Como a China se torna o primeiro financiador mundial
por Valentin Katasonov
[*]
Na reunião da primavera do Fundo Monetário Internacional (FMI) e
do Banco Mundial (BM), o responsável pelo Departamento do Tesouro dos
EUA, Steven Mnuchin, mencionou um assunto delicado: o financiamento de membros
do FMI e do BM pela China e vários outros países em
desenvolvimento. Ele classificou estes países como "credores
não transparentes" que não coordenam suas
operações com o FMI, desestabilizando com isso o mercado de
empréstimos internacional. Mnuchin notou que esta prática cria
problemas para os países devedores quando ocorrem processos de
reestruturação de dívida.
Estes argumentos são uma cobertura para a mal disfarçada
irritação de responsáveis dos EUA pelo facto de que a
China está a ir contra o modo habitual de Washington de fazer as coisas
no mercado de empréstimos internacional, onde reinou como supremo
durante muitos anos e dirigiu o mercado utilizando o FMI controlado pelos EUA.
Steven Mnuchin sugeriu então que Beijing coordenasse com o FMI suas
decisões de empréstimo para certos países.
Aqui estão alguns números para dar uma ideia de quão
preocupada está Washington com envolvimento activo de Beijing na arena
internacional como doador financeiro. A informação é
recolhida de um
estudo
do laboratório de investigação AidData, do College of
William & Mary, na América, em conjunto com peritos da Universidade de
Harvard nos EUA e da Universidade de Heidelberg na Alemanha. Foram reunidos e
analisados dados de um total de 4300 projectos que receberam financiamento
chinês em 140 países de todo o mundo. O espaço temporal do
estudo é 2000-2014 (quinze anos). O montante total de financiamento
destes projectos, recebido da China neste período, foi de US$350 mil
milhões e o nível do financiamento aumentou constantemente ao
longo dos quinze anos, de US$2,6 mil milhões em 2000 para US$37,3 mil
milhões em 2014. O maior montante foi de US$69,6 mil milhões em
2009.
O montante de financiamento concedido a países estrangeiros pelos
Estados Unidos, sob várias rubricas, durante o mesmo período
equivaleu a US$394,6 mil milhões. Este número é
ligeiramente mais alto do que o da China, mas dever-se-ia recordar que o volume
de financiamento estado-unidense não aumentou tão agudamente
quanto o da China. Em 2000, os EUA proporcionaram US$13,4 mil milhões em
empréstimos externos, os quais aumentaram para US$29,4 mil
milhões em 2014. Nos quatro anos finais (2011-2014), a China já
excedera firmemente os EUA quanto ao montante de financiamento além-mar.
Há diferenças qualitativas entre as políticas de
financiamento internacional da China e dos EUA. Antes de mais nada, a China
concentra-se em crédito e empréstimos (financiamento
reembolsável), com a ajuda financeira (financiamento não
reembolsável ou parcialmente reembolsável) a desempenhar um papel
menor. Para a América, entretanto, a ajuda financeira domina. Os autores
do estado classificam como ajuda financeira aqueles acordos e projectos nos
quais a fatia da subvenção
(grant)
excede os 25 por cento, ao passo que o financiamento reembolsável
inclui aqueles acordos e projectos nos quais a fatia subvencionada é
inferior aos 25 por cento. Os investigadores classificaram os acordos e
projectos envolvendo a China em que não foi possível determinar a
fatia da subvenção como financiamento turvo. A
distribuição do financiamento internacional da China pelas
três categorias durante todo o período (em mil milhões de
dólares) foi: ajuda financeira 81,1; financiamento
reembolsável 216,3; financiamento turvo
(vague)
57,0. A estrutura
do financiamento internacional da América (em mil milhões de
dólares) foi: ajuda financeira 366,4; financiamento
reembolsável 28,1. Portanto a ajuda financeira representou 92,5
por cento do financiamento internacional da América, mas apenas 21 por
cento da China.
Então como é que a China tem conseguido centrar-se no
financiamento reembolsável, isto é, empréstimos? No
princípio do século XXI, o país descobriu um enorme nicho
que não estava a ser preenchido pelos empréstimos da
América, de outros países ocidentais, do FMI ou do BM. Muitos
países em desenvolvimento da Ásia, África e América
Latina estava em terrível necessidade de financiamento externo, mas
não eram capazes ou não queriam cumprir as
condições estritas do "Consenso de Washington". A
abordagem de Washington era motivada politicamente, ao passo que a de Beijing
era comercial. Beijing declarou um princípio de
não-intervenção no assuntos internos dos países
receptores e isto tornou-se mais atraente do que a chamada assistência
financeira da América que era como o queijo gratuito posto numa
ratoeira. Além disso, nos anos 2000 a China estava a emitir
empréstimos a 2,5 por cento ao ano (termos muito mais favoráveis
do que os oferecidos pelo ocidente).
Na sua política de financiamento externo a China centra-se naquelas
indústrias e sectores económicos dos países receptores que
directa ou indirectamente promovem a economia chinesa. Assim, a
distribuição do financiamento externo chinês conforme a
indústria e o sector entre 2000 e 2014 parece-se assim (em mil
milhões de dólares): energia 134,1; transporte e
logística 88,8; mineração, manufactura e
construção 30,3; agricultura e floresta 10,0; e
outras indústrias 74,3.
A geografia do financiamento externo chinês também é
interessante. Os seguintes países foram os principais
beneficiários da ajuda financeira (em mil milhões de
dólares): Cuba 6,7; Costa do Marfim 4,0; Etiópia
3,7; Zimbabwe 3,6; Camarões 3,4; Nigéria
3,1; Tanzânia 3,0; Cambodja 3,0; Sri Lanka
2,8; e Gana 2,5. E aqui está a distribuição
geográfica do financiamento reembolsável da China (em mil
milhões de dólares): Rússia 36,6; Paquistão
16,3; Angola 13,4; Laos 11,0; Venezuela 10,8;
Turquemenistão 10,1; Equador 9,7; Brasil 8,5; Sri
Lanka 8,2; e Cazaquistão 6,7. Como se pode ver, a
Rússia é o maior receptor de dinheiro chinês na forma de
empréstimos reembolsáveis (quase 17 por cento do total do
financiamento reembolsável).
Os principais receptores do dinheiro chinês incluem países que
Beijing está a planear tornar (ou já os tornou) actores chave no
projecto transcontinental
"One Belt, One Road"
. A China também
está fortemente dependente da sua costa leste e do Estreito de
Málaca próximo de Singapura através do qual passa a maior
parte das suas importações e exportações. Exemplo:
mais de 80 por cento do petróleo comprado pela China passa
através deste estreito. A construção de rotas comerciais
através do Paquistão e da Ásia Central aumenta a
resiliência da China à pressão política e militar de
Washington. O projecto "Belt and Road" também permitirá
a Beijing começar a utilizar suas enormes reservas de divisas (mais de
US$3 milhões de milhões), proporcionar encomendas a
negócios chineses e suportar o nível de emprego no país.
Segundo algumas estimativas, mais de US$300 mil milhões já foram
gastos no projecto. E nas próximas décadas a China planeia gastar
mais US$1 milhão de milhões no projecto "Belt and
Road", criando uma extensa infraestrutura de transporte e logística
na Eurásia na próxima década.
Clique a imagem para ampliar
Em anos recentes o ocidente abdicou da sua posição como
prestamista em muitos países asiáticos, africanos e
latino-americanos, o que enfraqueceu sua influência política
significativamente. Mas o mais impressionante é a velocidade com a qual
a China tem emergido para o primeiro plano. No presente, a China está a
emitir mais empréstimos para países em desenvolvimento do que o
Banco Mundial quando, ainda nas décadas de 1980 e 1990, a própria
China era o maior receptor de empréstimos do Banco Mundial e do Banco de
Desenvolvimento da Ásia.
A China está a investir grandes quantias de dinheiro em países
que, pelos padrões ocidentais, são considerados se não
"párias", então "despóticos",
"corruptos" e assim por diante, países como o Zimbabwe, Coreia
do Norte, Niger, Angola e Birmânia. O presidente do Uganda, Yoweri
Museveni, tem dito que gosta do dinheiro chinês porque "os chineses
não fazem demasiadas perguntas e vêem com muito dinheiro,
não pouco". Na Coreia do Norte, enquanto isso, só foram
descobertos 17 projectos chineses ao longo de todo o período, pelo que o
montante total de financiamento foi de apenas US$210 milhões. Contudo,
este quadro pode ser incompleto uma vez é informação
altamente classificada.
Em alguns países há competição intensa por
influência entre os EUA e a China. O Paquistão é um bom
exemplo. Em 2014, o Paquistão era o terceiro maior receptor de dinheiro
dos EUA (após o Iraque e o Afeganistão). No mesmo ano, o
Paquistão era o segundo maior receptor de dinheiro chinês,
após a Rússia.
Em 2015, Beijing começou a ter uma influência adicional
através do Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB). O capital
autorizado do AIIB é de US$100 mil milhões. A China, a
Índia e a Rússia são os três maiores accionistas com
26,06; 7,5 e 5,92 por cento do poder de voto, respectivamente. Como se pode
ver, a posição da China é muito mais forte do que,
digamos, a posição da América no FMI e nas
organizações que constituem o Grupo Banco Mundial (o
International Bank for Reconstruction and Development, a International Finance
Corporation e a International Development Association). A
participação da América neste grupo ronda os 16-17 por
cento.
As actividades financeiras internacionais de Beijing não deveriam ser
encaradas como "anti-imperialistas", naturalmente. Nos países
em que Beijing começa a fazer amizade, o que resta da sua
indústria local está em desintegração sob a
pressão de importações chinesas baratas. Os projectos para
desenvolver depósitos ou construir estradas e outras
instalações de infraestrutura envolvem predominantemente
empreiteiros e fornecedores chineses. Na maior parte dos casos, a
construção e outros trabalhos no local utiliza trabalho
chinês.
Finalmente, a China está vagarosamente a por em prática
condições mais duras para o empréstimo de dinheiro a
outros países. A taxa de juro ascendeu de 2,5 para 5 por cento ao ano e
já há um sentimento de que muitos países não
só não serão capazes de reembolsar, como também de
servir seus empréstimos chineses. Entretanto, Beijing não
está preocupada: os depósitos, os imóveis e as
instalações de infraestrutura construídas utilizando
dinheiro chinês servem como colateral. Assim, tudo pertencerá
à China no final. Então a luta competitiva entre Washington e
Beijing se tornará mais feroz do que nunca.
05/Maio/2018
[*]
Economista.
O original encontra-se em
www.strategic-culture.org/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|