Muitos dos horrores que o Ocidente permitiu em Gaza ocorrerão na Europa

– A história demonstra que os crimes do império refletiram-se posteriormente em solo europeu. Tanto a desumanização como o terror militarizado parecem agora normalizados.

Owen Jones [*]

Cartoon de Latuff.

É claro o que o genocídio israelense, facilitado pelo Ocidente, fez a Gaza. Mas o que nos fez a nós? Os palestinos são como "canários numa mina de carvão", diz-me o analista palestino Muhammad Shehada. "Estamos a gritar um grande aviso sobre o que está prestes a acontecer-vos. Quando têm uma classe política e mediática que se deleita com o assassinato dos nossos filhos, acham que eles vão importar-se com os vossos?"

Há um aviso do nosso passado recente e aterrador que devemos ter em conta. O colonialismo, advertiu o autor martinicano Aimé Césaire, "trabalha para descivilizar o colonizador, para o brutalizar no verdadeiro sentido da palavra, para o degradar, para despertar nele instintos ocultos, a ganância, a violência, o ódio racial e o relativismo moral". Os horrores do imperialismo ocidental — com a sua desumanização e violência — foram, segundo ele, finalmente redirecionados para a Europa na forma do fascismo. Este foi o "bumerangue" imperial, como concordou a filósofa alemã Hannah Arendt.

O que é que regressará ao Ocidente como um bumerangue dos campos de extermínio de Gaza? Todo genocídio exige a desumanização total das suas vítimas, e os palestinos não são exceção.

São "animais humanos" e "bestas humanas" que sofreriam o "inferno", declararam os líderes do regime israelense. "É toda uma nação a responsável", disse o presidente israelense Isaac Herzog. Outros políticos israelenses pediram para "apagar toda a Gaza da face da Terra". "Não é exagero dizer que há muito poucos civis palestinos inocentes", declarou o congressista republicano dos EUA Brian Mast, enquanto o apresentador da Fox News, Jesse Waters, classificou os palestinos de "selvagens".

Mas essa desumanização vai além de suas expressões mais violentas. Não se pretende que uma vida palestina tenha sequer uma fração do valor da vida de um colono supremacista. Veja o que se tornou normal. Hospitais bombardeados e destruídos, com mais de 1 700 profissionais de saúde mortos. Civis massacrados enquanto se refugiavam em escolas. Mais de 2 600 palestinos famintos mortos a tiros ao tentar recolher alimentos desde maio.

Adolescentes baleados em diferentes partes do corpo “como num jogo de tiro ao alvo”, como testemunhou o cirurgião britânico Dr. Nick Maynard:   “Um dia chegavam predominantemente com ferimentos de bala na cabeça ou no pescoço, outro dia no peito, outro dia no abdómen”. Tortura industrializada contra detidos, desde amputações de pernas causadas por ferimentos de algemas, até soldados israelenses que, segundo relatos da imprensa israelense, se revezam para violar um homem com espingardas M16.

Poderíamos continuar, mas todos estes horrores estão entre os momentos mais sombrios da humanidade. O facto de terem sido facilitados por governos ocidentais e aplaudidos ou simplesmente tolerados ou encobertos pelos meios de comunicação ocidentais terá consequências profundas.

Também terá consequências o facto de os ocidentais que protestaram contra esta barbárie desenfreada terem sido demonizados, despedidos, expulsos das suas plataformas, espancados por polícias e hordas sionistas, detidos e ameaçados com a deportação. Também terá consequências a destruição do que restava de uma "ordem internacional", torpedeada para proteger Israel da responsabilização, como aconteceu quando juízes do Tribunal Penal Internacional foram sancionados pelos EUA após emitirem mandados de prisão contra líderes sionistas por crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

O regime israelense inclinou-se ainda mais para a direita e procurou ligações com movimentos globais de extrema direita, como os da França, Suécia, Espanha e Hungria, entendendo que esses partidos são os seus principais promotores. O ministro israelense para a Diáspora e a Luta contra o Antissemitismo chegou a convidar Tommy Robinson (da ultradireitista Liga de Defesa Inglesa) para uma visita oficial, declarando-o "um líder corajoso na linha de frente contra o islamismo radical".

A extrema direita ocidental vê Israel como um modelo:   um etno-estado que trava o que considera uma guerra justa contra o islamismo. O líder do partido de extrema direita espanhol Vox declarou:   "Nós, europeus, precisamos ver o que está a acontecer com Israel", exigindo que, para se proteger, a Europa deve "deter a imigração em massa e expulsar os imigrantes ilegais. Não queremos uma Europa muçulmana".

Quando Israel aprovou uma lei que concedia o direito à autodeterminação apenas ao povo judeu, o líder de extrema direita holandês Geert Wilders classificou-a como "fantástica", um "exemplo para todos nós", exigindo ao seu povo "definir o nosso próprio Estado-nação, a nossa cultura indígena, a nossa língua e a nossa bandeira... isso ajudará a evitar que nos tornemos islâmicos".

Ouçamos o académico israelense Shmuel Lederman quando argumenta que Gaza se tornou "um laboratório de violência genocida", mas também um campo de testes para "novas armas e tecnologias de segurança". Israel, observa o jornalista australiano Antony Loewenstein, há muito tempo testa as suas invenções com palestinos e depois as exporta:   software espião, bases de dados de reconhecimento facial e biométrico, drones, cercas inteligentes e sistemas de orientação baseados em inteligência artificial.

Neste momento, os palestinos estão a vasculhar os escombros para recuperar os seus mortos, rezando para que o ataque genocida termine para sempre, enquanto os camiões de ajuda humanitária que Israel bloqueou finalmente chegam. Mas, como observou Trump no início deste ano:   "Uma civilização foi aniquilada em Gaza".

Na sequência dos grandes crimes da história, sempre houve um debate sobre o que se sabia na altura. Apesar da campanha israelense de mentiras, distorção, desvio, manipulação e turvação das águas:   todos nós sabíamos. Não todos os detalhes horríveis, branqueados como foram pela maioria dos meios de comunicação social, mas mais do que suficientes. Os crimes do regime de apartheid não foram ocultados:   os seus líderes gabaram-se deles e foram transmitidos ao vivo para que o mundo os visse.

O preço que os palestinos pagam ultrapassa a nossa imaginação. Mas que preço pagaremos nós? O Ocidente desumanizou-se, ao mesmo tempo que cresce um movimento de extrema-direita que vê os muçulmanos e a esquerda como inimigos internos. Após o bombardeamento americano de barcos de pesca venezuelanos que "transportavam drogas", o procurador-geral americano prometeu "a mesma abordagem com a Antifa:   destruir toda a organização, de cima a baixo. Vamos desmantelá-los". "Antifa" — ou antifascismo — é um fantasma, um bicho-papão que pode ser aplicado a qualquer dissidente de esquerda.

Não esperem que a desumanização violenta e as tecnologias militares distópicas aperfeiçoadas em Gaza permaneçam lá. A nossa história sombria diz-nos o contrário. É uma pena não termos aprendido as suas lições.

19/Outubro/2025

Ver também:
  • O National Press Club of Australia cancela minha palestra sobre nossa traição aos jornalistas palestinos, Chris Hedges
  • [*] Jornalista, britânico.

    O original encontra-se em The Guardian e a versão em castelhano em www.lahaine.org/mundo.php/muchos-de-los-horrores-que-occidente-permitio

    Este artigo encontra-se em resistir.info

    01/Nov/25

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