O fracasso do Euro
A verdade é que as promessas feitas a 2 de Maio de 1998, quando foi
aprovada a lista dos 11 países fundadores da Zona Euro, não
vieram a concretizar-se. Afirmava-se que o Euro traria taxas de crescimento
económico elevadas, na Estratégia de Lisboa apontava-se mesmo
para taxas de crescimento do produto de 3% ao ano, mas na verdade o crescimento
médio anual foi apenas de 1,1%, entre 2001 e 2010. Afirmava-se que o
Euro traria um forte crescimento do emprego, contribuindo para a
redução dos elevados níveis de desemprego verificados na
União Europeia (UE), mas o que se verificou foi um crescimento
anémico, em termos médios de 0,6% ao ano, com uma taxa de
desemprego média de 8,7% e que, em 2010, voltou novamente aos dois
dígitos, ultrapassando os 10%, ou seja, quase 16 milhões de
desempregados na Zona Euro.
Os desequilíbrios macroeconómicos agravaram-se, o que pode ser
constatado nas disparidades crescentes dos saldos das balanças
comerciais entre os países que compõem a Zona Euro (ver
Gráfico 1), com a existência de países "importadores
líquidos" e, por isso devedores, com um nível de
dívida crescente, como Portugal, e de países "exportadores
líquidos" e, por isso credores.
De acríticos muitos passaram a reconhecer as consequências da
política do Euro forte, sobretudo imposta pela Alemanha desde o
início, na perda da dita competitividade da UE, nomeadamente da sua
periferia e particularmente dos denominados "países da
coesão", como Portugal. Passaram a reconhecer as dificuldades de
uma união económica e monetária, com as
consequências decorrentes da aplicação de uma
política monetária comum, a países com profundas
disparidades nos níveis de desenvolvimento económico e social e,
por isso mesmo, com necessidades de políticas diferenciadas ao
nível monetário e cambial.
E havendo aqueles que apontam o risco de implosão do Euro, o terreno do
"falhanço" está pejado dos federalistas mais convictos
que, omitidos pela supremacia alemã, retornaram ao sonho da
unificação política da Europa uma moeda, um Estado,
um governo económico. E, como não podia deixar de ser, retornaram
aos "pais fundadores" e aos grandes líderes de outrora.
Retornam também as teorias do núcleo super-integrado, defendendo
mesmo a "expulsão" das economias mais débeis e
periféricas da Zona Euro.
Também existem aqueles que reconhecem a necessidade de os Estados
retomarem nas suas mãos os instrumentos de política
económica, monetária, orçamental e cambial, defendendo que
os países por sua própria iniciativa devem sair da Zona Euro,
numa saída negociada com compensação financeira.
Mas o que é certo é que sem reconhecer o Euro e a União
Económica e Monetária como instrumentos de classe não
podemos compreender o papel que o Euro teve nesta década e muito menos
responder à questão sobre se o Euro falhou. Em termos
económicos, todos sabiam à partida que a Zona Euro não era
uma Zona Monetária Óptima, nem uma inevitabilidade decorrente de
necessidades económicas objectivas, da evolução das
forças produtivas. O Euro foi e é uma decisão
política, uma opção do grande capital "europeu",
no contexto da integração capitalista no quadro do processo de
classe que constitui a UE.
O instrumento de classe
O Euro e a União Económica e Monetária têm que ser
enquadrados na resposta do capital à crise de rentabilidade que o
sistema capitalista mundial atravessa. O Euro foi parte da resposta do capital
"europeu", transpondo as orientações do denominado
"Consenso de Washington" que caracterizou a resposta do capitalismo
à crise nos últimos 20 anos.
Por detrás do objectivo único da política monetária
a dita estabilidade dos preços, encontra-se o objectivo, hoje
cada vez mais claramente assumido e repetido, de reduzir os custos
unitários do trabalho, ou seja, tornar a evolução dos
salários dependente da evolução da produtividade, o que
é o mesmo que dizer garantir a transferência dos ganhos de
produtividade do trabalho para o capital, contribuindo para a aumentar a taxa
de exploração e com ela garantir sustentação das
taxas de lucro.
O Euro criava assim o quadro propício para a
"moderação salarial", pois retirando aos países
a política monetária, cambial, mas também a
orçamental e a fiscal, por via das obrigações decorrentes
do Pacto de Estabilidade e dos seus programas os PECs, os únicos
factores de ajustamento a choques económicos recaem sobre os
salários e o emprego, ou melhor dizendo, pela
desvalorização dos salários e o aumento do desemprego.
Obviamente, o aumento do desemprego é a arma estratégica por
excelência do capital o exército de reserva, para
"disciplinar" o trabalho e "moderar" o crescimento dos
salários.
Mas com o Euro acentuou-se também a liberalização dos
movimentos de capitais e, consequentemente, o grau de mobilidade do capital
multinacional que opera no mercado interno europeu, reduzindo os custos de
internalização e internacionalização do capital. As
próprias deslocalizações, quer no interior na UE, quer
para países terceiros, juntam-se ao desemprego para "disciplinar o
trabalho". Ao mesmo tempo, a redução ocorrida das taxas de
juro não só contribuiu para reduzir os custos de refinanciamento
do capital e sustentar artificialmente as taxas de lucro, mas para estimular
crédito junto também da classe trabalhadora, permitindo acomodar
desvalorizações dos salários por conta do endividamento, o
que em si mesmo corresponde a um acentuar da exploração do
trabalho, agora também por via do pagamento de juros ao capital
financeiro.
Ao mesmo tempo, a mobilidade do capital põe também em
concorrência as forças de trabalho dos diferentes países.
Com a redução dos custos unitários de trabalho a ser o
móbil incentivador da concorrência inter-capitalista, quer ao
nível nacional, quer estrangeiro, pela obtenção de maiores
quotas de mercado, ou seja, pela apropriação e
centralização da riqueza produzida pela força de trabalho
"comandada" por outros capitalistas. Um "jogo de soma
nula", que como mostra o Gráfico 1 para a Zona Euro, tem ganhadores
e perdedores, decorrentes do desenvolvimento desigual do capitalismo.
Sendo de sublinhar, neste contexto, os ganhos evidentes do grande capital
alemão, sobretudo o financeiro, com o Euro. Com Alemanha a assumir
excedentes comerciais por conta dos défices e o endividamento de outros
países, como Portugal.
O excedente comercial intra-comunitário alemão aumentou 172,3%,
entre 2000 e 2007, e mesmo em 2009, apesar da recessão, o excedente
comercial ascendeu a 70,5 mil milhões de euros, representando quase 42%
do PIB português desse ano. Por seu lado, em simetria, países como
Portugal viram o seu défice comercial intra-comunitário
agravar-se no mesmo período 23%, a Grécia 34,2%, a Espanha 105,9%
e, até França, teve um agravamento do seu défice de
208,2%. Talvez também aqui se explique que, apesar das aparências,
o eixo franco-alemão que conduziu o processo de integração
capitalista europeia, seja já só alemão.
Estes números também são demonstrativos da
desindustrialização dos países ditos da
"Coesão" e do papel a que estes foram votados no interior da
UE. Por um lado, de consumidores, para escoamento da produção
excedentária quer bens transaccionáveis, quer bens de
produção, quando não mesmo armamento, do centro da UE. Por
outro lado, fornecedores de mão-de-obra barata para servir os interesses
de divisão da cadeia de valor do capital multinacional, numa enorme rede
de subcontratação. Por isso os fundos estruturais e de
coesão foram essenciais, servindo os interesses do capital alemão
e associados, da mesma forma que o
Plano Marshall
serviu o capital norte-americano.
Este foi claramente o caso Português, onde o modelo económico
assentou (e assenta) nos baixos salários e na
re-exportação, a par da progressiva
desindustrialização e liquidação do sector
primário substituída por uma terciarização
económica, assente em sectores de baixo valor acrescentado. Em 2010, a
produção industrial em Portugal encontrava-se ao nível de
1996. Entre 2001 e 2010, já sobre os auspícios do Euro, a
produção industrial nacional recuou 14,1%. Na Grécia, a
contracção foi maior, 20,4%. Na Espanha, foi de 14% e na
França a contracção foi de 6,4%. O que mais uma vez
indica, que o Euro fortaleceu o imperialismo alemão face a outros
imperialismos, nomeadamente o francês.
Fica muitas vezes por dizer que o dito ganho competitivo da Alemanha deveu-se
sobretudo à estagnação do crescimento dos salários
reais dos trabalhadores alemães durante a última década.
Aqui, o Euro não falhou, cumpriu o papel para o qual foi criado. O Euro
foi e é um instrumento fundamental, ao serviço da
exploração do trabalho e da restauração das
condições de rentabilidade do capital. O Gráfico 2
é disso elucidativo. Em termos médios anuais, na Alemanha, os
lucros líquidos cresceram 81 vezes mais que os salários reais. Em
Portugal cresceram 4 vezes mais e na Zona Euro 7 vezes mais. Paralelamente, os
custos unitários do trabalho reais, em termos médios anuais,
tiveram uma redução de 0,5% na Alemanha e 0,1%, quer em Portugal,
quer na Zona Euro. Isto tendo já em conta a recessão mundial de
2009, onde a Zona Euro teve um recuo no produto de 4,1%, afectando por isso a
produtividade do trabalho (produto por pessoa empregada).
Mas é talvez mais significativo ter em conta os valores acumulados da
década do Euro. Entre 2001 e 2010, os lucros do capital alemão
aumentaram 41,7%, enquanto os custos unitários do trabalho reais tiveram
uma redução 4,6%. O mesmo se passou na Zona Euro, onde os lucros
aumentaram 35,8%, enquanto os custos unitários do trabalho reais tiveram
uma redução de 1,1%. Também em Portugal, onde os lucros
cresceram na última década 25,6%, por conta de uma
redução dos custos unitários do trabalho reais de 1,3%.
Este é um instrumento que o grande capital "europeu"
não quer perder, mesmo face às rivalidades inter-imperialistas
existentes, inclusive nos países que compõem a Zona Euro.
Aliás, um instrumento para o qual as principais
organizações do capital "europeu", a
Business Europe
(confederação patronal europeia) e a ERT (mesa redonda dos
industriais europeus), deram um importante contributo na sua
criação e sustentação.
As zonas e a integração
Sendo central a questão do papel do Euro e do seu
enforcer,
o Banco Central Europeu, para a redução dos custos
unitários do trabalho, a verdade é que existiam em paralelo
outros objectivos com a criação do Euro. Logo à partida,
aliás como noutros saltos da chamada construção europeia,
o aprofundamento da integração em termos económicos
contribuía sempre para uma maior integração
política, num processo contínuo de aprofundamento vs. alargamento
da União, como forma de resolver os bloqueios e as crises do processo de
integração e "limar" as contradições em
torno do poder e a da repartição de ganhos e perdas. O Euro, uma
das pedras lançadas pelo Tratado de Maastricht, reforçava assim o
caminho da integração que veio a ser cumprido, no essencial pelo
Tratado de Lisboa.
Uma unificação monetária, a capacidade de emitir moeda que
é uma das componentes da soberania de um Estado, criava as
condições objectivas para reforçar as componentes da
constituição de um efectivo governo económico. Logo em
1997, é criado o Pacto de Estabilidade, impondo o processo de
condicionamento da política orçamental e fiscal dos países
participantes, em paralelo, mais tarde, com a Estratégia de Lisboa
(agora apelidada de Estratégia 2020), impunham-se novos
constrangimentos, com programas de execução e
orientações traçadas ao nível comunitário,
ao nível da liberalização de sectores estratégicos
na área das comunicações, energia, transportes e dos
serviços, das reformas ao nível do mercado de trabalho e nas
áreas sociais, assim como da
financeirização
da economia.
Até o agora aprovado e em curso "Semestre Europeu", que no
fundo coloca todas as áreas da política de um Estado, no crivo da
decisão comunitária. Tornando-se assim um constrangimento
absoluto a qualquer modelo de desenvolvimento endógeno que um Estado
preconize. Obviamente, não para todos, mas de acordo com a
dimensão e poder do Estado em causa, pois o que se aplica aos pequenos e
médios países, não se aplica aos grandes, como se
demonstrou com o incumprimento do Pacto de Estabilidade, por parte da Alemanha
e da França em 2005.
É claro, que em torno da União Política e de uma
União Económica e Monetária, havia também a
criação de uma zona de influência do Euro, que rivalizasse
com a do dólar, dando cobertura às necessidades comerciais do
capital "europeu", garantindo ao Euro um papel de reserva mundial. A
única questão é que ao contrário da zona de
influência do dólar (que continua a dominar os principais mercados
de matérias-primas), que tem no seu centro os Estados Unidos disposto a
funcionar como consumidor e devedor de último recurso, no caso do Euro
existe uma Alemanha que assume um papel inverso. Num contexto de um quase
inexistente orçamento comunitário que representa cerca de 1% do
produto da UE, vinte vezes inferior ao orçamento federal dos Estados
Unidos.
Surgem aqui as contradições inter-imperialistas. Está
disposta a Alemanha, o capital alemão, a assumir o seu papel na zona de
influência do Euro, obviamente implicando assumir perdas e partilhar
ganhos? E será isso suficiente? Pois a questão não
é tanto se o Euro aqui falhou, mas sim o facto do capital alemão
saber que o Euro mesmo assim vale mais do que o Marco como instrumento de
classe ao seu dispor. Sendo certo que sem intervenção para acudir
aos crescentes desequilíbrios macroeconómicos, o Euro corre
riscos de implodir ou de a Zona Euro ficar mais reduzida.
A questão é que mesmo tendo o Euro cumprido o seu papel, no caso
europeu, a verdade é que este não foi suficiente para responder
à crise sistémica em que o capitalismo continua mergulhado
uma crise de rentabilidade, uma crise de sobre-acumulação de
capital sob todas as formas, onde o sistema capitalista mundial vai
(sobre)vivendo de episódio de crise em episódio de crise.
Sustentado artificialmente em "montanhas" históricas de
dívida e de capital fictício, sem qualquer cobertura, sem uma
retoma efectiva do processo de valorização do capital. E claro,
afectando e moldando o próprio papel instrumental da
integração capitalista europeia.
O "Pacto para o Euro mais", decidido no Conselho Europeu de Primavera
a 24 e 25 de Março de 2011, mostra sem rodeios para que serviu e serve o
Euro reduzir os custos unitários de trabalho. A austeridade
imposta pelo Euro, por via de uma política monetária restritiva e
do(s) PEC(s), serve o propósito estratégico de restaurar as
condições de rentabilidade do capital, por via do incremento da
exploração do trabalho, num contexto de uma crise
sistémica.
O Euro foi e é uma "declaração de guerra" aos
trabalhadores dos países da Zona Euro e de toda a UE. Uma década
de desvalorização social e de desemprego crescente assim o
demonstra. Apesar das contradições, a integração
capitalista reforça-se criando mecanismos de constrangimento absoluto,
elevando o patamar da ofensiva de classe em curso.
A emancipação dos trabalhadores portugueses, e dos outros
trabalhadores dos países que constituem a UE, passa pela tomada de
consciência de que não existem saídas no actual quadro que
não passem por uma ruptura com as políticas vigentes, pela
necessidade de derrotar o instrumento de classe que é a UE, de fazer
retornar aos Estados os instrumentos de política económica,
monetária, orçamental e cambial e pôr no domínio
público os sectores estratégicos que permitam alavancarem o
desenvolvimento económico dos países, ao serviço dos
trabalhadores e dos povos. Ter consciência que só a luta de massas
e a elevação do grau de organização da luta
poderão derrotar a ofensiva em curso. Tendo presente que os tempos das
inevitabilidades e das irreversibilidades acabaram e que os tempos são
de oportunidade, tendo em conta as contradições
inter-capitalistas. Hoje, como ontem, o que é necessário é
que os trabalhadores e os povos tomem nas suas mãos a
afirmação do seu destino, liberto da exploração. O
combate ao Euro, às orientações que lhe dão suporte
e às políticas que viabiliza, é parte indissociável
desta luta mais geral.
[*]
Economista.
O original encontra-se na revista
Portugal e a UE,
nº 61, Agosto 2011.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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