Discurso de Francis Drake
Sou Francis Drake. Nasci robusto e prometedor no ano de 1540, em Devon. Faleci
de gloriosa disenteria em 1596, no Panamá. Fui vice-almirante de Isabel
I, que me concedeu Carta de Corso e me alçou à Dignidade de
Cavaleiro. Sou
Sir
Francis Drake. Assaltei, saqueei, incendiei, matei e violei, com gula
predatória e talante diplomático, desde a Europa às
Américas, da África à Ásia. Não poupei
Portugal,
o mais velho aliado:
investi da Metrópole às Colónias. Por esse mundo de
realezas e tribos, aterrorizei cidades, vilas e aldeias. Vasculhei e pilhei
barcos e portos, palácios e templos, celeiros e
plantações. Dediquei-me ao nobilitante tráfico de
escravos. Enchi a Coroa de tesouros e ornei a cabeça de louros. Sou um
dos nomes fundadores e inspiradores do Império Britânico, um
referente da Nova Globalização: o corso de porta-avião e
assalto humanitário. Vim, hoje, ao Palácio de Westminster, ao
Parlamento, para enaltecer a epopeia dos mares e esclarecer a crise que grassa
em terra. É idêntico o desígnio que nos move. Mudou a
estilística. Antes exibia-se a Carta de Corso. Agora brande-se a Carta
dos Direitos Humanos sempre que se aborda um petroleiro ou um fundo soberano.
Há que atender, contudo, à presente circunstância: somos
uma colónia de uma antiga colónia. Também mudou a rainha.
Reina outra Isabel, a II.
God Save the Queen.
Sou Francis Drake. Não pedi a palavra ao
speaker,
ao presidente, a John Bercow. Até onde sabemos, eu, a rainha e o povo
britânico, a Excelentíssima e Gentil Esposa do Presidente, Sally
Bercow, também não pediu autorização para irromper
nua (velada por um lençol) à janela do apartamento (pago pelos
cidadãos), defronte do Palácio de Westminster, deixando-se
entrever a um tablóide londrino e à comunidade internacional.
[1]
Também anunciou a firme disposição de participar no
Celebrity Big Brother.
Não será Francis Drake, uma legenda eterna da
Grã-Bretanha, a submeter-se ao regimento da Câmara dos Comuns.
Senhores Políticos, Senhores Polícias, Senhores Juízes,
Senhores Jornalistas, súbditos de Isabel,
Ocorreram, em diversas cidades reais, actos que os negociantes da
comunicação e as autoridades governamentais e policiais
prontamente qualificaram como
tumultos, distúrbios, delitos, actos criminosos, vandalismo,
gangsterismo.
Ora, o que se passou constitui, para além do óbvio, uma
bênção dos céus. Poucas sociedades se poderão
orgulhar de ter uma juventude tão brava e com tanta iniciativa,
crianças tão audazes e auto-determinadas. Não
desperdicemos esta geração combatente. A estranheza e o
sobressalto apenas se explicam por desconhecimento da nossa conduta secular e
pelo facto de estarmos habituados a manter a paz em casa e a guerra no
estrangeiro. De supetão, legiões de ingleses saltaram para as
ruas e, durante alguns dias, paralisaram o braço da Lei porque se
sentiram iraquianos, afegãos, somalis, líbios. V. Excias.
não compreendem o que custa ser iraquiano em Londres, afegão em
Manchester, somali em Bristol, líbio em Salford. Eu, Francis Drake,
entendo todos os roubos, todos os incêndios, todos os desacatos dos
angry young men
/ das
angry young women.
[2]
Nada de relevante relativamente às pilhagens, destruições
e massacres que, dentro das melhores tradições e basilares
princípios, levamos a cabo pela esfera terráquea. Não
passam de danos colaterais face aos saques e aos escombros que provocamos no
Mapa das Matérias-Primas e nos Pontos de Mira Estratégicos. Neste
preciso instante. No momento da rebelião caseira. Mas como reagimos
entre paredes? Prendemos infantes de 11 anos. Condenamos a quatro anos meros
incitadores. Duplicamos as penas. Abarrotamos os cárceres de
incriminados e suspeitos. Proclamamos que os desordeiros jamais ocuparão
a Praça de Trasfalgar-Tahrir nem pisarão os corredores do Ceptro
e os redutos da Libra.
Excelências,
Eles, os filhos da Albion e da Commonwealth, limitam-se a seguir, com
espontaneidade, o profissionalismo de Tony Blair e David Cameron. Respondem com
a mesma linguagem mas com pobreza de meios. Com uma desculpa. Somente aspiram a
uma modesta parte do PIB planetário. Quem sabe: apenas
ambicionarão de forma injusta e arbitrária o que é seu, o
que é justo e lógico. Porventura um emprego. Talvez uma morada.
Por certo boa saúde fora das clínicas de sangue azul e boa
educação fora de Oxford e Cambridge. Dêem-lhes as armas de
Terra, Mar e Ar e sereis vós os julgados. Não se iludam os
estadistas do provisório e os cientistas do acessório: a
sublevação não se deve ao BlackBerry Messenger nem ao
Twitter. Já no séc. XI havia tumultos em Londres e se ergueu a
Torre que foi Casa Real e Centro de Execuções. Sou Francis Drake.
Ouçam-me. A ira dos amotinados não se contém com
canhões de água, bombas de gás, balas de borracha,
gradeamentos e bastões, estigmas de manchettes. Não chegam 16 mil
agentes da Scotland Yard em Londres nem tropas de prevenção em
Glasgow. A intifada inglesa revelou a fúria acumulada, o fracasso das
instituições, a perversão do modelo. Resolver-se-á
a crise económico-financeira, a crise social, educacional e familiar com
a reposição dos contentores de lixo, dos vidros das montras, o
reabastecimento das lojas, uma série de purgas de bairro, uma campanha
de
placards
com os rostos dos suspeitos? Sou Francis Drake. Conheço as águas.
A tormenta apaziguou. É assim no Atlântico, no Índico, no
Pacífico. É assim até à próxima.
Senhores Deputados, Senhoras Deputadas,
Por enquanto, podereis dormir sem sedativos e sem gorilas à cabeceira. A
ordem regressou aos televisores. Repousai nos privilégios de casta e de
castelo. Tranquilizai a
City
, o lugar da Terra onde se concentra mais dinheiro sujo, cofre-forte da guerra,
da especulação, da corrupção, da escravidão,
do tráfico.
God Save the Queen
. A NATO e as Monarquias do Golfo não armaram os rebeldes. Os
insurrectos não assaltaram a Bastilha do Tamisa, a Tower, onde esteve
clausurada Isabel, a I, antes de reinar 45 anos e me confiar missões de
mar alto e investidas de litoral. Espero que Isabel II, reinante há 58
anos, não passe pela descortesia de assistir das varandas de Buckingham
ao clamor das turbas, ao avanço dos operários-
chips
, dos estudantes-
chats
, dos polícias humilhados pelos governantes, dos loiros tornados negros,
da embaixadora dos Jogos Olímpicos denunciada pela mãe. É
que os brigadistas de Tottenham desconfiam de Cameron, embora este, em jovem,
se divertisse a escacar lojas e restaurantes ao lado de Boris Johnson, colega,
actual
mayor
.
Cameron só admite que se estilhacem vitrinas e se lese o património por graça, por praxe, como exuberância de pedigree.
Jamais por desespero, protesto, repúdio, rompimento dos limites
psico-emocionais, alarme de sobrevivência. Boris, esse que
respeitabilidade colherá no seio dos jovens irritados? Dirá aos
ingleses em polvorosa o que disse aos gregos em transe:
a melhor ajuda é deixá-los sozinhos.
[2]
Que esperança tendes para dar a tanta descrença?
Meritíssimos Juízes,
Os governantes entregam os
vândalos
ao vosso cuidado, exortando as instâncias de fim de linha a ditar
sentenças céleres, implacáveis, memoráveis, que
não se enredem em
jurisprudências.
Até concordaria se não fosse levado a algumas reservas, no
sentido de poupar o ido Império à desmoralização
geral ou ao perigoso culto da anti-violência. É
indispensável o mínimo de moral para impor o máximo de
imoralidade. Que vemos nos casos em que o Estado e os seus protegidos cometem
crimes de alta parada? A Justiça é lenta, vacilante, persuadida a
conter-se. Recordemos David Kelly, biólogo, ligado ao Ministério
da Defesa, perito em desarmamento da ONU. Pôs em causa o fabrico e o
armazenamento de armas de destruição em massa por parte do
Iraque. Foi ostracizado e vítima de
aparente suicídio
. Que tem feito a Justiça para apurar esta suposta
interrupção voluntária da existência? Norman Baker,
deputado sem temor, empreendeu uma investigação por conta
própria e concluiu:
Um suicídio pode ser encenado para esconder as pistas dos assassinos.
Todos os indícios me levam a crer que foi isso que aconteceu no caso do
Dr. Kelly.
[3]
E como actuou Tony Blair, uma das criaturas mais sinistras da última
década, no caso da super-corrupção, envolvendo a BAE
Systems, a maior empresa europeia de equipamentos militares e de
segurança e a família real saudita? O Serious Fraud Office/SFO
foi aconselhado a congelar a investigação em 2006 e a
Câmara dos Lordes, Corte Suprema da Justiça, desautorizou
vários tribunais que se pronunciaram pelo andamento do processo. Havia
biliões em jogo. Um ano depois, o rei saudita desembarcou em Londres com
a comitiva, acomodada em seis aviões e 84 limusinas, deslocou-se de
carruagem puxada a cavalos brancos, recebeu as honras da Guarda Real, brindou
com a rainha, saudado por Gordon Brown e David Cameron.
Meritíssimos,
A Corte Suprema foi célere a abortar a Justiça. Foi
implacável para com a Verdade. Foi memorável a rever a
História dos Gangues Aristocráticos.
Só mais um reparo à morosidade da Justiça no que toca aos
Grandes Burocratas e aos Grandes Magnatas: há semanas fomos notificados
de outro
aparente suicídio.
[4]
Desta vez, coube morrer misteriosamente a Sean Hoare, jornalista da News
Corporation, de Rubert Murdock, que havia denunciado a prática de
escutas ilegais e subornos policiais, que arrastaram o
News of the World
para o encerramento. David Cameron sempre manteve íntimas
relações com quadros deste universo. Cameron não instiga
os magistrados a redobrar diligências e a atropelar jurisprudências?
Senhores Jornalistas e Senhores Comentadores,
Reservo o final da oração aos
chiens de garde
do sistema. Sem dúvida que os bandos juvenis não foram
cavalheiros de coco nem cavaleiros de penacho. Excederam-se. Provocaram danos
no espaço cívico e na fazenda privada. São
reprováveis tais desmandos. Mas não serão
reprováveis os desmandos nacionais e internacionais de Blair, Cameron e
Murdock? Que força vos impede de chamar criminosos e vândalos a
estas e outras entidades? O que vos solta a língua e a
pen
para diabolizar os gangues periféricos? A Polícia abateu um
cidadão. As arruaças causaram quatro mortes. Breivik, o
terrorista norueguês, averbou 77 vítimas (69 mortais). Muitos de
vós tratam o carrasco neo-nazi com complacência e prudência:
assassino fotogénico, lobo solitário, autor confesso do ataque,
fanático, islamofóbico, perturbado mental.
Muitos de vós, demasiados, quase todos, tratam Kadhafi e Assad como
ditadores
e Mubarak como
ex-presidente
e
ex-faraó
e Abbdullah ibn Abdul Aziz Al Saud como
Sua Majestade
e
guardião de dois lugares sagrados.
[5]
A Ti, Isabel I, já não a bordo do Golden Hinal e do Elizabeth,
que capitaneei ao Teu Serviço, mas das bancadas verdes de Isabel II,
renovo o juramento de lealdade e frontalidade. Sei que não eras mulher
de um só homem, que, por amor da grandeza anglo-saxónica,
expuseste os frutos do Éden, não à janela como a esposa do
speaker,
mas no sigiloso e tumultuoso leito, conciliando as prazeres de uma estadia
com os deveres de Estado. No entanto, viveste em
aparente suicídio
da volúpia, fabricando uma imagem de rainha santa, blindada por tecidos
preciosos, ajaezada de rendas e cintilações. Os povos apreciam
devassos com resplendor. Não descuraste sequer a pedra sepulcral:
AQUI JAZ ISABEL, QUE VIVEU E MORREU VIRGEM.
Saberás, pela própria experiência, que a Tua auréola
de castidade serviu para atenuar a carga dos meus deboches e estupros e a
sobrecarga dos veneráveis cortesãos e dos bispos de
Cantuária. Nunca tive pejo em identificar-me Fui pirata a sério.
Reconheço, pelo menos, 70 filhos em locais com indicadores
estatísticos. Mas quantos marinheiros e missionários fabriquei e
abandonei em povoações exóticas, mercê de
cobrições furtivas? Deus os terá numerado com o ferrete da
compaixão. São milhares os meus descendentes. Alguns terão
organizado as manifestações de Agosto. Alguns terão
organizado a repressão. Quem sabe se David Cameron nasceu de uma rixa de
alcova com uma camareira da rainha? Tenho uma virtude: continuo pirata.
Desprezo quem me incensa ou branqueia. Há dias surpreendi um
site
de História a arrebatar-me o título de
Sir
do Corso e da Armada Invencível, emprestando-me uma aura de
cartógrafo curioso:
DEDICOU-SE À EXPLORAÇÃO GEOGRÁFICA.
Senhores Deputados, Senhoras
Deputadas,
Sois indignos de Francis Drake.
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1. Pose para o
Evening Standard
(05/02/2011). Sally Bercow argumentou com a
necessidade de pôr na agenda
o erotismo do poder. Celebrity Big Brother
/ programa
voyeur
/ TVFive.
2. Angry young men / angry young women
/jovens irritados. Grupo literário, que se evidenciou a partir de 1950,
com o denominador comum da indignação sociocultural/cólera
criativa e que incluiu, entre outros, Alan Sillitoe, Bill Hopkins, John Wain,
John Osborne, John Braine, Kingsley Amis, Shelagh Delaney, Doris Lessing.
3. Declaração de Boris Johnson,
The Daily Telegraph
(19/06/2011).
4. Norman Baker, deputado liberal-democrata,
Daily Mail
(20/09/2007).
5. Sean Hoare,
encontrado morto
na residência (18/07/2011).
6. Meca e Medina.
[*]
Escritor/Jornalista.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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