Irá a Europa sofrer da síndroma suíça?
Que impacto sobre as economias europeias e americana poderá ter a
diversificação em euros das reservas dos bancos centrais?
A diversificação das reservas dos bancos centrais, com
maiores proporções de euros é assunto do
noticiário actual. Deixando totalmente de lado a
ampliação do défice comercial e de pagamentos dos EUA, a
guerra do Iraque provocou um súbito retrocesso que levou alguns
políticos árabes e islâmicos a pressionarem os
países da OPEP no sentido de cotarem em euros tanto o preço como
a venda do seu petróleo e de mudarem as reservas dos seus bancos
centrais que actualmente têm uma forte componente em dólares.
Se isto se passasse na década de 1960, os bancos centrais de
todo o mundo estariam a converter suas entradas de dólares em ouro. Mas
desde que os Estados Unidos abandonaram o ouro em 1971, emergiu um mercado
construído para títulos do Tesouro dos EUA como a única
alternativa prática ao ouro.
A questão é saber se o mercado dos bancos centrais
para os títulos do Tesouro dos EUA é infinito. Se assim for,
então o défice de pagamentos dos EUA, e talvez até mesmo
um dilúvio de anti-americanismo por parte dos bancos centrais
estrangeiros, constitui um revestimento brilhante para a economia
norte-americana. Os Estados Unidos descobririam que o seu interesse repousa
numa política permanente de "negligência benigna" em
relação ao défice do seu orçamento federal e em
relação ao défice da sua balança de pagamentos.
Responsáveis norte-americanos têm reconhecido que se os
haveres da OPEP em dólares ou em títulos do Tesouro americano
forem trocados por títulos denominados em euros, estes títulos em
dólares simplesmente serão passados aos bancos centrais da
Europa. Os países exportadores de petróleo mudariam as suas
reservas internacionais para euros através da venda dos títulos
do Tesouro dos EUA e comprariam os títulos dos governos ou outros
títulos de países europeus. Isto obrigaria os bancos europeus a
escolher entre emprestar as suas entradas de dólar de volta para os EUA
através da compra de títulos do Tesouro americano (financiando o
défice federal dos EUA neste processo), ou verem as suas divisas serem
valorizadas contra o dólar, para grande desgosto dos seus produtores e
exportadores internos.
O facto de este problema persistir ao longo de mais de 30 anos,
desde que os Estados Unidos abandonaram o ouro, mostra quão exitosa foi
a diplomacia financeira americana ao transformar problemas aparentes num
êxito inesperado. Se o assunto continuar no seu rumo actual, a OPEP
resolveria o seu problema do dólar passando-o para a frente como na
proverbial batata quente. Uma entrada de dólares da OPEP ou de
países asiáticos provavelmente não reduziria os haveres
dos bancos centrais em títulos do Tesouro americano, pois simplesmente
mudaria estes haveres dos bancos centrais da OPEP e dos bancos centrais
islâmicos para os da Europa e provavelmente da Ásia.
Isto constitui a essência do "dilema do
dólar" de hoje. Explica porque os mercados de divisas de hoje
são mais voláteis do que em qualquer momento desde a
década de 1930. A montanha russa do euro contra o dólar elevou a
sua taxa de câmbio para US$1,20 e a seguir empurrou-a para baixo uns 10
por cento nos últimos poucos meses. Colocado isto no seu contexto
global, o problema enfrentado pelos mercados de divisas e pelos
banqueiros centrais é o seguinte. Se países
começarem realmente a diversificar as reservas dos seus bancos centrais,
o movimento em direcção ao euro agravará o dilema do
dólar da Europa, empurrando-a para a beira de um ponto de ruptura
política.
Ainda assim, as preocupações acerca de o euro
ameaçar o dólar foram excessivas, pelo menos quanto ao momento.
Uma mudança pela OPEP ou outras regiões para sair do dólar
e entrar nos euros tenderia a fazer subir o euro em relação ao
dólar. Quanto mais dólares fossem actualmente possuídos,
maior seria a perda proporcional de valor escriturado para os bancos centrais,
quando comparado a um índice comercial ponderado, ao ouro ou ao chamado
"cabaz de mercado"
("market basket")
.
Tudo o mais permanecendo igual, o efeito de uma mudança para
fora dos dólares e para dentro dos euros por parte da OPEP
forçaria uma subida da taxa de câmbio do euro contra o
dólar. Os exportadores europeus já se queixam de que isto
ameaça colocar o preço dos seus produtos fora dos mercados
mundiais. Para impedir que isto ocorra, países europeus que recebem
entradas
(inflows)
nos bancos centrais da Organização dos Países
Exportadores de Petróleo (OPEP) já estão a ficar sob
pressão para manterem baixa a taxa de câmbio do euro por meio da
utilização destas entradas de dólares na compra de ainda
mais títulos do Tesouro dos EUA.
Tal como está actualmente constituído, o sistema
financeiro internacional permite aos Estados Unidos uma cavalgada gratuita
exclusiva. Enquanto a guerra no Sudeste Asiático na década de
1960 forçava o país a alcançar poder militar em separado
do poder monetário, naquele tempo medido em ouro, hoje o constrangimento
das balanças de pagamentos foi removido, apesar de o aprofundamento dos
défices comercial e de balança de pagamentos dos EUA serem umas
cinquenta vezes mais elevados do que os US$ 10 milhões de défice
anual que provocaram as condições para a crise de 1971. Apesar
de uma conta comercial e de investimento do sector privado que (de forma
improvável) moveu-se fortemente para o défice, os gastos
militares americanos e outras saídas de divisas externas foram
manipuladas de uma tal maneira que aumenta ao invés de diminuir a
alavancagem financeira americana sobre o resto do mundo, sobretudo em
relação à Europa e ao Japão. Através do
ajuste do défice de pagamentos em títulos do Tesouro a partir de
1971, os Estados Unidos aumentaram para os bancos centrais estrangeiros os
custos de se retirarem do sistema.
Para a Europa, uma conversão anti-dólar por parte da
OPEP ou de outros países seria bastante diferente do que teria sido o
caso se tivesse ocorrido antes de Agosto de 1971. Sob o padrão
gold-exchange
o Tesouro dos EUA teria perdido ouro para os bancos centrais da Europa.
Utilizando o metal precioso como um termómetro do poder financeiro
internacional, a perda dos Estados Unidos teria sido o ganho da Europa, sem
forçar uma alta das taxas de câmbio europeias pois os excedentes
de dólares seriam gastos na importação de ouro. Hoje, 32
anos depois, o efeito de uma conversão de reservas internacionais de
dólares para euros é muito diferente. Isto forçaria uma
alta das taxas de câmbio europeias, impondo um custo económico que
a indústria europeia teria de absorver pois o preço em
dólar das suas exportações seria forçosamente
elevado a níveis não competitivos, mesmo que não se
verificassem erros nas próprias políticas internas europeias. Os
países cujas divisas estivessem ligadas ao dólar tenderiam a
beneficiar-se.
Indo mais directamente ao ponto, como a vontade americana de
efectuar gastos militares no Oriente Próximo, a elevação
dos défices comercial de pagamentos dos EUA e a perspectiva de
diversificação de reservas oficiais para aumentar a
proporção de euros e de outras divisas não-dólar
possuídas por bancos centrais estrangeiros afecta a geopolítica
global?
Toda a resposta depende de como a diplomacia financeira
internacional manipulará o assunto.
A SÍNDROMA SUÍÇA
Quem espera que o actual excesso de dólares dos EUA venha a
representar um ganho para a Europa deveria examinar a Suíça, cuja
divisa tem sido um veículo excelente para a fuga de capital. A
Síndroma Suíça pode ser definida como uma
condição em que uma entrada autónoma de capital
força uma alta da taxa de câmbio do país a um ponto tal que
ameaça a competitividade das suas exportações. No fim da
década de 1960 isto tornou-se a condição quase
crónica do franco suíço devido ao papel daquele
país como paraíso fiscal e porto de abrigo de capitais. A
apreciação do franco provocou problemas às companhias
farmacêuticas suíças e a outros exportadores, desviando o
foco da economia para longe da manufactura a fim de favorecer o sector
bancário. A Europa está ameaçada por um efeito semelhante
devido ao movimento de outros países em direcção ao euro.
Alguma melhoria seria verificada na conta capital na medida em que o
valor cadente do dólar relativamente ao euro melhorasse as
balanças de capitais dos países devedores da América
Latina e da Ásia. Suas dívidas são denominadas em
dólares, cujo valor relativo cairia. O efeito sobre as suas contas
comerciais dependeria da sua capacidade para receber mais pelas
exportações para a Europa, ligada à de pagar mais por suas
importações daquele continente, e ao peso relativo das
exportações e importações entre mercados e
fornecedores europeus e norte-americanos.
Mas os países credores experimentariam o fenómeno
inverso em termos de balança proporcionalmente à extensão
em que os seus processos financeiros estiverem dolarizados. A Europa, a China
e o Japão tem sido geralmente as principais regiões a acumularem
reservas e empréstimos em dólar. Eles principiam agora a
perguntar-se a si próprios que uso prático estes haveres em
dólares têm, e quanto de valor eles reterão quando a sua
magnitude exceder a capacidade ou a vontade americana de pagá-los numa
medida significativa. Esta linha de pensamento tem-nos levado a discutir modos
pelos quais a dívida mundial e o sistema de pagamentos poderá ser
mais simétrico e portanto mais razoável.
O problema é que actualmente nada de tal sistema está
agora no horizonte.
PASSOS RUMO A UMA CONTRA-ESTRATÉGIA
Os países do sudeste asiático possuem cerca de US$ 1
milhão de milhões
(US$ 1 trillion)
de reservas. Medidas em euros, houve um momento na primavera passada em que
eles perderam mais de US$ 100 mil milhões em valor de troca. Denominado
em yen, o banco central do Japão sofreu uma perda de capital nas suas
reservas igual à queda do dólar a qual teria sido muito
maior se não fossem as pesadas compras oficiais de títulos do
Tesouro. A Rússia também perdeu ao manter as suas reservas
tão amplamente em dólares, assim como os principais exportadores
de petróleo.
Os dólares que incham as reservas dos bancos centrais
europeus e asiáticos são um embaraço de riqueza. A
Austrália e a Nova Zelândia já começaram a
diversificar as suas reservas afastando-se dos dólares e substituindo-os
por euros. Eles estão a fazer isto de modo razoavelmente silencioso,
mas as maiores atenções concentram-se agora nos países
islâmicos, acima de tudo os membros da OPEP. E também na
Rússia, cujo grande parceiro comercial é a Europa.
Mas o aperto está principalmente na própria Europa,
pois o euro será o principal veículo em que serão
convertidos os haveres monetários em dólar. Aqui parece haver
pouca coisa que a Comunidade Europeia possa fazer em termos práticos.
Repetir a turbulência de câmbios externos da década de 1930
dificilmente será uma alternativa atraente, pois é difícil
ver como a Europa possa adoptar taxas de câmbio duais, uma para
comércio e outra para movimentos de capital, de um modo que não
desse oportunidades para arbitragem financeira.
Uma opção mais simples é fazer o que os Estados
Unidos fizeram em 1922 quando foram ameaçados pelas
importações de baixos preços da Alemanha quando a taxa de
câmbio do marco entrou em colapso sob o peso dos pagamentos das suas
reparações de guerra. Em 1909 o Congresso havia aprovado o
sistema de tarifas American Selling Price (ASP), substituindo as tarifas ad
valorem baseadas no preço da facturas por tarifas baseadas naquilo que a
mercadoria
(commodity)
importada custaria se produzida nos EUA. Na medida em que o marco
alemão se depreciava, a queda de preços de produtos
químicos e outras exportações alemãs era
contrariada por drásticos aumentos das tarifas americanas. Isto
negou à Alemanha e outros países a vantagem de preço
resultante tanto da depreciação como, mesmo, da sua
eficiência superior. Na verdade, na década de 1960 os EUA
aplicaram mesmo tarifas ASP contra o aço e os produtos químicos
europeus.
Pode a Europa adoptar a sua própria versão ou variante
desta política através do lançamento de uma tarifa
flutuante igual à depreciação do dólar? Pode ela
adoptar o passo ulterior de utilizar as suas entradas de dólares
excedentes para subsidiar suas exportações industriais em
mercados competindo com exportações americanas para anular o
benefício de preço da depreciação do dólar?
O objectivo seria impedir as mudanças de divisas de interferirem com a
competição comercial "normal" através da
anulação da desvantagem de preço sofrida pelos
exportadores europeus em resultado de mudanças de divisas não
relacionadas com o comércio.
Tais políticas seriam criticadas como uma reversão aos
movimentos do pós-guerra rumo ao livre comércio, mas o livre
comércio do pós-guerra foi baseado numa assumida
estabilização dos movimentos de capital e dos valores das
divisas. Esta suposição foi revertida nos últimos anos pois a
abundância de dólares conduziu a um pesado volume de moeda quente
que levou a taxas de câmbio em zig-zag.
Em suma, o défice de pagamentos americano e os movimentos dos
bancos centrais para longe do dólar, agravado pela actividade militar
americana no Iraque e em outros países, pode na verdade disparar uma
mudança dos haveres internacionais de divisas para os euros. O impacto
a longo prazo pode ser estimular a Europa a proteger os seus industriais do
declínio da competitividade provocado pela apreciação do
euro. Isto apenas poria em evidência um problema que tem estado latente
desde 1971, mas faria isso num contexto
político menos estável. No estrangeiro está a
desenvolver-se apoio popular para fazer com que os governos criem outra vez um
conjunto de regras capaz de impedir os exportadores americanos de se
beneficiarem de uma instabilidade da divisa provocada pelas próprias
políticas fiscal, financeira e militar dos Estados Unidos.
Agosto de 2003
[*]
Economista norte-americano especializado em balança de pagamentos. Autor de
"Super Imperialism: The Origin and Fundamentals of U.S. World Dominance"
. Contacto:
mhudson@aol.com
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O original encontra-se em
http://www.michael-hudson.com
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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