Um discurso histórico

por George Galloway [*]

Texto integral do discurso de George Galloway, o deputado rebelde britânico que se opôs à invasão do Iraque e que acaba de ser expulso do Partido Trabalhista de Tony Blair. Galloway inicia agora um novo e importante movimento político na Grã-Bretanha.

George Galloway. É um equívoco criado pelas circunstâncias a fama de que estou interessado apenas nos assuntos do Médio Oriente — particularmente na luta pela autodeterminação do povo palestino e contra os horrendos efeitos das sanções e da guerra sobre o povo iraquiano durante a vil ditadura de Saddam.

Tenho estado, naturalmente, apaixonadamente empenhado nestas questões, mas o meu interesse na oposição a todas as formas de imperialismo — incluindo a versão neoliberal adoptada pelo Sr. Blair — é motivada por um profundo patriotismo acerca das minhas próprias ilhas.

O império resultou na crueldade e na opressão de milhões fora destas ilhas, mas também ajudou a sustentar no poder uma elite dirigente cuja cupidez básica, e por vezes malícia, quando não mera indiferença e incompetência, oprimiu o seu próprio povo antes de voltar o seu olhar para povos de cor e fé diferentes.

Cuidar do Médio Oriente é meramente um reflexo do meu profundo senso de responsabilidade moral como britânico pelas malfeitorias na região de autoridades irresponsáveis, vorazes e incompetentes ao longo de muitos anos.

Opusemo-nos, uma surpreendentemente pequena elite nacional que se pendura no poder geração após geração através da captura de todo o movimento popular de resistência e a sua transformação num clube de membros juniores. Em eras medievais, a cabeça de Wat Tyler foi decepada pelo rei. Hoje, ele seria posto como responsável de algum regulador de Quangos (Quasi-autonomous non-government organisation) .

CONSTRUTORES DE IMPÉRIOS

É um mérito do Partido Trabalhista que tenha levado cerca de uma centena de anos para que o seu corpo e a sua alma fossem capturados de modo a que pudesse expulsar radicais tais como eu, mas foi um processo que começou com o Governo Nacional de Ramsey Macdonald e foi concluído com este de Tony Blair.

Trata-se da mesma rede da elite que outrora virou as costas ao Governo Interno Irlandês (Irish Home Rule) e dessa forma dividiu estas ilhas em duas, que quase levou a nação à bancarrota para manter elevados os lucros financeiros dos construtores do império e que, quando o império demonstrou ser insustentável, vendeu-nos, o povo, para uma antiga colónia como o seu porta-aviões.

Estes nossos governantes teriam tomado um avião para fugir do país ou afundado em bunkers quando o resto de nós fosse grelhado como base avançada dos Estados Unidos se tivesse havido um equívoco nos sessenta anos de guerra ao comunismo. Nós não lhes devemos nada.

Nós, em contrapartida, temos sido cúmplices nas mortes de milhares, possivelmente centenas de milhares ou milhões, de asiáticos e africanos desde 1945 e não ouvimos nem uma palavra de protesto da nossa família dirigente, dos nossos proprietários de medias e dos receptores de lucros da City.

Harold Wilson fez o melhor que podia e manteve-nos fora do Vietnam, ao passo que Tony Blair reflectindo os trinta anos de vagarosa absorção dentro da cultura, da sociedade e da economia da América do Norte, respondeu com a sua obediência de escravo à Casa Branca.

GUERRA HOMICIDA

O público está inconsciente, porque foi conveniente para alguns que não estivesse consciente quando eu estava a condenar Saddam Hussein no momento em que ele era apoiado pelo ocidente anti-comunista na sua guerra homicida contra o Irão e quando utilizava armas químicas fornecidas pelos nossos aliados.

Encontrei-me com Saddam Hussein por duas vezes, o mesmo número de vezes que Donald Rumsfeld se encontrou com ele.

A diferença é que Rumsfeld encontrou-se com ele para vender armas e gás ao seu regime e para dar-lhe os mapas necessários para alvejá-los, ao passo que eu encontrei-me com ele para tentar impedir sanções penosas e guerra.

Se disse palavras que tomadas fora do contexto inquietaram algumas pessoas, recuso-me a esquecer tal contexto.

Se pareci bajular um ditador, não o fiz. Os meus elogios foram à coragem, fortaleza e infatigabilidade do povo iraquiano, não ao seu ditador — qualidades que tiveram de ser demonstradas demasiado frequentemente na década seguinte depois de ter feito a observação de que se não podia derrubar aquele ditador então o meu primeiro dever era ajudar o seu povo como podia.

SOBERANIA

Não vamos esquecer que os crimes reais de Saddam Hussein contra o seu povo foram em grande medida cometidos durante o período em que ele era um cliente e um aliado do ocidente, quando eu estava a protestar contra ele. A maior parte do sofrimento dos iraquianos na última década e além disso foi infligido pela Casa Branca e pela Downing Street Número Dez.

Assim, em que é que acredito?

Bem, antes de mais nada, acredito que a soberania baseia-se no povo e que a Revolução Inglesa de 1688 ainda não está acabada.

Segundo, que o Estado deveria ser o servidor do povo, transparente e controlável.

Terceiro, que a Defesa do Reino deveria significar Defesa do Povo destas ilhas e não defesa do Estado ou promoção de interesses especiais penhorados a interesses estrangeiros.

Uma defesa forte não deveria ser desperdiçada com aventuras estrangeiras. Nenhum filho da Britânia deveria morrer em praias estrangeiras a menos que a ameaça seja directa e material a estas ilhas ou, como um voluntário, caso tenha sido designado para uma acção humanitária sob lei internacional.

ATITUDE ARROGANTE

Estas três crenças, por si sós, colocaram-me em rota de colisão com um Estado onde o poder monárquico, encoberto em democracia parlamentar, foi simplesmente transferido para um primeiro-ministro cuja visão monomaníaca da intervenção global, cuja atitude arrogante para com a lei internacional e cuja aptidão para sacrificar os filhos dos outros pais é executada inquestionavelmente por um Estado leal sem bússola moral.

A política hoje pode ser reduzida a esta questão da moralidade e da legitimidade do Estado.

Estas crenças, agora partilhadas por muitos outros, cristalizaram-se num grande movimento da paz a partir das bases que cobriu todas as nuances de opinião em questões sociais e económicas dentro de uma grande coligação de discordantes.

Foi um movimento de cólera para com o orgulho e a arrogância do Estado e da elite por trás do mesmo, uma cólera que cresceu com o desprezo mostrado pelo governo para com as suas visões, com o tratamento dado ao Dr. Davi Kelly e com o humilhante desprezo para com os factos acerca das armas de destruição maciça (WMD).

Este movimento exprime o que há de melhor na Grã-Bretanha — é tolerante para com a diferença, é cooperante, é empreendedor, é internacionalista.

A assim chamada guerra ao terrorismo é indicativa da estratégia da elite de criar tensão entre comunidades, mas não de uma forma óbvia. É mérito do governo que não tenha usado e quase certamente não venha a usar a espécie de populismo anti-muçulmano barato que é comum na Europa.

TERRORISMO DE ESTADO

Ao invés disso, este governo procura impor leis autoritárias e profundamente suspeitas para controlar a dissensão, a liberdade de movimentos e o direito à livre expressão — a guerra é contra o pensamento político da comunidade, seja ela muçulmana, socialista, libertária, patriótica, radical ou liberal.

Este controles à liberdade que têm sido postos em prática num momento de fartura económica podem ser utilizados com efeitos perturbadores num momento de escassez económica.

Mas sejamos claros acerca disto: Condeno o terrorismo como instrumento político

Mas com a advertência de que, para mim, terrorismo é a utilização de força, violência e subversão contra civis e activistas políticos por quem quer que seja que esteja a empunhar o armamento. O terrorismo de Estado, incluindo a guerra ilegal, põe o terrorismo de criminosos organizados ideologicamente como a Al-Qaeda dentro do contexto: dois lados da mesma moeda perversa.

Não condenarei a guerra justa de populações de territórios ocupados quando elas resistem, da forma que podem, a invasores não convidados do seu solo soberano — os direitos morais do Siux, os heróis de Varsóvia e os partisans russos estavam e estão incólumes nesse aspecto. É um direito a que não tivemos de recorrer sobre o nosso próprio solo durante um considerável período de tempo.

LÍDER GUERREIRO ARROGANTE

Argumentos acerca de levar o progresso a selvagens ignorantes não branqueavam no século XIX e não branqueiam hoje.

Sou motivado por duas outras importantes crenças nem sempre enfatizadas porque aqueles que, neste movimento anti-guerra e anti-ocupação, se juntaram a mim contra o arrogante Líder Guerreiro não precisavam partilhar minha ideologia de esquerda. Contudo, estas duas crenças guiarão para sempre a minha acção política:

  • que o povo trabalhador cria a sua própria sociedade por meio da acção colectiva a partir de baixo; e

  • que a exploração do trabalho sempre existirá e é necessária a acção da comunidade para corrigi-la através da redistribuição activa da riqueza e do poder.

    Isto estava nas raízes do meu lançamento no terreno com o Partido Trabalhista há mais de 30 anos atrás e do meu sofrimento quando este se afastou daqueles ideais. Combati uma batalha perdida para permanecer como um democrata socialista no interior do Labour e fica registado que este expulsou-me e que eu não o abandonei.

    Mas não vou agora perambular do lado de fora da porta do Labour à espera que me deixem entrar. A História não esperará. Os tempos mudaram. Bevan e Foot foram expulsos em sérios debates sobre políticas em que puderam combater reiteradamente em diversas ocasiões.

    REVOLUCIONÁRIOS SANGUINÁRIOS

    Fui expulso em resultado de uma manobra de uma facção que capturou o Partido num golpe e a seguir fixou as regras de modo a que debates políticos sérios se tornassem impossíveis a menos que a permissão pessoal viesse do Covil do Lobo. Agora vejo que o tradicional socialismo britânico não está morto mas sim em perigo, está a ser envenenado pelo sigilo.

    O meu socialismo é o mesmo socialismo que herdou os triunfos democráticos radicais do século XIX e, trabalhando lado a lado com os grandes políticos Liberais da viragem do século passado, criado o Estado Previdência e uma infraestrutura económica nacional que se pretendia estar ao serviço do povo.

    O meu socialismo não é aquele de "revolucionários sanguinários" ou de importações ideológicas estrangeiras. Ele está enraizado nesta terra e nas suas tradições de liberdade, dissensão, cooperativismo e acção sindical e está aberto a todos os britânicos nascidos livros, a todas as fés, a todos os homens e mulheres em iguais condições.

    A política trata de escolas, hospitais, estradas e empregos, bem como de grandes teorias sobre democracia, direitos, negócios estrangeiros e livre comércio.

    Neste impulso para este último num cenário global, o New Labour perdeu a sua compostura acerca da reserva de serviço nacional e tornou uma vigorosa tradição de democracia nacional numa rosa pálida versão global substitutiva para consumo de elites estrangeiras. Em suma, estamos em perigo de perder nossas liberdades e direitos para ajudar elites estrangeiras a unirem-se a um clube internacional cada vez mais exclusivo.

    Isto não está bem.

    GUERRA SEM SANGUE

    A politização nacional do movimento anti-guerra é agora a cena seguinte necessária na nossa própria guerra sem sangue pela libertação nacional. A realidade do movimento significa que o que criámos deve operar a dois níveis.

    O primeiro nível exige passos em direcção a uma movimento unificador de massas com raízes fundas entre os radicais a fim de amarrar o Estado, submetê-lo ao controle popular e completar uma inacabada revolução democrática radical. Este nível unirá muçulmanos, cristãos e judeus, socialistas, liberais e conservadores, homens, mulheres e deficientes de todos os tipos num movimento de libertação democrática.

    Este é o movimento lançado no Quake's Friends House, na Euston Road de Londres, em 29 de Outubro de 2003, e que combaterá o New Labour nas próximas eleições europeias e nas eleições para Greater London Assembly em Junho próximo.

    O segundo nível é aquele em que a batalha pelas ideias e pelas almas terá lugar dentro de uma Grã-Bretanha do Povo.

    Nesta batalha permanecerei o que sempre fui — um socialista democrático radical na tradição do Labour — mas até que o poder seja descentralizado e devolvido ao povo, trabalharei com qualquer um que partilhe aquela primeira camada de valores porque precisamos nada menos do que uma revolução na nossa vida política nacional.

    29 de Outubro de 2003


    [*] George Galloway é membro do Parlamento britânico.

    O original encontra-se em
    http://english.aljazeera.net/NR/exeres/F70955DA-D1AA-41DF-AC4D-40001BCE0403.htm . Tradução de JF.

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
  • 31/Out/03