Uma guerra contra o euro
por Rafael Poch de Feliu
O impulso da gente comum a favor da paz está mais que claro, mas como se
explica que depois de ter colaborado activamente ou de ter aplaudido três
campanhas militares nos últimos 13 anos (Iraque, Jugoslávia e
Afeganistão), a matriz da União Europeia se oponha, agora,
à guerra contra o Iraque? O que torna pacifistas os
financeiros de Frankfurt e por que os editorialistas do The
Economist não vêem nada claro a guerra de Bush?
A resposta pode ser que estamos diante de um braço de ferro decisivo, e
muito significativo, entre o dólar e o euro.
Maio de 2001
Javier Solana, ministro dos negócios estrangeiros da UE,
visita Moscovo para a cimeira técnica Rússia-UE. O
principal resultado da cimeira é a criação de um
grupo misto para o estudo da possibilidade do comércio
bilateral se fazer em euros em vez de dólares. Acontece que 40% do
intercâmbio comercial russo é com a UE (Estados Unidos 8%) e que o
grosso desse intercâmbio é de gás e petróleo. A
Rússia já vende um terço dos carburantes consumidos na
Europa e a proporção aumentará uns 10% nos próximos
anos. Solana está radiante.
Faltam oito meses para que a moeda europeia chegue aos bolsos das pessoas,
explica. Quando isso suceder, teremos surpresas positivas. Solana
refere mudanças no mundo do petróleo, que vão
tornar possível a passagem russa para o euro e o abandono do
dólar. O petróleo compra-se e vende-se no mundo em
dólares, mas metade das exportações de gás russo
já se realizam em euros e algo de parecido se passa com a madeira.
O Iraque já passou para o euro e a Argélia e a Líbia
farão o mesmo no futuro, disse Solana. (Veja-se
La Vanguardia
, 18/05/2001: Rússia acorda com a União Europeia estudar o
uso do euro nas suas relações económicas).
Efectivamente, o Iraque passou para o euro em Novembro de 2000. Foi um mau
negócio porque o euro estava então a 80 cêntimos de
dólar e o câmbio pressupôs perdas milionárias, mas
vinha ditado por considerações políticas.
Radio Liberty
, o antigo instrumento da CIA para o bloco soviético, explicou assim a
notícia naquele dia: A passagem de Bagdad do dólar para o
euro no comércio do seu petróleo é uma tentativa de
castigar a linha dura de Washington na questão das sanções
e animar os europeus a desafiá-la.
Janeiro de 2002
Romano Prodi, presidente da Comissão Europeia, primeira autoridade da
UE, apresenta o euro na bolsa de Nova York, capital mundial do dólar. O
evento está envolvido de um mau ambiente. A imprensa norte-americana
evita o assunto. O director da bolsa não comparece ao acto por
doença. Os Estados Unidos não levam o euro a sério?
Pelo contrário, levam-no muito a sério. Onde não o levam a
sério é em Espanha; na imprensa espanhola a
introdução do euro reduz-se a uma sucessão de anedotas
sobre o uso popular da moeda e as embrulhadas com a mudança. Pelo
contrário, em Moscovo, onde a par de muitos defeitos e problemas
há o hábito de pensar globalmente, recolho reflexões sobre
as consequências da introdução do euro na
correlação de forças global. Cito a competente
opinião de Fabían Estapé neste diário (no dia
em que o comércio de petróleo se faça em euros,
acreditarei no euro) e escrevo o meu artigo:
Abrir uma brecha que desaloje o dólar nos assuntos
energéticos é algo sério e carregado de
implicações. Os estadunidenses sabem do que se trata
e vão ser implacáveis, como sempre são quando se trata de
dinheiro e de competidores. De seguida menciono duas opiniões de
peritos russos:
É mais que provável que os Estados Unidos farão uso
dos numerosos meios de que dispõem, incluindo os
extra-económicos, para impedir uma passagem maciça da
utilização do dólar a favor do euro, diz Olga
Butorina, do Instituto de Europa da Academia de Ciências. O
debilitamento da zona euro, sem olhar a meios, vai ser uma das
linhas mestras da política americana, e, inclusivamente, a
condição estratégica para a sobrevivência dos
Estados Unidos como líder geopolítico mundial, prognostica
Mikhail Deliaguin, director do Instituto de problemas da
globalização de Moscovo. (Veja-se Euro, Diário
de Moscovo, 24/01/2002). A próxima guerra é parte dessa resposta
(uma resposta de verdadeiro rogue state estado bandido) e
por isso é inadmissível para a União Europeia.
Até ao dia de hoje
A economia dos Estados Unidos atravessa uma fase delicada com um défice
de 6,3 mil milhões de dólares, equivalente a 60% do PNB, e um
regresso aos défices orçamentais de centenas de milhares de
milhões. Tudo isso chega e sobra para desvalorizar o dólar, mas,
desde 1945, a moeda estadunidense dispõe das enormes
subvenções globais que se desprendem da sua
liderança. Quatro quintos das transações internacionais,
metade das exportações e dois terços das reservas globais
em divisas fazem-se e são em dólares. O comércio
petrolífero em dólares é um pilar básico desse
estatuto. Desde que existe o euro e a zona euro, essa situação
tornou-se ainda mais anómala porque não corresponde ao peso real
da economia dos Estados Unidos na economia global.
A zona euro já tem uma maior participação no mercado
global que os Estados Unidos e as suas contas estão mais saneadas. Mas o
verdadeiramente ameaçador para os Estados Unidos é o forte
comércio da União Europeia com o Médio Oriente. Depois do
alargamento de 2004, a União Europeia terá 450 milhões de
habitantes e comprará mais de metade do petróleo bruto da OPEP.
É uma questão de pouco tempo antes que o euro substitua o
dólar no comércio petrolífero, diz o chefe do departamento
de análise de mercado da OPEP, Javad Yarjani.
Depois do Iraque, o Irão também estudou a transição
para o euro e o seu banco central já tem as suas reservas nessa divisa.
O ressentimento anti-estadunidense na região poderia adquirir efeitos de
avalancha. E não apenas na região; a Coreia do norte
também deixou de utilizar o dólar no seu comércio exterior
por razões políticas. A Venezuela de Chavez vê com muito
bons olhos esta perspectiva, o que pode ter algo a ver com o aplauso dos EUA ao
golpe que o Presidente Venezuelano sofreu em Abril. Venezuela, Rússia e
China diversificaram as reservas dos seus bancos centrais. Até as
obrigações do tesouro do Brasil se vendem em euros, explica-me um
diplomata brasileiro em Pequim... E por detrás de tudo isto aparecem
palavras maiores; vacilações japonesas acerca da aposta da maior
reserva bancária (em dólares) do mundo, fim do monopólio
global em dólares, diminuição do poderio global
estadunidense.
A guerra é uma estratégia dos EUA para prevenir uma
arrancada da OPEP para o euro como moeda de referência nas
transações de petróleo. O controlo (militar) do
petróleo do Iraque permitirá aos Estados Unidos desmantelar o
controlo de preços da OPEP. Esta guerra não tem que ver com
nenhuma ameaça das velhas armas de destruição
maciça de Saddam, nem com o terrorismo. Esta guerra será pela
divisa global para o petróleo, explica o
professor William Clark da Universidade John Hopkins, num artigo bastante
claro (ver
O pesadelo do banco central dos EUA & a razão real para a guerra ao Iraque
).
Daqui em diante
Vista da perspectiva da rivalidade comercial entre os Estados Unidos e a
União Europeia, a actual crise da Nato é uma consequência
lógica. Pode a União Europeia ter uma política
económica e exterior própria, quando a estrutura de
segurança continental está hipotecada a uma superpotência
dominante que é o seu principal rival comercial? Se a resposta é
não, há que desfazer-se da Nato, essa Nato que os
Estados Unidos querem converter em instrumento da sua estratégia de
intervenção global.
Outra reflexão é a de se a União Europeia está
disposta e capacitada para assumir as consequências do seu próprio
impacto. Se a resposta é sim, este é o
calendário que referia no ano passado em
Die Zeit
uma especialista da Sociedade Alemã de Política Exterior;
2004 alargamento a leste da UE; 2007, Constituição
Europeia; 2010, colocação em comum da participação
europeia no FMI, e, em consequência, transladação da sede
do Fundo de Washington para Bruxelas; 2012, criação de um posto
comum europeu no Conselho de Segurança da ONU....
Desconheço se os Estados Unidos estariam dispostos a reformular pilares
tão fundamentais da actual ordem. Não há nada
mais imprevisível que uma superpotência mundial apeada do seu
estatuto histórico. Acabámos de vê-lo na URSS, com
resultados surpreendentemente pacíficos. Uma Europa mais articulada e
emancipada do seu meio século de tutelas e vassalasses (a tutela
soviética desapareceu há 13 anos da metade oriental da Europa, a
estadunidense continua aí), comportar-se-á de acordo com o
desafio dos tempos, ou reeditará a velha ordem que já a destruiu
duas vezes no século passado?
Os actuais níveis, europeus, de consumo de recursos não
renováveis que se negam às gerações futuras e o seu
preço de mercado, a mesma essência da actual fractura
norte-atlântica, fazem parte daquela velha ordem destruidora do meio e
sem futuro.
Estamos no princípio de um novo mundo e o actual militarismo dos EUA
é apenas um dado entre muitos outros possíveis. Aconteça o
que acontecer, na guerra do dólar contra o euro há não
apenas desastres como também grandes oportunidades em forma de
espaços autónomos; para os países em desenvolvimento como
a China, para um mundo multipolar e para a maioria das pessoas que estão
a favor de um mundo menos injusto, como demonstram as enormes
manifestações contra a guerra do petróleo.
A curto prazo é provável que a propaganda da próxima
guerra já não apresente aquele bloco unido de pensamento
único de anteriores ocasiões. Pode suceder, inclusivamente, que
os jornalistas moderem a sua habitual propaganda de guerra e, imbuídos
de causas mais decentes, nos informem, não do que deseja o
establishment, mas do que se passa na realidade. Ou, pelo menos, do que
acreditam que se está a passar a partir do entendimento plural da sua
ética profissional.
O original deste artigo foi publicado pelo diário
La Vanguardia
, de Barcelona, em 17/Fev/03.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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