia financeira tará estado tão directamente representada num governo. Se Raffarin é um político de província, ligado à burguesia católica do Oeste da França (Poitiers/Châtellerault), foi escolhido para o Interior Nicolas Sarkozy, presidente da câmara da muito burguesa cidade de Neuilly sur Seine, personagem cujas posições securitárias e autoritárias – e cujo racismo está à flor da pele – são inquietantes para as liberdades democráticas. O irmão de Nicolas é membro da direcção nacional da organização patronal (o MEDEF), estando a família ligada à metalurgia. Na Economia e Finanças, Francis Mer, que vem, como se diz, da «sociedade civil», essa nebulosa da sociologia barata. Vem sobretudo do MEDEF e da metalurgia. É de registar que é membro da associação Confrontation, organização criada por Philippe Herzog, antigo membro do Secretariado Político do PCF, que neste momento já abandonou, mas sobre cuja lista se mantém como deputado europeu; essa associação tem em vista reunir representantes «abertos» do mundo dos negócios e da indústria, sindicalistas, igualmente «abertos» aos interesses do patronato, e homens políticos «de esquerda».

Entre o mês de Julho de 2002 e o mês de Fevereiro de 2003, embalado na ilusão de uma base social de apoio alargada, este governo fez passar, com a sua maioria, uma série de decisões que ilustram bem as suas características sociais: supressão da referência às 35 horas na lei acima referida (continuando contudo a pôr em causa os direitos sociais); supressão das limitações aos despedimentos; baixa dos impostos sobre os rendimentos; redução drástica das despesas públicas de carácter social, mas orientação no sentido de um aumento das verbas militares; malabarismos eleitorais tendo em vista encerrar a escolha dos eleitores entre a UMP (União da Maioria Presidencial) e o PS, pondo em causa a proporcional nacional nas eleições europeias e alterando o modo de escrutínio nas eleições regionais. Evidentemente, o Governo aproveitou em certa medida a oposição à guerra contra o Iraque manifestada por Jacques Chirac, tanto mais que a oposição parlamentar – tanto o PCF como o PS – apoiava a sua política externa, preconizando a União Sagrada. No congresso da CGT, de que voltaremos a falar, o seu secretário-geral, Bernard Thiebault, tomaria a mesma posição. É evidente que esta posição, que punha de lado a análise das contradições interimperialistas, só podia legitimar a maioria reaccionária e respectivo governo. Deste modo, a «esquerda» tal como o movimento sindical avalizaram as resoluções do Conselho de Segurança da ONU sobre o desarmamento unilateral do Iraque e os ultimatos que as acompanhavam, ao mesmo tempo que estavam tão preocupados em condenar o regime de Sadam Hussein que, em determinados momentos, levavam a água ao moinho de Bush para legitimar a agressão. Pior ainda, pudemos ouvir dirigentes do PCF utilizar o argumento: «Mas porquê o Iraque, se se deixa as mãos livres aos norte-coreanos, que possuem armas de destruição massiva e cujo regime é criminoso?»

Contudo, no final do mês de Dezembro, deu-se um acontecimento cuja importância só foi avaliada por alguns observadores: aproveitando o apoio da Federação CGT da Energia (e evidentemente dos outros sindicatos reformistas, sendo no entanto a CGT largamente maioritária), o Governo lançava-se na revisão do estatuto dos funcionários do gás e electricidade, em especial do seu regime de pensões, revisão essa que precedia a privatização da empresa. Para dar toda a grandiloquência necessária à operação, as organizações sindicais e o governo (já no mês de Junho parece ter-se realizado um encontro entre o secretário da Federação CGT da Energia, Denis Cohen, e o Presidente da República) decidiram que o acordo seria confirmado por um referendo dos trabalhadores da empresa. Se a CFDT apelava a votar a favor, por seu lado a CGT decidia não dar indicação de voto, fazendo ao mesmo tempo uma análise positiva do acordo, sob pretexto de que os trabalhadores tinham a maturidade necessária para decidirem por si próprios. O referendo deu lugar a uma batalha intensa, na qual a direcção se empenhou a fundo pelo sim , enquanto na base os trabalhadores, em especial os militantes da CGT, se mobilizavam para organizar a campanha do não . O escrutínio, uma semana antes, prometia ser extremamente cerrado, com uma ligeira vantagem para o sim . Denis Cohen, desprezando as decisões da Direcção Federal, apelava então a votar sim . Os dados pareciam lançados; a reacção e o patronato já esfregavam as mãos: a vitória do sim anunciava a desmoralização sindical e política da classe operária, já bastante enfraquecida. Porém, o resultado do referendo foi uma derrota completa da direcção da empresa e das direcções sindicais traidoras. O não ganhou com mais de 60% dos votos expressos (mais de 80% dos inscritos). Melhor ainda, os jovens tinham votado massivamente não , a ponto de, abstraindo-se os reformados (que têm a particularidade de continuarem a fazer parte do pessoal da empresa), o não passava a barra dos 70%. Com efeito, os antigos trabalhadores, tendo no entanto sido os artesãos dos sucessos dos trabalhadores da EDF-GDF, empresa-piloto criada na época da Libertação pelas forças da Resistência sob a direcção do comunista Marcel Paul, tinham sido mais sensíveis à «disciplina» sindical, mesmo renegando os combates em que se tinham empenhado. Pode-se considerar que o referendo da EDF é um dos acontecimentos mais importantes da história social destes últimos anos (o reverso da capitulação dos dirigentes reformistas tanto do PCF como da CGT), que constitui o testemunho do enraizamento das posições de classe no movimento operário. E, numa forma diferente, mas exprimindo o mesmo movimento, descobria-se sem ambiguidade que esta situação tendia a prevalecer em partes consideráveis da classe: no mesmo momento, nos resultados das eleições prud'hommales [4] , via-se a abstenção atingir números sem precedentes, tendo a CGT sofrido um grave abandono pelos trabalhadores, continuando no entanto a ser a primeira organização (mas passando para a segunda posição, depois da CFDT, em Hauts-de-Seine, que é o departamento mais industrializado, onde se situava Renault-Billancourt). O quadro sindical constituído tende a deixar de corresponder às aspirações da sua base social.

O congresso da CGT, em lugar de esclarecer as ambiguidades, precipitou a fuga para a frente no sentido de um sindicalismo dito «reagrupado» em matéria de acompanhamento da política monopolista: apoio a Chirac na política externa («Não temos nada a contestar em relação à política do Presidente da República sobre o Iraque» – B. Thiebault); recusa de iniciar uma campanha de defesa das pensões – face aos ataques que ganhavam corpo – com base na solidariedade do sector privado e do sector público. Com efeito, desde 1993, no sector privado, os trabalhadores têm de cotizar 40 anos para terem direito a uma reforma por inteiro (75% do salário médio dos 25 melhores anos de cotização). O sector público, após as greves de 1995, conservava 37 anos e meio e o cálculo fazia-se em relação aos seis últimos meses. Deste modo, uma parte dos militantes e determinadas federações (funcionários) pediam que fosse adoptada a palavra de ordem «37 anos e meio para todos, revogação dos decretos Balladur» [5] . Desenvolvendo todas as energias possíveis e utilizando métodos pouco gloriosos, a direcção confederal impediu a adopção desta palavra de ordem, bebendo a sua argumentação na campanha ideológica das burguesias europeias, através da União Europeia e dos governos, que visa reduzir o montante das pensões e fazer recuar a idade da reforma. Ao mesmo tempo, o Congresso pronunciava-se por uma gestão social do desemprego: em nome da formação permanente, os trabalhadores nunca mais seriam «desempregados». Quando o patronato já não precisasse deles, seriam enviados, com um subsídio, para programas de «formação», pagos pelo Estado (na realidade pelos impostos que esses mesmos trabalhadores pagam). Fora o desemprego! Compreende-se que Thiebault tenha podido fazer ironia sobre a «consciência de classe», e sobretudo que, no congresso do Partido Socialista, algumas semanas mais tarde, tenha sido ovacionado de pé pelos congressistas de todas as tendências!

Reformas extremamente graves!

Nestas circunstâncias, durante a Primavera, vimos a burguesia francesa e o seu governo – face a um Partido Socialista completamente anestesiado pela sua derrota do ano passado e incapaz de propôr uma alternativa minimamente digna de crédito (o seu programa, sem grandes diferenças de fundo, apenas difere do da direita quanto à intensidade e quanto à forma) e a um movimento sindical integrado e disposto «a negociar» o desmantelamento das conquistas dos trabalhadores – passar a uma segunda etapa das reformas almejadas: a descentralização e as pensões.

A descentralizaão é, há quase quarenta anos, um dos temas recorrentes da vida política francesa. Iniciada por Giscard d'Estaing, aprofundada pelos socialistas em 1982-1984, hoje a burguesia pretende ir mais longe. Note-se (o que não surpreenderá ninguém) que essa descentralização está nos antípodas da democratização de que o país necessita: os Prefeitos continuam a exercer a sua fiscalização, os organismos eleitos são rigorosamente enquadrados e, como acontece actualmente com praticamente todos os órgãos representativos nos países capitalistas, têm tendência a ser meras câmaras de registo, dado que os chefes dos executivos monopolizam as decisões. Mas, para além disso, as propostas de Raffarin traduzem a vontade de alterar o quadro institucional existente. Que isso se inscreve numa estratégia europeia é incontestável, mas limitar-se a esse aspecto parece-nos extremamente redutor, sobretudo se isso for considerado como o desmantelamento da República (quando são os resíduos da democracia burguesa que são visados) ou como uma qualquer vontade hegemónica da Alemanha. Porque os projectos em curso correspondem sem sombra de dúvida, e antes de mais nada, à vontade dos monopólios de aumentarem a sua dominação do país, de canalisarem ainda mais os capitais disponíveis, de acentuarem a recolha das mais-valias e de conseguirem uma melhor posição na concorrência com os seus aliados-rivais da União Europeia e de além-atlântico. Em suma, essas reformas seriam levadas a cabo, quanto ao fundo, mesmo se a União Europeia não existisse.

Trata-se, de acordo com a chamada ideologia neoliberal dominante, de reduzir o aparelho central do Estado, por um lado, às suas funções regalianas (funções repressivas e guerreiras e de política externa) e, por outro lado, às tarefas exigidas actualmente pelo capitalismo monopolista de Estado, tendo em conta a contestação do compromisso histórico saído da Segunda Guerra Mundial. Trata-se da coordenação dos interesses monopolistas, de canalisar exclusivamente para os monopólios o máximo da parte das mais-valias que eram recolhidas socialmente pelo Estado sob a forma de impostos, pondo em causa o imposto proporcional sobre os rendimentos (donde a tendência à diminuição dos referidos impostos para as fracções correspondentes aos rendimentos elevados: desse modo, desde 1985, a direita e os socialistas/esquerda pluralista reduziram a tributação sobre a parte mais elevada de 62% para 48%; a parte do imposto sobre as empresas baixou bastante, ao passo que os impostos indirectos, que atingem os menos favorecidos, passaram para 45% do orçamento). Essa política é seguida em todos os países imperialistas. O projecto de Chirac-Raffarin inspirou-se mais no modelo ianque que no da RFA: tratar-se-ia (ainda não está tudo definido e o debate prossegue) de reduzir de vinte para oito o número das regiões (falamos das prerrogativas, sendo o aspecto formal secundário e, por razões de «partilha do bolo» para os notáveis, as antigas vinte regiões poderiam subsistir no papel). A essas regiões seriam atribuídas as questões sociais, o ensino, a política de saúde, a política de emprego. O financiamento seria garantido pelos impostos locais, que têm a particularidade de atingir mais duramente os menos favorecidos, uma vez que são calculados com base no local de residência e não nos rendimentos. Assim, a baixa dos impostos nacionais seria amplamente compensada por uma drástica subida dos impostos locais. Por outro lado, o patronato poderia ter maior ingerência nas questões relativas à mão-de-obra, à sua formação e à sua gestão. É evidente que as desigualdades regionais deverão aumentar em função dos rendimentos das regiões. Note-se que, nesse contexto, está previsto um plano de reforço das estruturas administrativas e económicas da Região de Paris no sentido amplo (100 km à volta de Paris, ou mesmo toda a actual região Norte), por forma a dar aos monopólios franceses uma base concorrencial sólida com as regiões de Londres, de Roterdão/Antuérpia, de Francforte e do Ruhr e a de Milão. Como se vê, o que está em jogo é colossal. Uma vez que, ao mesmo tempo, os «grandes projectos» podem permitir todos os tipos de golpaças, prevê-se que (o projecto global não foi divulgado oficialmente, mas é conhecido devido a uma fuga junto do sindicato dos professores) os encargos patronais do ensino privado (católico na imensa maioria) sejam pagos… pelas regiões – novo ataque contra a laicidade.

A segunda vertente da ofensiva patronal são as pensões. Por trás de todas as mentiras relativas à demografia e aos desequilíbrios, corresponde uma vez mais a uma ofensiva patronal, tal como tudo o que é anunciado, mas não divulgado, sobre a reforma da segurança social (em França trata-se da saúde). O conteúdo é conhecido: o patronato exige um recuo da idade de partida para a reforma, a baixa das pensões e a criação de um sistema de fundos de pensão para compensar essa baixa. Na realidade, trata-se, por esse meio, de fazer pressão sobre o custo da força de trabalho: essas medidas não podem deixar de agravar o número de desempregados; permitem ao capital financeiro canalizar os fundos de poupança para especular e investir sem terem bolsa desvinculada, assumindo os assalariados os riscos, arrecadando o patronato os lucros. Por trás dessa reforma e da reforma da segurança social, reclamadas com estridência pela Mesa Redonda dos Industriais Europeus (a verdadeira direcção da União Europeia), promovidas pela Comissão de Bruxelas e avalizadas pelos governos quer sejam reaccionários quer sejam sociais-democratas, plana por outro lado o velho sonho de Malthus da liquidação dos pobres e dos indigentes: calculou-se que, em 2040, o montante das pensões do sistema por repartição tal como existia será 40% do salário em actividade. Nessas circunstâncias, quem não tenha podido descontar para fundos de pensão (ou cujo fundo tenha falido como aconteceu com a Enron nos Estados Unidos, ou que por estar no desemprego se vê obrigado a interromper os seus pagamentos e por isso perde os lucros do que pagou anteriormente) não poderá continuar a assegurar a sua sobrevivência! E acrescente-se que está estatisticamente provado que um ano de trabalho suplementar se traduz por menos dois anos de esperança de vida. Vê-se bem a fartura de progresso que aí vem! Liebknecht não se enganava quando dizia que a alternativa era «Socialismo ou Barbárie». De resto, o Governo francês, ao mesmo tempo que baixa os impostos dizendo que não há dinheiro para a saúde e para as pensões, aumenta o orçamento militar (e também a polícia e a justiça repressiva) e anuncia a sua vontade de constituir o núcleo de base de um exército «europeu».

Um poderoso movimento social

Face a essas duas reformas, o descontentamento cristalizou-se na função pública: as pensões são um tema sensível, o que já foi constatado em 1995 pelo governo de Juppé; as questões da descentralização afectam os assalariados da função pública, inquietos com as ameaças ao seu estatuto (um trabalhador em dois empregados pelo Estado e pelas colectividades territoriais já não é abrangido pelo estatuto). Há que acrescentar a isso as reduções orçamentais, que agravam as condições de trabalho. Foi no ensino público que o movimento da Primavera foi mais intenso. Mesmo se a perspectiva de ensinar até aos 65 anos, e mais, não encantava ninguém, o movimento arrancou devido à descentralização nas zonas mais difíceis, sendo depois ampliado pela questão das pensões. Os professores viram nisso uma perspectiva de agravamento das desigualdades entre regiões e departamentos, entre comunas, com o risco de maiores pressões por parte dos notáveis e do pessoal político, de verem os programas nacionais desmantelados, de o patronato meter o nariz na formação. É também a perspectiva da privatização de tudo o que é para-educativo, através da devolução às colectividades locais (representando a transferência de 100 mil agentes do ensino público). Assistiu-se ao mais forte movimento reivindicativo no ensino de todos os tempos, com greves recondutíveis (alguns professores chegaram a fazer dois meses de greve), jornadas de acção, uma participação excepcional nas manifestações e a procura da unidade com os ourtos trabalhadores [6] . Nos outros sectores, assistimos a grandes mobilizações nos hospitais, entre os empregados das colectividades locais, em determinadas alturas nos transportes, na administração dos impostos, etc. Um pouco por todo o lado, constatou-se a vontade dos grevistas de se auto-organizarem e de participarem nas decisões. Contudo, esse movimento teve os seus limites: era desigual na sua amplitude num mesmo sector (por exemplo, no ensino, segundo o tipo de estabelecimentos, determinadas categorias) e consoante as regiões (a região marselhesa sendo de longe a mais combativa, o sul em geral mais que o norte, a província mais que a região parisiense, etc.). Mas, sobretudo, se as sondagens e o acolhimento dado aos grevistas revelaram um forte apoio popular, deve constatar-se uma muito fraca, mesmo uma ausência de mobilização do sector privado. Se é verdade que, para isso, contou muito a repressão anti-sindical, principalmente contra a CGT, a que se vem assistindo desde 1984, é preciso também constatar a capitulação, quando não a traição, das direcções sindicais, em particular da CGT.

Observando as manifestações realizadas entre 1 de Fevereiro (primeira jornada nacional de acção) e 13 de Maio (jornada de acção com maior adesão), verifica-se que há um número crescente de participantes. Porém, no dia seguinte, num momento em que estalam greves recondutíveis nos transportes ferroviários e urbanos, a direcção da CGT apela ao regresso ao trabalho para concentrar o movimento numa manifestação em Paris em 26 de Maio (a um domingo). Em 23 de Maio, a troco de amendoins, a CFDT e a CGC (os quadros) assinam com o Governo o seu acordo global com o plano de revisão do sistema de pensões. Chérèque, dirigente da CFDT, foi ao ponto de suplicar ao Governo que não retirasse o seu plano de reforma! Em 26 de Maio, a participação na manifestação de Paris é extraordinária, tendo reunido sectores inteiros da CFDT a condenar a assinatura confederal. Ora, a direcção da CGT recusa-se a condenar a traição da confederação rival e, para espanto geral (incluindo a imprensa burguesa), minimiza o número de manifestantes (tanto mais que limita a sua apreciação a Paris, enquanto ao mesmo tempo decorriam manifestações regionais muito significativas). Aos pedidos repetidos de apelar à greve nacional recondutível, Bernard Thiebault responde com jornadas nacionais (sem palavras de ordem de greve) para a abertura do debate parlamentar, pede a abertura de negociações (enquanto os manifestantes reclamam a retirada dos planos governamentais) e faz tudo para não pedir o regresso aos 37 anos e meio de cotização para todos. A partir desse momento, o movimento sofre um refluxo, acompanhado de um discurso cada vez mais duro do governo reaccionário e da adesão clara ao projecto governamental da ala direita do PS (os Michel Rocard, Delors, Strauss-Kahn, etc.), propondo os outros uma reforma semelhante à reforma mínima. Em meados de Junho as greves cessam. O Governo pode dar-se ao luxo de organizar um debate parlamentar de mais de três semanas, de se recusar a negociar sobre o pagamento dos dias de greve e de anunciar projectos de novas restricções ao direito de greve.

No entanto, nem por isso o movimento deixou de ser útil, e embora não tenha alcançado os seus objectivos, é provável que as suas repercussões se façam sentir nos próximos meses. Primeiro, porque despertou para a luta de classes uma parte da juventude assalariada, que não tinha experiência. Em seguida, e está-se em plena crise política revelada pelas eleições do ano passado, assistiu-se, sobretudo na CGT, à oposição entre bases assalariadas combativas e direcções confederais ou federais capitulacionistas. A CFDT vive uma crise importante, com abandonos massivos aos níveis federal e da união departamental, ao passo que na CGT a contestação adquire uma nova amplitude, tendo havido inúmeros cartões de sócio rasgados. Não é sem importância saber que a traição de uns e a capitulação de outros tem causas materiais bem concretas: a CFDT e a CGT estudam de há vários anos a esta parte a possibilidade de criarem um fundo de pensão que seria gerido em comum com os grupos financeiros AXA (seguros), Crédit Lyonnais (bancos), etc. Diga-se de passagem que a CGT não podia alienar o apoio da CFDT na Confederação Europeia dos Sindicatos, onde disputa um lugar de Secretário-Geral adjunto! Por aí se vê como está longe a defesa dos interesses dos trabalhadores! A Federação Sindical Unitária (ensino) safa-se mais ou menos bem – embora as suas posições reformistas a tenham levado a hesitações lamentáveis –, mas não pode deixar de avaliar o impasse da autonomia em relação aos outros trabalhadores e, mais do que nunca, coloca-se-lhe a questão da junção com eles, tanto mais que muitos descontentes da função pública se viram para ela do exterior do seu campo de sindicalização. Por último, embora exista uma certa amargura, a combatividade não parece quebrada (seria necessário ver sector a sector): todos têm consciência de que o que está em jogo é importante e não apenas a nível nacional, e de que a privatização dos serviços públicos, através da descentralização, bem como a questão das pensões, se inscrevem ao mesmo tempo na política da burguesia na União Europeia e no contexto da globalização: as negociações na OMC para um tratado de comércio livre generalizado mostram a vontade dos monopólios e dos Estados imperialistas de erradicar serviços públicos, mutualidades, sistema de cobertura social, saúde pública, etc. O combate não pode, pois, deixar de ser longo e de, embora enraizando-se nas lutas nacionais, ter uma dimensão internacional. De qualquer forma, os trabalhadores aguardam a pé firme os planos de desmantelamento da saúde púplica. Por detrás das fanfarronices, Raffarin anunciou, aliás, uma certa discrição.

Pois a burguesia monopolista não reforça a sua base social de apoio. É testemunho disso a derrota política que constitui o referendo sobre a regionalização na Córsega, que deveria constituir a institucionalização dos trabalhos práticos da regionalização. A maioria dos trabalhadores não se reconhece na maioria parlamentar em exercício. A burguesia atinge os seus objectivos por ausência de forças alternativas e em especial de um Partido Comunista revolucionário que ajude os trabalhadores a travar o combate, não só no quotidiano, mas também para transformações democráticas e para preparar a revolução socialista exigida pelo desenvolvimento social. Está-se longe do PCF, cujo último congresso (marcado por uma fraseologia mais à esquerda do que anteriormente, mas oposição obriga) confirmou o seu abandono da luta de classes, o seu vazio teórico e a sua rejeição do marxismo-leninismo. Esse partido, ainda por cima dividido por querelas de chefes, mortalmente enfraquecido na sua capacidade militante (o enfraquecimento eleitoral é secundário), apresenta-se mais como um partido pequeno-burguês, «societal», preconizando reformas para melhorar a sociedade, e não para transformá-la, finalmente muito no estilo da «Nova Esquerda» dos anos sessenta. As suas últimas declarações contra Cuba socialista, as suas diatribes contra a Coreia Popular, ilustram à sua maneira a sua degenerescência. É certo que alguns sectores dos trabalhadores ainda podem iludir-se quando o PCF apoia o movimento social em palavras; mas nos actos ele afirma que é preciso «reformar» e a apresentação de mais de oito mil alterações ao projecto governamental nada mudou de fundamental a este último. O facto é que o que resta de forças comunistas está dividido e, nas circunstâncias actuais, não pode pretender ser uma alternativa crível para os trabalhadores. Os que se mantiveram no PCF, pretendendo ser uma ala esquerda, alcançaram uma vitória pírrica, conseguindo 23% dos sufrágios (mas isso representava cerca de 9.000 votos num total de 132.000 aderentes) na preparação do Congresso, mas o reagrupamento em torno da federação de Pas de Calais iria desfazer-se. Os camaradas que se mantêm revolucionários deverão rapidamente definir-se, pois a sua presença no PCF cauciona objectivamente a direcção reformista, cultivando as ilusões. Os que iniciaram o combate pela reconstrução do Partido desde o 30º Congresso, continuam dispersos entre o grupo «Communistes» dirigido por Rolande Perlican, presentes num certo número de empresas, e a Coordenação Comunista pela reconstrução de um Partido Comunista revolucionário. Esta última propõe que as forças comunistas, independentemente das divergências que as possam dividir e que será preciso superar pacientemente, actuem no imediato contra a política reaccionária do Governo, pela retirada da França da União Europeia, contra as ameaças de guerras imperialistas, pela defesa de Cuba e da RPDC. Com efeito, os acontecimentos desta Primavera de 2003, um ano após o choque das eleições presidenciais, mostraram claramente que a crise política não se resolverá por si só. Na realidade, essa crise é a expressão nacional do agravamento da crise do sistema imperialista num contexto de vitória temporária da contra-revolução, com o desaparecimento do campo socialista e o enfraquecimento dramático do movimento operário e revolucionário. A reconstrução tanto nacional, no caso da França e de outros países, como internacional, de um forte movimento comunista, alicerçado na classe operária e em posições revolucionárias consequentes, é a condição para que o imperialismo não resolva as suas contradições à custa dos povos (e de toda a humanidade, dados os meios de destruição acumulados), mas para que, pelo contrário, os trabalhadores e os povos acabem com o imperialismo e, tirando as lições do passado, enveredem pela construção socialista em direcção ao comunismo. Um provérbio francês diz: «uma andorinha não faz a Primavera». É certo! Mas, ao contrário, não há Primavera sem andorinhas. Há pois motivos para estarmos optimistas e para pensarmos que esta Primavera de 2003, com a sua mobilização internacional contra a guerra no Iraque e com os seus movimentos sociais contra a política do Capital, poderá constituir o prenúncio de um relançamento da luta de classes.

Maurice Cukierman
Paris, 06/Jul/2003
________________

Notas
1. Semelhantes às eleições distritais: os départements são a divisão administrativa que corresponde mais ou menos aos distritos portugueses. (NT)
2. Despedimentos «bolsistas»: são despedimentos para satisfazer os accionistas, quando estes pretendem obter maiores lucros, mesmo que a empresa não esteja em má situação económica. Como tal, os despedimentos «bolsistas» são despedimentos abusivos. (NT)
3. Renault-Billancourt: a secção de Billancourt de Renault era uma empresa emblemática, a maior empresa pública francesa, centro de grandes lutas da vanguarda operária. (NT)
4. Eleições prud'hommales: eleições para os Conselhos de Prud'hommes , órgãos jurisdicionais de excepção paritários (representantes dos empregadores e representantes dos assalariados) responsáveis por julgar litígios resultantes da celebração, da execução e da dissolução do contrato individual de trabalho. (NT)
5. Balladur: Primeiro-ministro reaccionário que em 1993 lançou o ataque contra os sistemas de pensões.
6. Desde a cisão do movimento sindical pela social-democracia e pela CIA em 1948, o professores estão sindicalizados fora das Confederações sindicais operárias.

[*] Historiador, militante da Coordenação Comunista para a reconstrução de um Partido Comunista revolucionário. Tradução de HR.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

02/Ago/03