Compradores de CDS, feministas e Marx:
Estranhos companheiros de cama na era da euro crise

por Yanis Varoufakis

. "Aqui está a nossa oferta: Aceite um corte (haircut) de 50% nos seus títulos gregos. Se preferir não aceitar, e isso é um direito seu, nós daremos o sinal verde para a Grécia declarar um incumprimento de 100%". Foi isto, no essencial, o trato que o sr. Dallara aceitou nas primeira horas da madrugada de 27 de Outubro em nome dos banqueiros que haviam emprestado à Grécia antes do "salvamento" de Maio de 2010. Na linguagem de Hollywood eles poderiam muito bem dizer-lhe: "nós lhe faremos uma oferta irrecusável!"

Logo a seguir ao anúncio deste acordo começou um debate sobre se a International Swaps and Derivatives Agency, a ISDA, cuja tarefa é declarar eventos de crédito que rompem contratos CDS , deveria aceitar que a capitulação do sr. Dallara foi voluntária ou deveria declarar que foi coagida. No que se segue, não me debruçarei sobre as repercussões financeiras da decisão do ISDA (a minha visão sobre isso está aqui ). Em vez disso, dedicar-me-ei a delinear uma deliciosa ironia decorrente da situação dos banqueiros: Talvez pela primeira vez na história, eles estão no mesmo campo de feministas e de esquerdistas variados. Como tentarei argumentar abaixo, o "acordo" imposto ao sr. Dallara pela sra. Merkel mergulhou (involuntariamente) os banqueiros, a imprensa financeira, os empedernidos peritos financeiros do mundo, toda a Wall Street e a City de Londres, dentro da espécie de debate que, normalmente, é do âmbito de feministas e de intelectuais marxistas.

OS LIMITES DO CONSENTIMENTO

Como foi? Vamos pensar nisto:   desde o início (pelo menos desde Mary Wollstonecraft , se não muito antes) as feministas fizeram seu tema preferencial debater os limites do consentimento. Dado o facto de que a maior parte das mulheres consentia (na verdade, ajudava a reproduzir) no seu status social inferior isso significava que elas eram livres para escolher? Será que o consentimento a um marido violento legitima pancadas na esposa? Estas eram as questões que encabeçavam a crítica feminista da tendência de pensadores liberais a identificar consentimento com liberdade.

Mais ou menos ao mesmo tempo, a esquerda (lavrando um sulco estreito cavado antes por pensadores como Marx, Bakunin e outros) contestava a noção de que o trabalho contratado (entre empregador e empregado) é livre e justo simplesmente porque o empregado consente nos seus termos e condições. O argumento pungente de Marx era que pessoas desesperadas, às quais faltava qualquer acesso real a meios alternativos de prolongar vida, em desespero consentirão a ofertas de salário abomináveis e a condições de trabalho odiosas. Na verdade, acrescentava ele, em tais casos, consentimento sob coacção revela precisamente o oposto da livre escolha: trata-se nada menos do que imposição coagida sobre alguém da vontade de ferro (e de interesses sórdidos) de outro.

Muito mais recentemente, o teórico político canadiano CB. Macpherson (ver o seu livro brilhante de 1973, Democratic Theory: Essays in retrieval) relançou a definição liberal de liberdade. Argumentou ele que devemos desistir de identificar liberdade em entrar num acordo com a exigência de que se deve consentir naquele acordo. Ao invés disso, propôs a definição alternativa segundo a qual um acordo é genuinamente livre se uma das partes tem a opção de não consentir à proposta que a outra lhe faz.

Suponha, por exemplo, que lhe faço uma proposta como por exemplo, "aliviá-lo" de algo que você possui a um dado preço. O teste ácido da pureza e lisura da transacção é se você tem a opção de dizer "não" e não se você realmente diz "sim". Você é, neste sentido, livre para rejeitar um contrato desde que tenha alternativas. Se a sua alternativa a assinar uma declaração transferindo toda a sua propriedade para mim em troca de um copo de água (quando à beira do colapso num deserto) é a desidratação e a morte, então um tal contrato dificilmente é um exemplo de voluntário, de comércio livre. E uma vez que aquilo que constitui um razoável conjunto de opções alternativas factíveis (antes do acordar ou não uma proposta) é um terreno altamente contestado, proclamar que os CDSs da dívida grega agora não disparariam (a seguir ao haircut grego) é filosoficamente equivalente a proclamar que o contrato de trabalho e as relações patriarcais entre homens e mulheres são livres e justas.

E aqui está a ironia: Foi preciso a crise do euro para colocar banqueiros no papel dos activistas radicais que, muito correctamente, têm estado a protestar desde há muito que a pior forma de escravidão é aquela que é consentida.

Nota: A linha de argumentação acima é uma simplificação de um certo número de documentos escritos tempos atrás. Ver por exemplo um documento de 1995, publicado em Science & Society , intitulado Freedom within Reason . Ver também uma resposta a uma crítica deste documento intitulada Reason without Freedom .

29/Outubro/2011

  • Do mesmo autor: Outro não-acontecimento emblemático na UE: O novo "acordo" da UE, uma primeira reacção

    O original encontra-se em yanisvaroufakis.eu/...


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • 31/Out/11