Numa atitude ousada que causou impacto na comunidade financeira global, a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou legislação que poderá abrir caminho ao confisco de milhares de milhões de dólares em ativos russos congelados.
Esta decisão, que faz parte de um pacote mais vasto de ajuda externa, desencadeou um aceso debate sobre o futuro das finanças internacionais, a santidade dos ativos soberanos e as potenciais consequências a longo prazo para a ordem económica mundial.
A Lei REPO: Uma legislação que muda o jogo
No centro desta controvérsia está a Lei REPO (Russia-Elimited Profits for Ukraine Reconstruction). Esta peça legislativa, se totalmente implementada, autorizaria a administração Biden a confiscar aproximadamente 6 mil milhões de dólares de ativos russos atualmente detidos em bancos dos EUA. Estes fundos seriam então redireccionados para apoiar os esforços de reconstrução da Ucrânia na sequência do conflito em curso.
As implicações desta lei vão muito além do seu impacto financeiro imediato. Representa uma mudança significativa na forma como a comunidade internacional lida com sanções económicas e ativos congelados.
Tradicionalmente, o congelamento de ativos tem sido visto como uma medida temporária, uma forma de exercer pressão sem passar a linha do confisco total. A Lei REPO, no entanto, vai mais longe, criando potencialmente um precedente para a apreensão permanente de ativos soberanos.
HAIA, Holanda (AP) – A União Europeia anunciou na sexta-feira que disponibilizou 1,5 mil milhões de euros (US$1,6 mil milhões) para apoiar a Ucrânia, a primeira tranche de dinheiro gerado pelos lucros dos ativos russos congelados.
Em maio, os 27 Estados-Membros da UE chegaram a um acordo para utilizar os juros obtidos sobre cerca de 210 mil milhões de euros (US$225 mil milhões) em ativos do banco central russo para apoio militar à Ucrânia e esforços de reconstrução no país devastado pela guerra.
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O contexto global: Uma questão de 300 mil milhões de dólares
Embora os EUA detenham uma parte relativamente pequena dos ativos russos congelados, o montante total espalhado pelos países do G7 é impressionante – aproximadamente 300 mil milhões de dólares.
A maioria destes ativos é detida em países europeus, particularmente na Alemanha, França e Bélgica. Esta distribuição realça a necessidade de cooperação internacional para que todo o potencial do confisco de bens seja concretizado.
A ideia de confiscar estes bens tem vindo a circular desde o ano passado, mas tem enfrentado uma oposição significativa de vários quadrantes. Os críticos argumentam que tal medida poderia ter consequências de longo alcance para o sistema financeiro global, potencialmente minando o estatuto do dólar americano como a principal moeda de reserva do mundo.
O debate económico: Risco vs. Recompensa
Os defensores da Lei REPO, incluindo o antigo embaixador dos EUA na Rússia, Michael McFaul, argumentam que a utilização de ativos russos para ajudar a Ucrânia enviaria uma mensagem poderosa aos regimes autocráticos de todo o mundo. Afirmam que os benefícios do apoio à Ucrânia e a dissuasão de futuras agressões superam os riscos potenciais para o sistema financeiro.
No entanto, economistas e especialistas em política externa têm levantado sérias preocupações sobre as implicações a longo prazo de tal ação. Christopher Caldwell, num artigo de opinião do New York Times, avisou que o confisco dos fundos russos poderia dissuadir outros países de investir nos EUA, enfraquecendo potencialmente a posição global do dólar.
O debate centra-se numa questão crucial: Será que o ganho a curto prazo de apoiar a Ucrânia vale os potenciais danos a longo prazo para o sistema financeiro internacional?
O atoleiro jurídico: Imunidade soberana e direito internacional
A base jurídica para o confisco de ativos soberanos está longe de ser clara. O princípio da imunidade soberana, consagrado no direito internacional e codificado em muitos sistemas jurídicos nacionais, protege normalmente os bens do Estado contra o confisco por potências estrangeiras. A Lei das Imunidades Soberanas Estrangeiras dos EUA de 1976, por exemplo, proíbe geralmente a apreensão de bens de Estados estrangeiros.
Ignorar estes princípios legais de longa data poderia criar um precedente perigoso. Poderia encorajar outros países a retaliar apreendendo bens dos EUA no estrangeiro ou levar a uma erosão mais ampla da confiança no sistema financeiro internacional. É provável que os desafios legais sejam significativos e que os esforços de confisco nos tribunais se arrastem durante anos.
O desafio diplomático: Reunir o G7
Para que a estratégia de confisco de ativos seja verdadeiramente eficaz, seria necessária a cooperação de outros países do G7, em especial dos países europeus que detêm a maior parte dos ativos russos congelados. Embora o Reino Unido tenha manifestado apoio à ideia, a França e a Alemanha têm-se mostrado mais relutantes.
O desafio diplomático consiste em convencer estes aliados de que os benefícios do confisco são superiores aos riscos. Esta tarefa é complicada devido aos diferentes sistemas jurídicos, interesses económicos e considerações geopolíticas entre os membros do G7. O sucesso ou fracasso deste esforço diplomático pode ter implicações de longo alcance para a coesão da aliança ocidental face aos desafios globais.
A resposta russa: Ameaças e contra-medidas
A Rússia não ficou em silêncio perante estes desenvolvimentos. Valentina Matviyenko, uma aliada próxima do Presidente Vladimir Putin e presidente da Câmara Alta do Parlamento russo, avisou que a Rússia já elaborou legislação para retaliar se os seus bens forem apreendidos. Embora os pormenores desta potencial retaliação permaneçam pouco claros, poderão envolver a apreensão de bens ocidentais ainda na Rússia ou outras contramedidas económicas.
Esta abordagem “olho por olho” levanta o espetro de uma escalada do conflito económico, potencialmente atraindo mais países e desestabilizando ainda mais o sistema financeiro global. Também complica quaisquer esforços futuros para negociar o fim do conflito na Ucrânia, uma vez que os bens apreendidos podem tornar-se um importante ponto de atrito nas conversações de paz.
Implicações mais vastas: Uma paisagem financeira em mutação
O debate sobre a confiscação de bens russos tem lugar num contexto de mudanças mais amplas no sistema financeiro mundial. Muitos países em desenvolvimento, desconfiados da capacidade do Ocidente de transformar as finanças em armas, já estão a diversificar as suas reservas de divisas, afastando-as das moedas ocidentais.
A China, por exemplo, tem vindo a reduzir constantemente as suas participações na dívida pública dos EUA. A Arábia Saudita e o México também reduziram os seus investimentos em títulos do Estado americano. Esta tendência, se acelerada pelo confisco dos ativos russos, poderá ter implicações profundas no papel do dólar americano como principal moeda de reserva mundial.
Além disso, esta medida poderá empurrar mais países para sistemas financeiros alternativos, acelerando o desenvolvimento de estruturas económicas paralelas que contornem as instituições dominadas pelo Ocidente. Isto poderá incluir uma maior utilização de criptomoedas, a expansão de sistemas de pagamento alternativos, como o CIPS da China, e uma maior ênfase no comércio em moedas nacionais em vez de dólares ou euros.
O ato de equilíbrio: Política vs. Economia
A decisão de confiscar os ativos russos representa um delicado ato de equilíbrio entre os imperativos políticos e as realidades económicas. Por um lado, existe um forte desejo político de apoiar a Ucrânia e punir a Rússia pelas suas acções. O simbolismo da utilização dos ativos russos para reconstruir a Ucrânia é poderoso e pode servir de dissuasão para futuros agressores.
Por outro lado, os riscos económicos são significativos. O sistema financeiro mundial assenta fortemente na confiança e no Estado de direito. O enfraquecimento destes princípios, mesmo por uma causa aparentemente justa, pode ter consequências indesejadas que se repercutem muito para além da situação imediata.
Os decisores políticos devem ponderar cuidadosamente estes factores concorrentes. Os ganhos políticos a curto prazo devem ser equilibrados com os potenciais custos económicos a longo prazo. Esta decisão pode moldar o futuro das finanças internacionais e da geopolítica nas próximas décadas.
O caminho a seguir: Cautela e cooperação
À medida que o debate sobre o confisco de bens russos prossegue, surgem várias considerações fundamentais:
Conclusão: Um momento de viragem
A decisão de confiscar os ativos russos marca um potencial momento de viragem nas finanças internacionais e na geopolítica. Representa uma escalada significativa nas medidas económicas tomadas contra a Rússia e poderá reformular as regras do sistema financeiro mundial.
À medida que a situação se desenrola, o mundo está a observar atentamente. O resultado desta ousada jogada dos oligarcas ocidentais irá provavelmente influenciar não só o curso do conflito na Ucrânia, mas também o futuro das relações económicas internacionais. É um momento que exige uma deliberação cuidadosa, uma análise clara dos riscos e benefícios e um compromisso de defender os princípios que sustentaram a ordem económica mundial durante décadas.
Ao navegar nestas águas desconhecidas, os responsáveis políticos ocidentais devem equilibrar a necessidade urgente de apoiar a Ucrânia com a tarefa igualmente importante de manter um sistema financeiro internacional estável e fiável. As decisões tomadas nos próximos meses poderão ecoar nos corredores do poder e nos pregões do mundo durante anos.
Entretanto, os países BRICS+ estão ocupados a estabelecer as suas plataformas alternativas para o comércio global, longe da influência e do controlo dos oligarcas ocidentais que têm estado por detrás da crise ucraniana desde 2014. A aliança BRICS+ pode agora negociar a sua produção entre si utilizando as suas respectivas moedas soberanas, reduzindo efetivamente a relevância do petrodólar e dos mercados ocidentais em geral.