Independência cozinhada
O Kosovo e o Panamá
Os apoiantes americanos da independência do Kosovo afirmaram que a
secessão ilegal da província sérvia do Kosovo era um caso
"único" e especial. Mas, a "independência" do
Kosovo terá sido mesmo
sui generis
e especial? O ataque e a ocupação ilegais do Kosovo pelos EUA
não são únicos nem especiais. Em 1903, os EUA cozinharam a
secessão ilegal do Panamá da Colômbia. Os EUA aplicaram
agora o modelo panamenho ao Kosovo. Afinal, como é que o Panamá
alcançou a "independência" em 1903?
Em 1904 o presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, enunciou o Corolário
à Doutrina Monroe, que permitia aos EUA intervir em qualquer local no
Hemisfério Ocidental para impedir a intervenção de
potências europeias.
Em 1903, os EUA planearam construir o Canal do Panamá por razões
estratégicas, militares e comerciais. O Panamá era uma
província do norte da Colômbia. Mas a Colômbia não
apoiou o plano dos EUA para criar um canal em território colombiano,
território que os EUA iriam ocupar e governar indefinidamente. A forma
como o governo americano contornou este problema foi enviar fuzileiros
americanos para a Colômbia para cozinhar a
"independência" da província do Panamá. O governo
estado-unidense encenou uma "revolução" de um dia
orientada por si e que resultou numa declaração de
"independência" imediatamente reconhecida pelos EUA. Logo a
seguir os EUA instalaram um regime sustentado por Washington na nova
nação independente do Panamá.
Os EUA andavam a planear a construção do Canal do Panamá
desde a guerra hispano-americana de 1898 como um projecto de
construção vital para os interesses geopolíticos,
militares e comerciais do país. O plano era construir o canal em
território colombiano, na província norte do Panamá. Na
sequência da guerra hispano-americana, os EUA emergiram como uma
potência global colonial e imperialista, juntando-se às outras
potências colonialistas europeias ou impérios, a
Grã-Bretanha, a França, a Alemanha e a Rússia. Depois
desta "magnífica guerrazinha" os EUA retiraram Cuba, as
Filipinas, Guam, e Porto Rico à Espanha. Os EUA anexaram estes
territórios espanhóis pela força das armas e
transformaram-nos em "possessões" americanas ou
colónias.
O pretenso Canal do Panamá era considerado essencial para o aparecimento
dos EUA como potência imperialista global. O Canal permitiria à
marinha americana passar do Atlântico para o Pacífico sem ter que
dar a volta à América do Sul. O Canal era vital numa perspectiva
militar e estratégica, e também comercial. Foram propostas duas
rotas, um canal através da Nicarágua ou através do
Panamá. Os apoiantes da rota do Panamá conseguiram ver aprovado o
seu plano. O passo seguinte era obter a autorização da
Colômbia para construir o canal através do território
colombiano, na província norte do Panamá.
O secretário de Estado americano, John Hay, e o ministro dos
Estrangeiros da Colômbia, Tomas Herran, assinaram um tratado autorizando
os EUA a construir o canal. A Colômbia receberia 10 milhões de
dólares e pagamentos anuais de 250 mil dólares pela
utilização do terreno. O Congresso dos EUA ratificou o Tratado em
17 de Março de 1903. Mas em 12 de Agosto de 1903 o Congresso da
Colômbia rejeitou o tratado por unanimidade. A violação da
soberania colombiana foi uma questão fundamental para a
oposição a este plano.
Os EUA tinham diversas opções. Podiam construir um canal no local
alternativo na Nicarágua. Podiam tentar renegociar o acordo com a
Colômbia. Podiam ocupar ou apoderar-se do Panamá com base no
tratado de 1847 assinado pelos EUA e por Granada (precursor da Colômbia)
que dava aos EUA o direito de passagem pelo Panamá.
Havia ainda outra opção mais subtil e mistificadora. Foi a
opção escolhida. Tratava-se de cozinhar a
"independência" do Panamá e conseguir a
separação da província através de força
superior. O jornal
Indianapolis Sentinel
chegou mesmo a debater cinicamente a opção da
independência, em 1903: "O plano mais simples para forçar a
Colômbia seria incitar uma revolução no Panamá
e apoiar o governo insurrecto
É uma hipocrisia, mas mantém
as aparências".
Em Maio de 1903, a "independência" ou seja a
separação ou desmembramento do Panamá da Colômbia
já estava a ser encarada como uma possibilidade se a Colômbia
rejeitasse o acordo do canal com os EUA. Os separatistas eram chefiados por
Manuel Amador Guerrero, conhecido por Dr. Amador, um médico que
trabalhava na Railroad Company, que foi a Nova Iorque para coordenar a
estratégia de independência ou separação com
funcionários governamentais e empresariais dos EUA. Exigiu aos EUA 6
milhões de dólares para armar os separatistas. As
discussões foram feitas com William Cromwell, que era um dos patronos do
projecto da construção do Canal do Panamá. Philippe
Bunau-Varilla, um engenheiro francês envolvido no projecto do canal, que
iria arranjar 100 mil dólares para os separatistas para financiar a
"independência", foi o intermediário entre o governo dos
EUA e os conspiradores panamenhos. Os divisionistas tinham
ligações com a Panama Railroad e a New Panama Company que eram
propriedade do governo americano.
O presidente Theodore Roosevelt considerava o canal do interesse vital para os
EUA. Ameaçou os dirigentes colombianos: "Essas desprezíveis
criaturinhas em Bogotá têm que compreender que estão a
criar uma situação arriscada e a pôr em perigo o seu
próprio futuro". O embaixador americano na Colômbia, Arthur
M. Beuapre ameaçou igualmente o governo de Bogotá: "O nosso
Congresso irá dar passos no próximo Inverno que todos os amigos
da Colômbia lamentarão tristemente".
Então os EUA escolheram a opção da
"independência". Entre 12 de Agosto e 15 de Outubro de 1903,
foi coordenado o plano com os separatistas panamenhos. Os EUA dariam luz verde
aos separatistas e secessionistas para se apoderarem do território
panamenho que os militares americanos iriam ocupar. Os separatistas criados
pelos EUA declarariam depois a independência unilateralmente. Os EUA
reconheceriam essa independência. A Colômbia não poderia
fazer nada para impedir a amputação ou separação do
Panamá.
Em 26 de Outubro, os EUA enviaram dois vasos de Guerra para o Panamá, os
USS Nashville e Dixie, que atracaram em Cólon, com 450 fuzileiros a
bordo, preparados para a guerra e um conflito armado com a Colômbia. No
Pacífico, foram posicionados os vasos de guerra americanos Marblehead e
Boston. O objectivo era evitar que a marinha colombiana impedisse a conquista
do Panamá pelos EUA e pelos seus lacaios panamenhos. Foi uma
situação de "diplomacia à boca das espingardas".
Ironicamente, o Nashville tinha sido utilizado para dominar a rebelião
ou movimento de independência filipino em 1900 e a rebelião boxer,
uma rebelião chinesa para conseguir a independência da
ocupação e exploração colonial e imperialista
europeia.
A 2 de Novembro de 1903, foi posicionado no Panamá o navio colombiano
Cartagena. Mas o navio americano Nashville, com as suas canhoneiras de 4
polegadas, conseguiu forçar o barco a recuar. A guarnição
colombiana no Panamá foi subornada pelas forças americanas para
não intervir. No dia seguinte o Panamá declarou a
independência. Os EUA reconheceram imediatamente a independência do
Panamá. Agora já podiam construir o Canal do Panamá.
Voilà! Foi assim que nasceu uma nação.
Duas semanas depois da independência, a nova nação
"independente" do Panamá assinou um tratado com os EUA que
autorizava o projecto do canal. Os EUA tinham o direito de controlar o
território panamenho em volta do canal "perpetuamente". Os 10
milhões de dólares e os pagamentos anuais de 250 mil
dólares eram dados ao Panamá ao invés da Colômbia.
Os EUA treinaram as forças armadas panamenhas e os administradores
civis. O dólar passou a ser a divisa oficial. Até já
estavam prontas uma bandeira e uma constituição. Bunau-Varilla,
embora cidadão francês, foi nomeado embaixador do Panamá
nos EUA. A primeira bandeira do Panamá foi concebida e costurada
à mão em Highland Falls, Nova Iorque, num tecido adquirido nos
Armazéns Macy. A bandeira era semelhante à bandeira do estado do
Texas, vermelha, branca e azul, com duas estrelas.
Em 1921 a Colômbia foi forçada a reconhecer a independência
da sua antiga província. Os EUA pagaram à Colômbia 21
milhões de dólares em troca desse reconhecimento. O Panamá
iria ser governado por juntas, a militar e a da ditadura, durante a maior parte
do século XX. Em 1989, os EU depuseram o ditador Manuel Noriega, que
desde 1959 era um trunfo da CIA.
As semelhanças entre a "independência" do Panamá
cozinhada em 1903 e a do Kosovo em 2008 são flagrantes e reais. Em ambos
os cenários, os EUA utilizaram a arma da secessão para desmembrar
Estados que eram considerados hostis aos interesses americanos. A
Colômbia impedia a construção do Canal do Panamá,
considerada como de interesse geopolítico, militar e comercial vital
para os EUA.
Os EUA construíram 14 bases militares no Panamá e correram
notícias de que chegou a ter ali 130 instalações ao todo.
No Kosovo, os EUA construíram o Campo Bondsteel, uma das maiores e mais
caras bases militares americanas jamais construídas, que alberga 4000
efectivos de tropas de ocupação americanas. O complexo do campo
foi construído em 386 hectares no Kosovo, com um perímetro de 11
quilómetros. A base foi construída pela empresa privada Kellogg,
Brown and Root (KBR) e pelo exército americano por 350 milhões de
dólares e a sua manutenção anual custa 50 milhões
de dólares. O campo tem a sua própria central de energia
eléctrica, instalações de tratamento de águas e de
lixos, habitações em estilo asiático, um aeroporto para
aterragem de helicópteros, e até mesmo um restaurante Burger King
e um Taco Bell. Em Novembro de 2005, um delegado dos direitos humanos do
Conselho da Europa, Alvaro Gil-Robles, visitou o campo onde viu uma
instalação de detenção que caracterizou como uma
"versão mais pequena de Guantanamo".
A Sérvia, de igual modo, foi considerada um obstáculo às
tentativas dos EUA para captar os países balcânicos, do sudeste da
Europa, para a NATO e alianças militares e comerciais com os EUA. Os
governantes americanos consideravam a penetração dos EUA nos
Balcãs como do interesse estratégico vital dos EUA. Nos debates
presidenciais de 2000, George W. Bush afirmou que o Kosovo era vital para o
futuro da NATO e a sua expansão. O Kosovo e os Balcãs eram vitais
para o papel estratégico das forças armadas dos EUA a sudeste da
Europa.
Tal como no cenário panamenho, a política dos EUA é usar os
potenciais movimentos separatistas como meio para desmembrar ou
neutralizar um país considerado hostil, antagónico ou
obstáculo aos seus desígnios.
O cenário do Kosovo, portanto, nada tem de "único" nem
de
sui generis.
O Panamá demonstrou que o
modus operandi
já fora utilizado anteriormente.
01/ Março/2008
[*]
Historiador, americano.
O original encontra-se em
http://www.serbianna.com/columns/savich/099.shtml
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Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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