A lógica da retirada

por Howard Zinn [*]

Zinn no primeiro comício pela paz após o 11 de Setembro, em Boston. Uma nota explicativa: Na primavera de 1967 o meu livro Vietnam: The Logic of Withdrawal foi publicado pela Beacon Press. Foi o primeiro livro sobre a guerra a apelar à retirada imediata e sem condições. Muitos liberais diziam então: "Sim, deveríamos deixar o Vietnam, mas o presidente Johnson não pode simplesmente fazer isso, seria difícil explicar ao povo americano". A minha resposta, no último capítulo do livro, foi redigir um discurso para Lyndon Johnson, explicando ao povo americano porque estava a ordenar a evacuação imediata das forças armadas americanas do Vietnam. Não, Johnson nunca pronunciou tal discurso e a guerra prosseguiu. Mas sou atrevido e quiz fazer a minha segunda tentativa de redigir um discurso. Desta vez, escrevi um discurso destinado a qualquer candidato que venha a ser nomeado pelo Partido Democrata para concorrer à Presidência. A minha hipótese é de que a nação está pronta para um desafio geral à administração Bush, devido à sua política de guerra e ao seu ataque ao bem-estar do povo americano. E só uma abordagem frontal e corajosa à nação pode ganhar a eleição e poupar-nos de mais quatro anos de uma administração que é imprudente para com as vidas e os valores americanos.

Caros concidadãos americanos:

Peço-lhe o seu voto para presidente porque acredito estarmos num ponto da história do nosso país em que temos de tomar uma séria decisão. Tal decisão afectará profundamente não apenas nossas vidas como também as vidas dos nossos filhos e netos.

Neste momento da história da nossa nação estamos numa rota muito perigosa. Podemos permanecer nesta rota, ou podemos virar para um arrojado novo caminho a fim de cumprir a promessa da Declaração de Independência, a qual garante a todos o mesmo direito à vida, liberdade e procura da felicidade.

O perigo em que estamos nos dias de hoje é que a guerra — uma guerra sem qualquer fim previsível — está não só a ceifar as vidas dos nossos jovens como a exaurir a grande riqueza da nossa nação. Esta riqueza poderia ser utilizada para criar prosperidade para todos os americanos mas está agora a ser malbaratada com intervenções militares no exterior que em nada nos tornam mais seguros.

Deveríamos escutar cuidadosamente os homens que estão a servir nesta guerra.

Tim Predmore é um veterano há cinco anos no exército. Neste momento ele está a acabar o seu turno de dever no Iraque. Ele escreve: "Todos nós enfrentámos a morte no Iraque sem razão ou justificação. Quantos mais devem morrer? Quantas lágrimas mais devem ser derramadas antes que os americanos despertem e exijam o retorno dos homens e mulheres cujo serviço é proteger a eles e não ao interesse do seu líder?

O que é segurança nacional? Esta administração define segurança nacional como o envio de homens e mulheres jovens a todo o mundo para travar a guerra num país após o outro — nenhum deles suficientemente forte para ameaçar-nos. Eu defino segurança nacional como assegurar que todo americano tenha cuidados de saúde, emprego, habitação decente, um ambiente limpo. Defino segurança nacional como cuidar do nosso povo que está a perder empregos, cuidar dos nossos cidadãos idosos, cuidar das nossas crianças.

O nosso actual orçamento militar é de US$ 400 mil milhões por ano, o maior da nossa história, maior mesmo do que quando estávamos em Guerra Fria com a União Soviética. E agora iremos gastar uns US$ 87 mil milhões adicionais com a guerra no Iraque. Ao mesmo tempo, dizem-nos que o governo cortou fundos para cuidados de saúde, educação, ambiente e até almoços nas escolas para as crianças. O mais chocante de tudo isto é o corte, em milhares de milhões de dólares, nos benefícios dos veteranos.

Se me tornar presidente vou imediatamente começar a utilizar a grande riqueza da nossa nação para proporcionar tais coisas, que representam a verdadeira segurança.

Assim que tomasse posse proporia ao Congresso, e utilizaria todo o meu poder para assegurar que esta legislação passasse, que instituíssemos um sistema de cuidados de saúde inteiramente novo, um sistema construído sobre o êxito do nosso programa Medicare, e que tem sido usado efectivamente em outros países do mundo.

Eu o denominaria Segurança da Saúde (Health Security) , pois garantiria a todos os homens, mulheres e crianças cuidados médicos gratuitos, incluindo os remédios prescritos, pago pelo Tesouro Geral, tal como os cuidados médicos gratuitos aos membros do Congresso e aos membros dos nossos serviços armados. Isto pouparia milhares de milhões de dólares hoje desperdiçados em custos administrativos, lucros para companhias de seguros e firmas farmacêuticas, salários enormes para directores-executivos de planos médicos privados. Não haveria papelada para o paciente nem preocupações sobre se alguma condição médica, alguma emergência médica, seria ou não coberta. Nenhuma preocupação de que a perda do seu emprego significasse um término para o seu seguro médico.

Faria outra coisa no imediato após a tomada de posse. Pediria ao Congresso uma Lei do Pleno Emprego (Full Employment Act) , garantindo postos de trabalho para qualquer um que queira trabalhar. Daríamos ao sector privado toda a oportunidade para proporcionar trabalho, mas quando ele não o fizesse o governo tornar-se-ia o empregador de última instância. Utilizaríamos como modelo os grandes programas sociais do New Deal, quando a milhões de pessoas foram dados postos de trabalho depois de o sector privado ter fracassado nessa tarefa.

Também tomaria medidas para reverter os ataques da administração Bush ao nosso ambiente, administração que está mais preocupada com os lucros das grandes corporações do que com o ar, a terra e a água de que nós dependemos. Em Dezembro de 2002 ela afrouxou os seus padrões de poluição para antiquadas centrais eléctricas a carvão no Meio Oeste, e tais emissões provocam centenas de mortes prematuras por ano. Ela recusou-se a assinar o Acordo de Quioto sobre aquecimento global, embora a mudança climática seja um enorme perigo para as próximas gerações. Em Janeiro de 2003 a Nuclear Regulatory Agency recusou-se a ordenar o encerramento de um reactor nuclear, embora a sua cobertura houvesse enferrujado quase até o fim, porque, segundo um relatório interno da comissão, a agência não quis impor custos desnecessários ao proprietário e estava relutante em dar um soco no olho da indústria

Esta administração nada fez para travar as emissões de fábricas químicas por todo o país, e armazenou armas químicas em áreas em que os residentes, em consequência, acabaram por ficar doentes. Em Abril de 2003, Darline Stephens de Anniston, Alabama, disse a um jornalista: "Vivi a cinco a dez milhas de armas químicas. Estamos à procura de armas de destruição em massa no Iraque, mas temo-las aqui na nossa cidade".

A presidência Bush sacrificou a causa do ar limpo e da água limpa porque tem ligações à indústria automóvel, à indústria do petróleo, à indústria química e a outras grandes empresas comerciais. Eu insistiria em regular tais indústrias a fim de salvar o ambiente para nós, nossos filhos, nossos netos.

Há uma decisão que tem de ser tomada, e eu prometo tomá-la. Não podemos ter Segurança da Saúde, ou segurança do emprego, ou um ambiente decente, a menos que decidamos deixarmos de ser uma nação que envia os seus militares a toda a parte do mundo contra nações que não representam ameaça para nós.

Já perdemos 400 vida no Iraque. Mais de 2000 dos nossos jovens foram feridos, alguns deles tão seriamente que a palavra "ferido" não se coaduna com a realidade.

Robert Acosta tem vinte anos de idade. Ele perdeu a sua mão direita e parte do seu antebraço.

Edward Platt de vinte e um anos teve a perna amputada acima do joelho.

O apresentador Cher, visitando o Walter Reed Hospital, em Washington, a participar num programa de televisão, disse: "Quando entrei no hospital a primeira pessoa que encontrei foi um rapaz de 19 ou 20 anos que havia perdido ambos os braços... E quando passei pelo hospital e visitei todos aqueles rapazes durante todo o dia... todos haviam perdido um braço... ou dois membros... Só pensei que se não havia razão para esta guerra aquilo era a coisa mais odiosa que já havia visto... E digo para todo o mundo que as notícias que recebemos na América nada têm a ver com as notícias que se obtêm fora deste país".

As famílias daqueles que morreram nesta guerra estão a colocar perguntas a que esta administração não pode responder. Li recentemente acerca da mãe do capitão Tristan Aitken, que tinha trinta e um anos, e morreu em combate no Iraque. Ela declarou acerca do seu filho: "Ele estava a fazer o seu trabalho. Ele não tinha escolha, e estou orgulhosa do que ele foi. Mas deixa-me louca que toda esta guerra tenha sido vendida ao público americano e aos soldados como algo que ela não era. Nossas forças foram convencidas de que os iraquianos eram responsáveis pelo 11 de Setembro, e isto não é verdade".

Esta mãe vê isto correctamente. Os americanos foram levados à guerra, foi-lhes dito inúmeras vezes pelos mais altos responsáveis do governo, incluindo o presidente, que isto era absolutamente necessário. Mas sabemos agora que foram enganados. Disseram-nos que o Iraque tinha armas de destruição em massa que constituíam um perigo para nós e para o mundo. Tais armas, apesar dos enormes esforços tanto de equipes internacionais como de corpos de investigação do nosso próprio governo, não foram encontradas.

Virtualmente todas as nações do mundo, e a opinião pública de todo o planeta, acreditava que não deveríamos ir à guerra. Países muito mais próximos do Iraque do que o nosso não se sentiam ameaçados. Então porque os Estados Unidos — com o seu enorme arsenal de armas nucleares e com os seus vasos de guerra em todos os mares — sentiram-se ameaçados?

O senso comum nos deveria ter dito que o Iraque, devastado por duas guerras (primeiro com o Irão e a seguir com o nosso país) e depois arruinado por dez anos de sanções económicas, não podia constituir uma ameaça suficiente para justificar a guerra. Mas este senso comum não existiu em Washington, nem na Casa Branca, que exigiu a guerra, ou no Congresso, que se apressou a aprovar a guerra. Agora sabemos que a decisão foi errada e que o presidente dos Estados Unidos e as pessoas em torno dele não estavam a dizer-nos a verdade.

Por acreditar no presidente, fomos à guerra em violação da Carta das Nações Unidas, em desafio à opinião pública de todo o mundo, e assim num único movimento colocámo-no fora da família das nações e destruímos a boa vontade que tantas pessoas de toda a parte tinham no nosso país.

Em 11 de Setembro de 2001 um ataque terrorista em Nova York e Washington pôs fim a 3000 vidas. A administração Bush utilizou aquele trágico acontecimento como uma desculpa para ir à guerra, primeiro no Afeganistão e agora no Iraque. Mas nenhuma das duas guerras tornou-nos mais seguros em relação ao terrorismo. A administração Bush mentiu ao povo americano acerca da conexão entre o Iraque e a Al Qaeda, quando nem mesmo a CIA foi capaz de descobrir uma tal conexão.

Na verdade, pela sua matança de milhares de pessoas em ambos os países, a administração Bush inflamou contra nós milhões de pessoas no Médio Oriente e aumentou a fileiras dos terroristas.

O povo iraquiano está feliz por livrar-se de Saddam Hussein, mas agora quer livrar-se de nós. Ele não quer os nossos militares a ocuparem o seu país. Se acreditarmos na autodeterminação, na liberdade de os iraquianos escolherem o seu próprio modo de vida, deveríamos atender aos seus pedidos, deixar o seu país, e permitir-lhes que resolvam os seus próprios assuntos.

Portanto, como presidente, eu exigiria uma retirada ordenada das nossas tropas do Iraque e do Afeganistão. Eu removeria nossas tropas de outras partes do Médio Oriente. Só os interesses petrolíferos são beneficiados com aquela presença militar.

Estou a propor uma mudança fundamental na política externa do nosso país. Esta administração acredita que nós, como a mais poderosa nação do mundo, deveríamos utilizar tal poder para estabelecer bases militares por todo o mundo, para controlar o petróleo do Médio Oriente, para determinar os destinos dos outros países.

Acredito que deveríamos utilizar o nosso grande poder não para propósitos militares e sim para levar alimentos e remédios àquelas áreas do mundo que foram devastadas pela guerra, pela doença, pela fome. Se tomarmos uma fracção do nosso orçamento militar podíamos combater a malária, a tuberculose e a SIDA. Podíamos proporcionar água potável a milhares de milhões de pessoas do mundo que não a tem e isto pouparia milhões de vidas. Isto seria um feito de que poderíamos ficar orgulhosos. Mas quão orgulhosos podemos nós ficar com vitórias militares sobre nações fracas, nas quais derrubamos ditadores mas ao mesmo tempo bombardeamos e matamos os povos que são vítimas desses ditadores? E os tiranos que derrubamos são muitas vezes os mesmos que nós ajudámos a manter-se no poder, como os Taliban no Afeganistão ou Saddam Hussein no Iraque.

Estamos num ponto de viragem na história da nossa nação. Podemos continuar a ser uma grande potência militar, empenharmo-nos em guerra após guerra, nas quais pessoas inocentes no exterior e os nossos próprios homens e mulheres morrem ou ficam inválidos para toda a vida. Ou podemos tornar-nos uma nação pacífica, sempre pronta a defender-nos, mas sem enviar as nossas tropas e aviões a todo o mundo em benefício dos interesses petrolíferos e das outras grandes corporações que lucram com a guerra.

Podemos escolher usar a riqueza da nossa nação e os talentos do nosso povo para a guerra ou usar tal riqueza e talento para melhorar as vidas dos homens, mulheres e crianças neste país. Podemos continuar a ser o alvo da cólera, do terrorismo e da indignação do resto do mundo, ou podemos ser um modelo daquilo que uma boa sociedade deveria assemelhar-se, pacífica no mundo, próspera internamente.

A escolha virá dentro da urna eleitoral. Peço-lhe para escolher pela paz mundial e pela segurança do povo americano.

[*] Historiador, autor de A People's History of the United States: 1492-Present e de numerosas outras obras.

O original encontra-se em http://www.progressive.org/jan04/zinn0104.html .


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

14/Dez/03