Os milhões de Bruxelas não são para as pessoas
"Histórico"! O adjectivo ainda hoje ecoa para saudar o acordo
entre os membros da UE e que supostamente faz chover sobre as nossas
cabeças os milhões que irão aliviar-nos dos males
económicos da COVID-19. Este é o conto de fadas. A realidade, por
isso, nada tem a ver com ele. Chegam milhões a "fundo perdido"
e por empréstimo que vão custar caro aos contribuintes,
não poderão ser aplicados onde verdadeiramente fazem falta aos
cidadãos na saúde e outras vertentes sociais e que
ainda aliviam os países ricos, ditos "frugais", de boa parte
dos encargos com o orçamento europeu. Este é o preço da
"unidade": austeridade, financiamento de empresas privadas em
sectores que não estão directamente ligados ao emprego e outros
interesses sociais, novas amarras financeiras sem dividendos económicos
onde são mais necessários, encargos aumentados com o
orçamento da União. Por isso os mercados financeiros não
cabem em si de contentes; ao passo que as pessoas terão mais do mesmo
porque a "recuperação" não é para elas.
A crise do coronavírus foi um teste de solidariedade onde a União
Europeia fracassou.
Quando se iniciou a pandemia, na Primavera passada, a regra entre os Estados
europeus foi a de cada um por si. Tornou-se mais claro do que nunca que
não existe "um povo europeu", mas apenas um labirinto de
regras e regulamentos económicos impostos aos povos, estando estes
separados em cada um dos 27 Estados membros.
Foram precisamente as nações latinas como a Itália, a
Espanha e a França - que já sofrem de super endividamento devido,
em grande parte, a estarem presas a um sistema monetário, o do euro,
totalmente fora do seu controlo - as particularmente atingidas pela COVID-19.
As consequências económicas, com toda a probabilidade,
serão devastadoras.
Dirigentes comprometidos com aquilo a que resolveu chamar-se "a
construção europeia", como o presidente francês
Emmanuel Macron, ficaram cada vez mais alarmados com a situação
de saúde pública. O descontentamento em relação
à União Europeia cresceu a uma velocidade ainda maior,
principalmente em Itália mas também na própria
França.
Desde que foi eleito em 2017, com a promessa de obter a
colaboração da Alemanha para uma União Europeia mais
generosa financeiramente, Emmanuel Macron não chegou a lado nenhum. A
insistência alemã na austeridade financeira manteve-se
rígida apesar de a chanceler Angela Merkel admitir que, para salvar a
UE, os pedidos de ajuda económica do Sul deve ser escutados. Finalmente
acabou por concordar com Macron no patrocínio de um "esforço
de recuperação" para apoiar países que sofrem perdas
económicas devido à pandemia.
A falsa vitória de Macron
As principais despesas, porém, exigem a aprovação
unânime dos 27 Estados membros da UE. Um projecto foi apresentado em
Julho ao Conselho Europeu, que reúne os chefes dos governos da
União Europeia.
O Conselho Europeu é presidido actualmente pelo político belga
Charles Michel, que era primeiro-ministro interino da Bélgica desde que
o seu governo entrara em colapso em Dezembro de 2018, devido à
questão da imigração. Só a sua sucessora, Sophie
Wilmès, conseguiu formar um governo efectivo em Março passado.
Aliás valeria a pena reflectir sobre o facto de as
instituições da UE, dominadas pelo conceito de federalismo que
nunca foi posto à consideração dos povos dos Estados
membros, estarem precisamente instaladas na Bélgica, onde os
nacionalistas flamengos parecem mover-se inexoravelmente em
direcção à independência em relação
à Valónia francófona.
O contraste entre as correntes germânicas e latinas na Europa tem
raízes profundas. Assim como os flamengos se recusam a partilhar as
despesas sociais com os valões "gastadores", quatro
nações ricas autodesignadas "frugais" Holanda,
Áustria, Dinamarca e Suécia rejeitam, de facto, as
propostas de mutualizar dívidas com as nações
mediterrânicas.
Após quatro dias e quatro noites de disputas ferozes, ameaças e
concessões, em 21 de Julho Charles Michel e a presidente da
Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciaram um acordo que
qualificaram como "histórico". Pela primeira vez a
Comissão foi mandatada para contrair dívida junto de bancos
comerciais, a imagem do estilo capitalista da União. Os campeões
do federalismo europeu, que tinham ficado ainda mais alarmados com a
profundidade das divisões internas deixadas à vista do mundo,
saudaram o acordo como um passo significativo rumo à sua meta dos
Estados Unidos da Europa.
Aparentemente assim terá sido. Mas será que o processo acordado
proporcionará a recuperação europeia?
Aspectos em questão
O "acordo histórico" de 21 de Julho inclui um orçamento
regular da União Europeu a sete anos, no valor de um bilião (um
milhão de milhões) de euros, financiado como habitualmente pelas
contribuições dos Estados membros; e um pacote de
"recuperação", dito "de emergência" a
mais curto prazo e no valor de 750 mil milhões de euros, financiado pela
Comissão. Esta soma é dividida entre 390 mil milhões de
euros em parcelas a fundo perdido e 360 mil milhões de euros em
empréstimos a países que demonstraram ter sofrido declínio
económico devido à crise de saúde pública. A
Itália destinam-se 172 mil milhões e a Espanha 140 mil
milhões.
Aspecto #1.
Sendo Macron um dos principais campeões deste acordo poderá
reivindicá-lo como uma grande vitória política. Os
empréstimos no total de 750 mil milhões de euros terão de
ser reembolsados até 2058 e, de acordo com cálculos complexos, a
parcela de França na amortização será de 82 mil
milhões de euros, contra benefícios de 39 mil milhões de
euros um valor que não é assim tão superior aos 29
mil milhões destinados à Alemanha, país que não
sofreu tanto com a COVID-19. A vitória política de Macron chegou,
portanto, com um preço muito elevado para os contribuintes do seu
país.
Se replicarmos a situação portuguesa em relação
à francesa isso significa que os 13 mil milhões a receber por
Portugal poderão implicar reembolsos da ordem dos 27 mil milhões,
mais do dobro.
Aspecto #2.
Esta suposta generosidade para com os países necessitados foi
acompanhada de enormes favores financeiros aos países ricos, ditos
"frugais". As suas alegadas perdas por terem de contribuir para o
reembolso do empréstimo contraído pela Comissão
serão compensadas por consideráveis reduções nos
montantes com que a Áustria, Holanda, Suécia, Dinamarca e
Alemanha serão obrigados a contribuir para o orçamento da UE a
sete anos, o que se reflectirá automaticamente no aumento das
contribuições dos países "ajudados" e que mais
sofreram com a COVID-19 a somar às amortizações dos
empréstimos.
Aspecto #3.
Os subsídios e empréstimos a ser distribuídos chegam
amarrados a fortes sequelas decorrentes das condições impostas.
Oficialmente, o esforço de recuperação "deve ter como
alvo as regiões e os sectores mais atingidos pela crise". Na
prática, no topo da lista estariam as indústrias do turismo em
Itália, Espanha e outros países. Mas não é assim
que as coisas funcionam. Os países beneficiários não
poderão optar por usar o dinheiro da maneira que considerarem mais
adequada às suas necessidades. Pelo contrário, os planos
têm de ser apresentados à Comissão e devem obedecer aos
critérios impostos. Em particular, a "contribuição
efectiva para a transição verde e digital" terá de
ser "um pré-requisito para uma avaliação
positiva".
Moinhos e autómatos
O que isto significa, na verdade, é que o pacote de
"recuperação" de 750 mil milhões não
terá qualquer utilidade para responder às deficiências nas
estruturas de saúde pública reveladas pela pandemia. Muito pelo
contrário: as condições impostas implicam obedecer
às exigências da União Europeia pela austeridade
orçamental em detrimento das vertentes sociais.
Em vez disso, o financiamento será direccionado para projectos que a
burocracia de Bruxelas considere necessários para aumentar a
competitividade internacional das empresas da UE nos sectores encarados como
estratégicos no crescimento capitalista do futuro: energias
renováveis e inteligência artificial.
Isto significa mais subsídios para as empresas privadas que investiguem
e invistam nesses sectores. Significa, sem dúvida, a
multiplicação de moinhos de vento cada vez mais desprezados, cuja
construção esvazia praias de areia para construir monstruosos
pilares de cimento que ninguém saberá como descartar depois de se
tornarem obsoletos (o que não levará muito tempo).
A inteligência artificial não fará nada pelas pessoas que
perderam o emprego em Itália, Espanha ou Portugal. Pelo
contrário, um dos efeitos mais notáveis da inteligência
artificial é o da destruição de empregos, principalmente
substituindo seres humanos racionais por autómatos estúpidos que
serão capazes de responder a todas as perguntas menos aquela que a
pessoa precisa de fazer.
É inegável que existe uma necessidade de uma
transição energética a longo prazo. Mas essa não
será a resposta à emergência imediata que os eurocratas
afirmam estar a combater. Quanto à inteligência artificial,
ninguém perguntou às pessoas se é isso que elas pretendem:
e pode apostar-se, sem receio de errar, que se trata de um assunto que
estará no final de uma hipotética lista de desejos.
O pacote de "recuperação" da União Europeia
ilustra mais uma vez que esta não passa de um aparelho
burocrático ao serviço do capital, principalmente do capital
financeiro. As decisões são tomadas à revelia dos povos,
em detrimento dos serviços públicos e de maneira a promover os
projectos exigidos pelos poderosos lobbies financeiros. Não é de
admirar que os mercados financeiros europeus tenham gostado do acordo.
Mas isso não faz absolutamente nada para libertar a Itália,
Espanha, França, Portugal e outros da armadilha da dívida do
euro. Por causa do euro, os países em dificuldades não podem
recorrer aos seus próprios bancos centrais para financiar a
recuperação. Estão na condição de só
poderem aceitar caridade envolvida em amarras.
Em Itália, vários políticos estão a pensar em
lançar um movimento para deixar a União Europeia. O sentimento
favorável à restauração da soberania nacional
está a crescer em França. Mas os países europeus ainda
não conseguiram reunir energias para dar passos mais ousados e
susceptíveis de garantir a sua sobrevivência. A finança e a
burocracia governam enquanto a política continua adormecida.
31/Julho/2020
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, de Miguel Urbano Rodrigues
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Quem salva a Líbia dos seus salvadores ocidentais?
[*]
Jornalista. Autora, entre outros, de
Fools' Crusade : Yugoslavia, Nato, and Western Delusions
,
Humanitarian Imperialism : Using Human Rights to Sell War
,
Circle in the Darkness : Memoir of a World Watcher
(2020).
O original encontra-se em
Consortium News
e a tradução em
O lado oculto
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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