A mãe de todas as batalhas
Ensombrados pelos acontecimentos da guerra, os complexos das causas rapidamente
se perdem de vista. Nas sociedades modernas, a economia capitalista é a
mãe de todas as coisas e, nessa mesma medida, também é a
verdadeira mãe de todas as batalhas. As motivações
pessoais e os motivos ideológicos não podem ser explicados sem se
ter em mente a objectividade do desenvolvimento do capitalismo mundial. A
guerra do Iraque distingue-se das guerras de ordenamento mundial dos anos 90
sobretudo pelo facto de já não ocorrer sob o signo da grande
prosperidade aparente das bolhas financeiras. A baixa das bolsas não
só aniquilou um capital monetário de proporções
astronómicas, despoletando assim um abrandamento conjuntural à
escala planetária, como igualmente, em consequência disso,
provocou uma profunda crise dos sistemas bancários e dos seguros.
O derretimento dos valores contabilísticos das carteiras de
acções abre crateras gigantescas nos balanços e nos
capitais próprios, ao passo que a enxurrada de falências deixa
atrás de si um rasto de crédito malparado de dimensões
semelhantes às que já se verificaram no Japão e no Sudeste
asiático, mas desta feita também no seio da UE e nos EUA. Ao
mesmo tempo o fluxo de impostos, taxas e prémios de seguros
ameaça secar ainda mais. Os sistemas de segurança social vacilam
tanto como a arquitectura das finanças comerciais. Já em
Fevereiro ocorreu um "encontro secreto" do chanceler federal
alemão, Gerhard Schröder, com representantes das
direcções dos bancos, onde foi proposta, seguindo o exemplo
japonês, a fundação de uma sociedade estatal de acolhimento
do crédito malparado ("Bad Bank") a fim de se evitar um
agravamento dramático da crise dos bancos na RFA. E como a crise
alimenta a crise, a segunda e principal repercussão sobre a economia
real já não vem longe. Nessa altura, possivelmente o abrandamento
conjuntural planetário não dará lugar à
próxima retoma, mas a uma grande depressão mundial.
A esta problemática geral sobrepõe-se o cenário de crise
específico da última potência mundial, ou seja, dos EUA,
que há muito tempo tem vindo a ganhar forma e momento e que, de resto,
é do conhecimento geral. O aparelho militar de alta tecnologia, sem
qualquer concorrência no mundo, não só não consegue
pacificar a barbárie e a violência nas regiões globais em
derrocada como, ele próprio, tem pés de barro em termos
económicos. O endividamento interno e externo dos EUA, sem qualquer
precedente histórico, há muito que ultrapassou tudo o que pudesse
passar por razoável. Apenas o constante afluxo de capital
monetário mantém viva uma economia aparente que, em
contrapartida, devora a riqueza deste mundo por intermédio de um
excedente das importações igualmente sem precedentes. Já
se disse muitas vezes: Por esta altura, é este o balão de
oxigénio que resta à conjuntura mundial. Por enquanto a bolha
financeira dos EUA ainda não encolheu tanto como a asiática e a
europeia, mas o colapso perfila-se no horizonte.
Perante este pano de fundo pode ser explicada uma política de
emergência global que emana do centro, ou seja, dos EUA, e em cujo seio
se articulam momentos aparentemente desconexos. Desse lote também faz
parte a guerra no Iraque que tudo leva a crer não passar de um
pontapé de saída. O emprego indiscriminado do aparelho de
violência de alta tecnologia é suposto reafirmar a
pretensão de controlo à escala global e forçar um afluxo
continuado de capital monetário. Na medida em que o petróleo
desempenha um papel de relevo, trata-se menos de um esforço para
assegurar as respectivas reservas, o que também seria possível
sem o recurso a uma guerra, do que da "opção",
destinada a estabilizar os mercados financeiros, por uma redução
drástica do seu preço, o que poderá levar à
ruína tanto dos países da OPEP como da Rússia.
Simultaneamente esta "solução" da crise deverá
ser flanqueada por uma globalização ainda maior do capital sob a
égide dos EUA, imposta com todo o rigor, e pela destruição
consciente de todos os sistemas de segurança social e ecológica
em todo o mundo que a ela se encontra associado. Se for necessário que
alguns dos grandes bancos ocidentais se desmoronem, com consequências a
condizer no seio da economia real, tal deve acontecer fora dos EUA. Uma
política de crise deste modo brutalizada implica necessariamente
também a destruição do sistema de
legitimação existente até à data (ONU, direito
internacional).
O desentendimento de Chirac, Schröder e Putin com a
administração dos EUA não se enquadra minimamente num
esquema tradicional de concorrência nacional e imperial por
mão-de-obra (isso então nem um bocadinho!), mercados,
matérias-primas e "esferas de influência". Antes, o que
está em causa é o "como" do regime global de crise. O
acordo é geral quanto à liquidação de todos e
quaisquer direitos sociais. No entanto, e contrariamente à
política dos EUA, uma parte dos governos da UE tanto tem
escrúpulos perante a eventualidade do estabelecimento de uma ditadura
militar directa dos EUA no próximo Oriente e nas regiões globais
em derrocada, como face à ruína intencional da OPEP e, sobretudo,
da Rússia. Além disso, e a fim de, perante resistências
institucionais, mais facilmente poderem levar a cabo a liquidação
dos sistemas sociais, eles querem também salvar resquícios do
sistema de legitimação, tanto dos estados nacionais como a
nível internacional, e da coerência em termos de economia
política (veja-se o exemplo da "Bad Bank").
Ao mesmo tempo, porém, sabem exactamente que, em todos os aspectos,
dependem para a sua sobrevivência dos EUA que, por intermédio do
seu endividamento extremo absorvem os fluxos tanto do capital monetário
como das mercadorias, mantendo assim a aparência de processos de
valorização bem sucedidos. Um colapso da economia dos EUA e um
maior enfraquecimento do dólar, longe de fortalecer o poder da UE,
arrastava-a atrás de si por intermédio do colapso das estruturas
de exportação; acresce que os europeus, por algumas
décadas, seriam incapazes de estabelecer um controlo militar
independente dos processos de crise globais. É por isso que a parte
menos escrupulosa e mais reaccionária dos "global players"
[jogadores globais], do capital financeiro e da classe política aposta
em pleno nos "falcões" da administração Bush. Um
capitalismo transnacional de crise e minoria deve exercer, com o punho blindado
do aparelho militar nacional da última potência mundial, o seu
regime do terror global que vai dando lugar à irracionalidade pura e
simples.
Isto não significa outra coisa senão a eclosão da
contradição irremediável entre a
globalização da economia capitalista e a
constituição essencialmente vinculada ao quadro do estado
nacional da política capitalista. O "eixo"
Paris-Berlim-Moscovo, já de si quebradiço, não constitui
uma alternativa real nem em termos externos, nem em termos internos. Qualquer
política que já até à data tem conseguido uma mera
limitação de prejuízos dentro dos limites imutáveis
da ordem mundial vigente ao preço de uma crescente exclusão e
repressão social encontra-se votada ao fracasso. Enquanto as pessoas
não se emanciparem, no seio de movimentos sociais absolutamente
independentes, da sua domesticação capitalista,
continuarão a não ser mais que massas manipuláveis de
diversas variantes do regime global de crise.
___________
[*]
Filósofo.
Original alemão Die Mutter aller Schlachten, in Neues Deutschland,
Berlin, 4 de Abril 2003
Disponível em
www.krisis.org
;
http://www.giga.or.at/others/krisis/r-kurz_mutter-aller-schlachten-nd-kol74.html
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O original da versão em português, traduzida por Lumir Nahodil,
encontra-se em
http://planeta.clix.pt/obeco/rkurz118.htm
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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