Grécia, Irlanda e Portugal:
Porque os acordos com a Troika são odiosos
por Renaud Vivien, Eric Toussaint
[*]
A Grécia, a Irlanda e Portugal são os três primeiros
países da zona euro a serem passados à tutela directa dos seus
credores ao concluírem planos de "ajuda" com a
"Troika" composta pela Comissão Europeia, o Banco Central
Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas estes
acordos, que geram novas dívidas e que impõem aos povos medidas
de austeridade sem precedentes, podem ser postos em causa com base no direito
internacional. Com efeito, estes acordos são "odiosos" e
portanto ilícitos. Como sublinha a doutrina da dívida odiosa,
"as dívidas de Estados devem ser contratadas e os fundos
resultantes utilizados para as necessidades e os interesses do Estado
[1]
". Ora, os empréstimos da Troika são condicionados a medidas
de austeridade que violam o direito internacional e que não
permitirão a estes Estados saírem da crise.
Todo empréstimo concedido em contrapartida da aplicação de
políticas que violam os direitos humanos é odioso.
Como afirma o relator especial Mohammed Bedjaoui no seu projecto de artigo
sobre a sucessão em matéria de dívidas de Estado para a
Convenção de Viena de 1983: "Colocando-se do ponto de vista
da comunidade internacional, poder-se-ia entender por dívida odiosa toda
dívida contraída para fins não conformes ao direito
internacional contemporâneo e, mais particularmente, aos
princípios do direito internacional incorporados na Carta das
Nações Unidos"
[2]
.
Não há nenhuma dúvida de que as condicionalidades impostas
pela Troika (despedimentos maciços na função
pública, desmantelamento da protecção social e dos
serviços públicos, diminuição dos orçamentos
sociais, aumento dos impostos indirectos como o IVA, baixa do salário
mínimo, etc) violam de modo manifesto a Carta das Nações
Unidas. Com efeito, entre as obrigações contidas nesta Carta
encontram-se, nomeadamente, os artigos 55 e 56, "o levantamento do
nível de vida, do pleno emprego e das condições de
progresso e de desenvolvimento na ordem económica e social (...), o
respeito universal e efectivo dos direitos do homem e das liberdades
fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo,
língua ou religião". Em consequência, as medidas de
austeridade e as dívidas contratadas no quadro destes acordos com a
Troika estão atingidos de nulidade uma vez que tudo o que é
contrário à Carta da ONU é considerado não escrito
[3]
.
Para além da violação dos direitos económicos,
sociais e culturais engendrada pela aplicação destas medidas
anti-sociais, é o direito dos povos a dispor de si mesmos, consagrado no
artigo 1-2 da Carta da ONU e nos dois Pactos de 1966 sobre os direitos humanos,
que é espezinhado pela Troika. Segundo o artigo primeiro comum aos dois
pactos, "Todos os povos têm o direito de disporem de si mesmos. Em
virtude deste direito, eles determinam livremente seu estatuto político
e asseguram livremente seu desenvolvimento económico, social e cultural.
Para atingir seus fins, todos os povos podem dispor livremente das suas
riquezas e dos seus recursos naturais, sem prejuízo das
obrigações que decorrem da cooperação
económica internacional, fundamentada no princípio do interesse
mútuo e do direito internacional. Em nenhum caso um povo poderá
ser privado dos seus próprios meios de subsistência".
Ora, a ingerência da Troika nos assuntos internos destes Estados, com
desprezo da democracia, é flagrante. Estes credores advertiram
claramente que as eleições na Irlanda e em Portugal não
deviam por em causa a aplicação destes acordos. Citemos por
exemplo o artigo do diário francês
Le Figaro
de 9 de Abril de 2011 que retorna às injunções impostas a
Portugal pelos ministros das Finanças da zona euro e da União
Europeia aquando de uma reunião verificada em Budapeste antes das
eleições legislativas em Portugal: "A
preparação (do plano de austeridade) deverá começar
imediatamente, em vista de um acordo entre os partidos nos meados de Maio, e
permitir a execução sem atrasos do programa de ajustamento desde
a formação do novo governo". (...) "os ministros
fizeram claramente compreender a Portugal que não querem retornar
às contrapartidas da ajuda, seja qual for o resultado das
eleições"
[4]
. No caso da Grécia, o programa de austeridade concluído com a
Troika foi imposto em 2010 mesmo sem que o Parlamento o houvesse ratificado
quando se tratava de uma obrigação da Constituição
grega (artigo 36 parágrafo 2)
[5]
.
Este desprezo da Troika pela soberania destes três Estados foi tornado
possível pela situação de penúria financeira da
Grécia, da Irlanda e de Portugal (primeiras vítimas na zona euro
da crise da dívida mas certamente não os últimos). Neste
sentido, dificilmente se pode defender a validade destes acordo argumentando
com a liberdade de consentimento. Em direito, uma parte num contrato não
está em estado de exercer a autonomia da vontade, o contrato é
atingido de nulidade. Como este princípio se aplica no caso presente?
Não podendo razoavelmente tomar emprestado nos mercados financeiros a
longo prazo por causa das taxas de juro exigidas pelos mesmos, oscilando entre
12% e 17% conforme o caso, os governos destes três países tiveram
de voltar-se para a Troika que aproveitou da situação de
prestamista de último recurso. Utilizando a situação de
penúria das autoridades gregas, irlandesas e portuguesas, a Troika
conseguiu impor planos que tiveram e terão um efeito negativo para a
saúde económica destes países dado o carácter
pró-cíclico das medidas adoptadas (ou seja, elas reforçam
os factores que geram a baixa da actividade económica).
As privatizações maciças nos sectores essenciais da
economia (transportes, energia, correios, etc) impostas pela Troika permitem a
empresas privadas estrangeiras tomarem o controle e em consequência
afectam a soberania destes Estados e o direito dos povos a disporem livremente
das suas riquezas e dos seus recursos naturais. Se bem que um Estado tenha o
direito, por meio de um acordo, de transferir uma parte da sua soberania a uma
entidade estrangeira, esta transferência não deve, salvo
violação do direito internacional, comprometer a
independência económica do Estado, que é um elemento
essencial da sua independência política
[6]
.
Através das suas condicionalidades, a Troika não violou apenas o
direito internacional. Ela igualmente tornou-se cúmplice da
violação dos direitos nacionais destes Estados. Na Grécia,
mais particularmente, assiste-se a um verdadeiro golpe de Estado
jurídico. A título de exemplo, várias
disposições da lei 3845/2010, que põe em
execução o programa de austeridade, violam a
Constituição, nomeadamente ao suprimir o salário
mínimo legal. O abandono da soberania do Estado grego é ainda
agravado pela cláusula do acordo com a Troika que prevê a
aplicabilidade do direito anglo-saxónico e a competência do
Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) em caso de
litígio. O Estado renuncia assim a uma prerrogativa fundamental da
soberania que é a competência territorial dos seus tribunais
nacionais. Ao mesmo tempo, a lei grega que põe em execução
o programa de austeridade exige que as sentenças arbitrais (tendo valor
constitucional) concedendo aumentos de salário para os anos 2010 e 2011
sejam inválidas e inexecutáveis. Em suma, como escrevem os
juristas G. Katrougalos et G. Pavlidis, "a soberania estatal é
limitada de modo muito similar ao controle financeiro internacional, que havia
sido imposto ao país em 1897 na sequência da bancarrota (1893) e
sobretudo da derrota grega na guerra greco-turca.
Todo empréstimo cuja causa é ilícita e imoral é
odioso
O fundamento jurídico extraído da causa ilícita e imoral
para por em causa a validade dos contratos encontra-se nas numerosas
legislações nacionais civis e comerciais. Ele nos remete
directamente a questão que levanta a doutrina da dívida odiosa: a
quem aproveitam os empréstimos? No caso dos acordos concluídos
com a Grécia, a Irlanda e Portugal, é claro que os bancos
privados europeus, que emprestaram a estes países de modo totalmente
irresponsáveis, são ganhadores quando eles arcam com uma pesada
responsabilidade na crise da dívida. Com efeito, o salvamento dos bancos
privados pelos poderes públicos após a explosão da crise
financeira em 2007 implicou a explosão da dívida dos Estados.
Neste sentido, pode-se no mínimo qualificar de "imoral" a
causa dos acordos feitos com a Troika e falar de "enriquecimento sem
causa" (um princípio geral do direito internacional segundo o
artigo 38 do estatuto do Tribunal Internacional de Justiça
[7]
) em proveito dos bancos privados.
O enriquecimento sem causa dos bancos privados ainda é agravado pelo
facto de que estes últimos extraem um enorme lucro sobre as costas dos
poderes públicos devido à diferença entre, por um lado, as
taxas de juro de mais de 4% que eles exigem dos Estados afectados para comprar
os títulos que emitem para um prazo de 3 ou 6 meses, e, por outro lado,
a taxa de 1% ao qual estes mesmos bancos tomaram emprestado junto ao BCE
até Abril de 2011, antes de ser elevada a 1,25 e depois a 1,50%.
[8]
Pode-se igualmente falar de enriquecimento sem causa (enriquecimento abusivo e
ilegal) a propósito de Estados como a Alemanha, a França e a
Áustria que tomaram emprestado a 2% nos mercados e emprestaram à
Grécia a 5% ou 5,5%, à Irlanda a 6%. O mesmo para o FMI que toma
emprestado dos seus membros a baixas taxas de juro e empresta à
Grécia, à Irlanda e a Portugal a taxas claramente superiores.
As medidas anunciadas a 21 de Julho de 2011 pelas autoridades europeias
constituem uma confissão clara e nítida do "enriquecimento
sem causa" de que elas são responsáveis e do carácter
doloso da sua política. Elas finalmente anunciaram a sua
intenção de reduzir de 2 a 3 pontos a taxa de juro que exigem da
Grécia, da Irlanda e de Portugal. Ao proclamar que reduziam taxa de
juro a cerca de 3,5% para créditos a 15 e mesmo 30 anos, elas reconhecem
que as taxas que exigem são proibitivas. Elas o fazem tão patente
é o desastre no qual contribuíram para mergulhar estes
países e tão grande o contágio a outros países.
Qual é o interesse da Irlanda, da Grécia e de Portugal em
concluírem estes acordos com a Troika? Nenhum, à parte o facto de
que eles lançam uma pequena lufada de oxigénio financeiro... mas
que deve servir para o reembolso dos seus credores. No médio e longo
prazo, estes planos de rigor vão mesmo piorar a sua
situação pois desencadeia um efeito "bola de neve". Com
efeito, o encargos dos juros sobre estas novas dívidas aumenta ao passo
que as medidas ditadas pela Troika têm como consequência reduzir a
actividade económica pois diminuem a procura global afectando as
condições de vida das populações. Pode-se portanto
reter o comportamento doloso do FMI, tanto é abissal o fosso entre o seu
discurso e a realidade. Com efeito, no artigo 1 dos seus estatutos, o FMI tem
como objectivos "facilitar a expansão e o crescimento harmonioso do
comércio internacional e
contribuir assim para a instauração e a manutenção
de níveis elevados de emprego e de rendimento real e para o
desenvolvimento dos recursos produtivos de todos os Estados membros, objectos
primários da política económica
[Ler os estatutos do FMI em http://www.imf.org/external/pubs/ft...] ou ainda
"dar confiança aos Estados membros pondo os recursos gerais do
Fundo temporariamente à sua disposição mediante garantias
adequadas, dando-lhes assim a possibilidade de corrigir os
desequilíbrios das suas balanças de pagamentos
sem recorrer a medidas prejudiciais à prosperidade nacional ou
internacional
[9]
". Da mesma forma, pode-se afirmar que a acção da
Comissão Europeia e do BCE constituem igualmente um dolo a expensas dos
países afectados.
As medidas ditadas pelo FMI, BCE e Comissão Europeia têm
igualmente como consequência encerrar estes países na
lógica infernal do endividamento uma vez que terão de continuar a
tomar emprestado para poder reembolsar. Eles partiram portanto para um
período de dez, quinze ou vinte anos de austeridade e de aumento da
dívida
[10]
. O estudo da OCDE sobre a dívida grega, publicado em 2 de Agosto de
2011
[11]
, afirma nomeadamente que a dívida pública que era de 140% em
2010 deveria reduzir a 100% do Produto Interno Bruto em... 2035.
Diante de uma tal situação, os governos, se quiserem respeitar o
interesse da população, têm interesse em romper os acordos
com a Troika, suspender imediatamente o reembolso da sua dívida (com
congelamento dos juros) e por em marcha auditorias com
participação dos cidadãos. Estas auditorias deverão
determinar a parte ilegítima destas dívidas, aquela que deve ser
anulada sem condições. O remanescente da dívida
pública deve igualmente ser reduzido por medidas a expensas daqueles que
com elas lucraram. Processos judiciais devem ser empreendidos contra os
responsáveis dos danos causados. Evidentemente, medidas complementares e
essenciais (transferência dos bancos para o sector público,
reforma fiscal radical, socialização dos sectores privatizados no
decorrer da era neoliberal, ...
[12]
deverão ser tomadas pois a anulação das dívidas
ilegítimas, se bem que necessária, é insuficiente se a
lógica do sistema permanecer intacta.
Notas
|1| Alexander Nahum Sack, Les Effets des Transformations des États sur
leurs dettes publiques et autres obligations financières, Recueil Sirey,
1927.
|2| Mohammed Bedjaoui, "Neuvième rapport sur la succession dans les
matières autres que les traités", A/CN.4/301et Add.l, p. 73.
|3| Monique et Roland Weyl , Sortir le droit international du placard,
PubliCETIM n°32, CETIM, novembre 2008.
|4|
www.lefigaro.fr/...
Ler Virginie de Romanet, "
Le Portugal : dernière victime en date du modèle néoibéral
", 2011
|5| Georgios Katrougalos et Georgios Pavlidis, "La Constitution nationale
face à une situation de détresse financière : leçon
tirées de la crise grecque (2009-2011)"
|6|
unesdoc.unesco.org/...
|7| É igualmente previsto em vários códigos civis
nacionais, como o espanhol (artigos 1895 e seguintes) e francês (artigos
1376 e seguintes).
|8| Recordamos que o Tratado de Maastricht proíbe o BCE de emprestar
directamente aos Estados.
|9| Sublinhados dos autores
|10| Eric Toussaint, "
Aides empoisonnées au menu européen
", 2011,
|11|
www.oecd.org/...
|12| Ver
Huit propositions urgentes pour une autre Europe
09/Agosto/2011
[*]
Renaud Vivien: jurista, membro do grupo de trabalho Direito do
CADTM
Bélgica.
Eric Toussaint: doutor em ciências política, presidente do CADTM
Bélgica.
Ambos são co-autores do livro
La Dette ou la Vie
, Aden-CADTM, 2011.
O original encontra-se em
http://www.cadtm.org/Grece-Irlande-et-Portugal-pourquoi
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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