A lógica da retirada
Uma nota explicativa: Na primavera de 1967 o meu livro
Vietnam: The Logic of Withdrawal
foi publicado pela Beacon Press. Foi o primeiro livro sobre a guerra a apelar
à retirada imediata e sem condições.
Muitos liberais diziam então:
"Sim, deveríamos deixar o Vietnam, mas o
presidente Johnson não pode simplesmente fazer isso, seria
difícil explicar ao povo americano".
A minha resposta, no último capítulo do livro, foi redigir um
discurso para Lyndon Johnson, explicando ao povo americano porque
estava a ordenar a evacuação imediata das forças armadas
americanas do Vietnam.
Não, Johnson nunca pronunciou tal discurso e a guerra
prosseguiu. Mas sou atrevido e quiz fazer a minha segunda tentativa de
redigir um discurso. Desta vez, escrevi um discurso destinado a qualquer
candidato que venha a ser nomeado pelo Partido Democrata para concorrer à
Presidência.
A minha hipótese é de que a
nação está pronta para um desafio geral à
administração Bush, devido à sua política de guerra
e ao seu ataque ao bem-estar do povo americano. E só uma abordagem
frontal e corajosa à nação pode ganhar a
eleição e poupar-nos de mais quatro anos de uma
administração que é imprudente para com as vidas
e os valores americanos.
Caros concidadãos americanos:
Peço-lhe o seu voto para presidente porque acredito estarmos num ponto
da história do nosso país em que temos de tomar uma séria
decisão. Tal decisão afectará profundamente não
apenas nossas vidas como também as vidas dos nossos filhos e netos.
Neste momento da história da nossa nação estamos numa rota
muito perigosa. Podemos permanecer nesta rota, ou podemos virar para um
arrojado novo caminho a fim de cumprir a promessa da Declaração
de Independência, a qual garante a todos o mesmo direito à vida,
liberdade e procura da felicidade.
O perigo em que estamos nos dias de hoje é que a guerra uma
guerra sem qualquer fim previsível está não
só a ceifar as vidas dos nossos jovens como a exaurir a grande riqueza
da nossa nação. Esta riqueza poderia ser utilizada para criar
prosperidade para todos os americanos mas está agora a ser malbaratada
com intervenções militares no exterior que em nada nos tornam
mais seguros.
Deveríamos escutar cuidadosamente os homens que estão a servir
nesta guerra.
Tim Predmore é um veterano há cinco anos no exército.
Neste momento ele está a acabar o seu turno de dever no Iraque. Ele
escreve: "Todos nós enfrentámos a morte no Iraque sem
razão ou justificação. Quantos mais devem morrer?
Quantas lágrimas mais devem ser derramadas antes que os americanos
despertem e exijam o retorno dos homens e mulheres cujo serviço é
proteger a eles e não ao interesse do seu líder?
O que é segurança nacional? Esta administração
define segurança nacional como o envio de homens e mulheres jovens a
todo o mundo para travar a guerra num país após o outro
nenhum deles suficientemente forte para ameaçar-nos. Eu defino
segurança nacional como assegurar que todo americano tenha cuidados de
saúde, emprego, habitação decente, um ambiente limpo.
Defino segurança nacional como cuidar do nosso povo que está a
perder empregos, cuidar dos nossos cidadãos idosos, cuidar das nossas
crianças.
O nosso actual orçamento militar é de US$ 400 mil milhões
por ano, o maior da nossa história, maior mesmo do que quando
estávamos em Guerra Fria com a União Soviética. E agora
iremos gastar uns US$ 87 mil milhões adicionais com a guerra no Iraque.
Ao mesmo tempo, dizem-nos que o governo cortou fundos para cuidados de
saúde, educação, ambiente e até almoços nas
escolas para as crianças. O mais chocante de tudo isto é o
corte, em milhares de milhões de dólares, nos benefícios
dos veteranos.
Se me tornar presidente vou imediatamente começar a utilizar a grande
riqueza da nossa nação para proporcionar tais coisas, que
representam a verdadeira segurança.
Assim que tomasse posse proporia ao Congresso, e utilizaria todo o meu poder
para assegurar que esta legislação passasse, que
instituíssemos um sistema de cuidados de saúde inteiramente novo,
um sistema construído sobre o êxito do nosso programa Medicare, e
que tem sido usado efectivamente em outros países do mundo.
Eu o denominaria Segurança da Saúde
(Health Security)
, pois garantiria a todos os homens, mulheres e crianças cuidados
médicos gratuitos, incluindo os remédios prescritos, pago pelo
Tesouro Geral, tal como os cuidados médicos gratuitos aos membros do
Congresso e aos membros dos nossos serviços armados. Isto pouparia
milhares de milhões de dólares hoje desperdiçados em
custos administrativos, lucros para companhias de seguros e firmas
farmacêuticas, salários enormes para directores-executivos de
planos médicos privados. Não haveria papelada para o paciente
nem preocupações sobre se alguma condição
médica, alguma emergência médica, seria ou não
coberta. Nenhuma preocupação de que a perda do seu emprego
significasse um término para o seu seguro médico.
Faria outra coisa no imediato após a tomada de posse. Pediria ao
Congresso uma Lei do Pleno Emprego
(Full Employment Act)
, garantindo postos de trabalho para qualquer um que queira trabalhar.
Daríamos ao sector privado toda a oportunidade para proporcionar
trabalho, mas quando ele não o fizesse o governo tornar-se-ia o
empregador de última instância. Utilizaríamos como modelo
os grandes programas sociais do New Deal, quando a milhões de pessoas
foram dados postos de trabalho depois de o sector privado ter fracassado nessa
tarefa.
Também tomaria medidas para reverter os ataques da
administração Bush ao nosso ambiente, administração
que está mais preocupada com os lucros das grandes
corporações do que com o ar, a terra e a água de que
nós dependemos. Em Dezembro de 2002 ela afrouxou os seus padrões
de poluição para antiquadas centrais eléctricas a
carvão no Meio Oeste, e tais emissões provocam centenas de mortes
prematuras por ano. Ela recusou-se a assinar o Acordo de Quioto sobre
aquecimento global, embora a mudança climática seja um enorme
perigo para as próximas gerações. Em Janeiro de 2003 a
Nuclear Regulatory Agency recusou-se a ordenar o encerramento de um reactor
nuclear, embora a sua cobertura houvesse enferrujado quase até o fim,
porque, segundo um relatório interno da comissão, a agência
não quis impor custos desnecessários ao proprietário e
estava relutante em dar um soco no olho da indústria
Esta administração nada fez para travar as emissões de
fábricas químicas por todo o país, e armazenou armas
químicas em áreas em que os residentes, em consequência,
acabaram por ficar doentes. Em Abril de 2003, Darline Stephens de Anniston,
Alabama, disse a um jornalista: "Vivi a cinco a dez milhas de armas
químicas. Estamos à procura de armas de destruição
em massa no Iraque, mas temo-las aqui na nossa cidade".
A presidência Bush sacrificou a causa do ar limpo e da água limpa
porque tem ligações à indústria automóvel,
à indústria do petróleo, à indústria
química e a outras grandes empresas comerciais. Eu insistiria em
regular tais indústrias a fim de salvar o ambiente para nós,
nossos filhos, nossos netos.
Há uma decisão que tem de ser tomada, e eu prometo
tomá-la. Não podemos ter Segurança da Saúde, ou
segurança do emprego, ou um ambiente decente, a menos que decidamos
deixarmos de ser uma nação que envia os seus militares a toda a
parte do mundo contra nações que não representam
ameaça para nós.
Já perdemos 400 vida no Iraque. Mais de 2000 dos nossos jovens foram
feridos, alguns deles tão seriamente que a palavra "ferido"
não se coaduna com a realidade.
Robert Acosta tem vinte anos de idade. Ele perdeu a sua mão direita e
parte do seu antebraço.
Edward Platt de vinte e um anos teve a perna amputada acima do joelho.
O apresentador Cher, visitando o Walter Reed Hospital, em Washington, a
participar num programa de televisão, disse: "Quando entrei no
hospital a primeira pessoa que encontrei foi um rapaz de 19 ou 20 anos que
havia perdido ambos os braços... E quando passei pelo hospital e
visitei todos aqueles rapazes durante todo o dia... todos haviam perdido um
braço... ou dois membros... Só pensei que se não havia
razão para esta guerra aquilo era a coisa mais odiosa que já
havia visto... E digo para todo o mundo que as notícias que recebemos
na América nada têm a ver com as notícias que se
obtêm fora deste país".
As famílias daqueles que morreram nesta guerra estão a colocar
perguntas a que esta administração não pode responder. Li
recentemente acerca da mãe do capitão Tristan Aitken, que tinha
trinta e um anos, e morreu em combate no Iraque. Ela declarou acerca do seu
filho: "Ele estava a fazer o seu trabalho. Ele não tinha escolha,
e estou orgulhosa do que ele foi. Mas deixa-me louca que toda esta guerra
tenha sido vendida ao público americano e aos soldados como algo que ela
não era. Nossas forças foram convencidas de que os iraquianos
eram responsáveis pelo 11 de Setembro, e isto não é
verdade".
Esta mãe vê isto correctamente. Os americanos foram levados
à guerra, foi-lhes dito inúmeras vezes pelos mais altos
responsáveis do governo, incluindo o presidente, que isto era
absolutamente necessário. Mas sabemos agora que foram enganados.
Disseram-nos que o Iraque tinha armas de destruição em massa que
constituíam um perigo para nós e para o mundo. Tais armas,
apesar dos enormes esforços tanto de equipes internacionais como de
corpos de investigação do nosso próprio governo,
não foram encontradas.
Virtualmente todas as nações do mundo, e a opinião
pública de todo o planeta, acreditava que não deveríamos
ir à guerra. Países muito mais próximos do Iraque do que
o nosso não se sentiam ameaçados. Então porque os Estados
Unidos com o seu enorme arsenal de armas nucleares e com os seus vasos
de guerra em todos os mares sentiram-se ameaçados?
O senso comum nos deveria ter dito que o Iraque, devastado por duas guerras
(primeiro com o Irão e a seguir com o nosso país) e depois
arruinado por dez anos de sanções económicas, não
podia constituir uma ameaça suficiente para justificar a guerra. Mas
este senso comum não existiu em Washington, nem na Casa Branca, que
exigiu a guerra, ou no Congresso, que se apressou a aprovar a guerra. Agora
sabemos que a decisão foi errada e que o presidente dos Estados Unidos e
as pessoas em torno dele não estavam a dizer-nos a verdade.
Por acreditar no presidente, fomos à guerra em violação da
Carta das Nações Unidas, em desafio à opinião
pública de todo o mundo, e assim num único movimento
colocámo-no fora da família das nações e
destruímos a boa vontade que tantas pessoas de toda a parte tinham no
nosso país.
Em 11 de Setembro de 2001 um ataque terrorista em Nova York e Washington
pôs fim a 3000 vidas. A administração Bush utilizou aquele
trágico acontecimento como uma desculpa para ir à guerra,
primeiro no Afeganistão e agora no Iraque. Mas nenhuma das duas guerras
tornou-nos mais seguros em relação ao terrorismo. A
administração Bush mentiu ao povo americano acerca da
conexão entre o Iraque e a Al Qaeda, quando nem mesmo a CIA foi capaz de
descobrir uma tal conexão.
Na verdade, pela sua matança de milhares de pessoas em ambos os
países, a administração Bush inflamou contra nós
milhões de pessoas no Médio Oriente e aumentou a fileiras dos
terroristas.
O povo iraquiano está feliz por livrar-se de Saddam Hussein, mas agora
quer livrar-se de nós. Ele não quer os nossos militares a
ocuparem o seu país. Se acreditarmos na autodeterminação,
na liberdade de os iraquianos escolherem o seu próprio modo de vida,
deveríamos atender aos seus pedidos, deixar o seu país, e
permitir-lhes que resolvam os seus próprios assuntos.
Portanto, como presidente, eu exigiria uma retirada ordenada das nossas tropas
do Iraque e do Afeganistão. Eu removeria nossas tropas de outras partes
do Médio Oriente. Só os interesses petrolíferos
são beneficiados com aquela presença militar.
Estou a propor uma mudança fundamental na política externa do
nosso país. Esta administração acredita que nós,
como a mais poderosa nação do mundo, deveríamos utilizar
tal poder para estabelecer bases militares por todo o mundo, para controlar o
petróleo do Médio Oriente, para determinar os destinos dos outros
países.
Acredito que deveríamos utilizar o nosso grande poder não para
propósitos militares e sim para levar alimentos e remédios
àquelas áreas do mundo que foram devastadas pela guerra, pela
doença, pela fome. Se tomarmos uma fracção do nosso
orçamento militar podíamos combater a malária, a
tuberculose e a SIDA. Podíamos proporcionar água potável
a milhares de milhões de pessoas do mundo que não a tem e isto
pouparia milhões de vidas. Isto seria um feito de que poderíamos
ficar orgulhosos. Mas quão orgulhosos podemos nós ficar com
vitórias militares sobre nações fracas, nas quais
derrubamos ditadores mas ao mesmo tempo bombardeamos e matamos os povos que
são vítimas desses ditadores? E os tiranos que derrubamos
são muitas vezes os mesmos que nós ajudámos a manter-se no
poder, como os Taliban no Afeganistão ou Saddam Hussein no Iraque.
Estamos num ponto de viragem na história da nossa nação.
Podemos continuar a ser uma grande potência militar, empenharmo-nos em
guerra após guerra, nas quais pessoas inocentes no exterior e os nossos
próprios homens e mulheres morrem ou ficam inválidos para toda a
vida. Ou podemos tornar-nos uma nação pacífica, sempre
pronta a defender-nos, mas sem enviar as nossas tropas e aviões a todo o
mundo em benefício dos interesses petrolíferos e das outras
grandes corporações que lucram com a guerra.
Podemos escolher usar a riqueza da nossa nação e os talentos do
nosso povo para a guerra ou usar tal riqueza e talento para melhorar as vidas
dos homens, mulheres e crianças neste país. Podemos continuar a
ser o alvo da cólera, do terrorismo e da indignação do
resto do mundo, ou podemos ser um modelo daquilo que uma boa sociedade deveria
assemelhar-se, pacífica no mundo, próspera internamente.
A escolha virá dentro da urna eleitoral. Peço-lhe para escolher
pela paz mundial e pela segurança do povo americano.
[*]
Historiador, autor de
A People's History of the United States: 1492-Present
e de numerosas outras obras.
O original encontra-se em
http://www.progressive.org/jan04/zinn0104.html
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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