O alívio do homem branco
Calem-se raios e trovões, comoções e espantos. O
pó, as cinzas, a névoa, o fogo, fumo, areia, sangue e uma boa
parte dos resíduos passam agora aos bastidores. O palco, no entanto,
continua ocupado. A pergunta formulada quando se levantou o pano não
foi respondida. Por que fomos à guerra? Se não encontrarem
armas de destruição maciça, a pergunta irá
converter-se num grito.
Ou, se descobrirem algumas armas no Iraque, é provável que haja
ainda mais, transferidas para novos esconderijos para além da fronteira
iraquiana. Se ocorrerem horrendos acontecimentos, podemos contar com uma
reacção previsível: "Bons, honestos, inocentes
estadunidenses morreram hoje devido aos malvados terroristas do al-Qaeda".
Sim, escutaremos a voz do presidente até antes de pronunciar essas
palavras. (Aqueles de nós a quem George W. Bush não agrada
poderiam reconhecer que viver com ele no Salão Oval é como estar
casado com alguém que diz sempre exactamente aquilo que se sabe que ele
ou ela vão dizer, o que ajuda a compreender porque mais da metade dos
EUA actualmente parece adorá-lo.)
A pergunta chave continua a ser: por que fomos à guerra? Não
foi respondida. A multidão de respostas já produziu uma salada
cognitiva. Mas neste momento o ingrediente isolado mais doloroso é,
naturalmente, o descobrimento das fossas de cadáveres. Livrámos
o mundo de um monstro que assassinou quantidades incalculáveis,
mega-quantidades, de vítimas. Ninguém sublinha que muitos dos
cadáveres eram de xiitas do sul do Iraque que foram dizimados
repetidamente durante os últimos doze anos por se terem atrevido a
rebelar-se contra Saddam no período que se seguiu à Guerra do
Golfo. Naturalmente, fomos nós que os estimulámos a
levantarem-se e a seguir não os ajudámos. Por que? Pode ter
havido uma discussão na primeira administração Bush em que
terminaram por vencer aqueles que consideram que uma vitória xiita sobre
Saddam podia gerar uma multidão de imãs iraquianos que poderiam
fazer causa comum com os ayatolas iranianos. Xiitas a unirem-se com xiitas!
Hoje em dia, do ponto de vista dos restantes xiitas iraquianos, seria
difícil para nós provar-lhes que não foram vítimas
de uma traição. Assim, podem contemplar as tumbas que estamos
tão felizes de termos libertado como se fossem vozes sepulcrais a
exigirem que compartilhemos a culpa. O que, naturalmente, é algo que
não faremos.
Sim, nossa culpa por grande parte desses cadáveres continua a ser um
imenso texto anexo e Saddam esteve a criar fossas comuns durante todos os anos
70 e 80. Matou comunistas em massa nos anos 70, o que não nos incomodou
em nada. A seguir massacrou dezenas de milhares de iraquianos durante a guerra
com o Irão quando o apoiávamos. Inumeráveis fossas
comuns que estão a ser descobertas procedem desse período. Os
verdadeiros assassinos, é claro, nunca olham para trás.
A administração, contudo, preocupou-se só acerca da
aceleração da guerra. Apressaram-se a encontrar razões
justificativas. Os iraquianos constituíam uma ameaça nuclear,
estavam carregados de armas de destruição maciça,
trabalhavam em estreita ligação com al-Queda, haviam sido
até os génios malvados por trás do 11 de Setembro. As
razões oferecidas ao público estadunidense resultaram ser
superficiais, não-verificáveis e em função da
realpolitik da nossa necessidade de dominar o Médio Oriente por muitas
razões, além de Israel e Palestina. Tivemos que fazer engolir a
guerra através de fraudes.
A enormidade da falsificação poderia ser melhor interpretada como
um reflexo do imenso prejuízo que o 11 de Setembro causou à moral
dos EUA, particularmente aos seu núcleo a
corporação. Toda a gente da organização:
superiores e inferiores, gerentes, chefes de divisão,
secretárias, vendedores, contadores, especialistas de marketing, toda a
colecção de estadunidenses escriturários de empresas,
além de todos os que tinham parentes, amigos ou colegas de escola que
trabalhavam nas Torres Gémeas a comoção afectou os
fundamentos da psique estadunidense. E a classe trabalhadora dos EUA
identificou-se com os que morreram a combater o incêndio: os bombeiros e
os polícias, todos instantaneamente enobrecidos.
Foi um filão de ouro político para Bush na medida em que
conseguiu dar aos milhões ou melhor, às dezenas de
milhões , que se identificavam directamente com os incinerados nas
Torres Gémeas, um sentido adequado de vingança. Quando Osama bin
Laden não pode ser capturado pelas tropas que enviámos ao
Afeganistão, Bush foi devolvido aos problemas internos existentes que
não pareciam poder ser solucionados facilmente. A economia afundava-se,
o mercado estava de rastos e alguns bastiões clássicos da
fé estadunidense (integridade empresarial, o FBI e a Igreja
Católica, para mencionar apenas três) haviam sofrido uma perda de
prestígio atroz. O aumento do desemprego afundava a moral da
nação. Uma vez que é concebível que a nossa
administração não estivesse disposta a solucionar nenhum
dos sérios problemas que a confrontavam se a solução
não produzisse um enriquecimento dos de cima, era natural que a
administração se sentisse motivada a lançar-se em
empreendimentos mais importantes: acometer-se a uma guerra imperial!
Poderíamos dizer que nos lançámos à guerra porque
necessitávamos desesperadamente de uma guerra com êxito como uma
espécie de rejuvenescimento psíquico. Podia-se utilizar qualquer
desculpa de peso a ameaça nuclear, os ninhos de terroristas, as
armas de destruição maciça pois no final das contas
podíamos acabar por utilizar a desculpa de que estávamos a
libertar os iraquianos. Quem poderia contestá-lo? Impossível.
Só restava perguntar: Qual será o custo para a nossa democracia?
Deixemos estabelecido que a administração sabia algo que muitos
de nós não sabíamos sabia que tínhamos
forças armadas muito boas, talvez até extraordinariamente boas,
ainda essencialmente não tenham sido postas à prova, militares
especializados, disciplinados, bem motivados, concentrados nas suas carreiras e
dirigidos por uma equipa de oficiais que era inteligente, eloquente e
consideravelmente menos corrupta do que qualquer outro corpo do poder nos EUA.
Numa situação extrema, como não iria utilizá-los a
Casa Branca? Levantariam a moral de um elemento essencial da vida dos EUA:
essas dezenas de milhões de estadunidenses que haviam sido feridos
espiritualmente pelo 11 de Setembro. Também poderiam servir um grupo
ainda maior, que fora cerca de 50 por cento da população e que
continuava a ser fundamental para a base política do presidente. Esse
grupo fora realmente afectado. Quanto ao seu ego colectivo, o bom
estadunidense médio, homem e branco, havia vivido muito pouco que
reerguesse sua moral após a deterioração do mercado de
trabalho, nada, na realidade, a menos que fosse membro das forças
armadas. Nesta, a situação era evidentemente diversa. As
forças armadas haviam-se convertido no equivalente paradigmático
de um grande jovem atleta que desejavam por à prova sua autêntica
dimensão. Será que haveria por aí, nos quintos dos
infernos, um sujeito feito sob medida e que se nome fosse Iraque? O Iraque
tinha a reputação de duro, mas não lhe restava muito
conteúdo. Um adversário ideal. Uma guerra do deserto
está feito sob medida para uma força aérea cuja
condição é comparável em sua
perfeição a um modelo de moto de primeira linha sobre uma
passarela. Sim, libertaríamos os iraquianos.
Assim, lançámo-nos contra todos os obstáculos o
primeiro era a ONU. Sem sequer olhar de lado, desavergonhadamente,
orgulhosamente, eufóricos, pelo menos a metade dos nossos EUA
prodigiosamente divididos estava impaciente para que começasse a nova
guerra. Compreendemos que o nosso entretenimento na televisão ia ser
tremendo. E foi. Estéril mas tremendo o que, depois de tudo,
é exactamente o que se supõe que seja uma boa televisão em
cadeia e por cabo.
E houve outros factores para utilizar nossa perícia militar, menores mas
importantes: esses motivos voltam-nos a conduzir ao contínuo mal estar
do macho branco estadunidense. Esteve a sofrer uma sova diária durante
os últimos 30 anos. Para melhor ou para o pior, o movimento feminino
conseguiu êxitos transcendentais e o velho ego do macho branco perdeu seu
brilho. Até o consolo de animar sua equipe diante da televisão
havia sido perdido. Para muitos, agora dava muito menos prazer do que antes
assistir aos desportes, uma perda chave e declarável. As grandes
estrelas brancas de antigamente haviam desaparecido na sua maior parte,
desaparecido do futebol americano, da bola-ao-cesto, do boxe e
semi-desaparecido do beisebol. O génio negro prevalecia agora em todos
esses desportes (e os latinos impunham-se depressa, até os
asiáticos começavam a impressionar). Para nós homens
brancos deixavam-nos agora a metade do ténis (pelo menos sua metade
masculina) e também poderia mencionar o hóquei sobre o gelo, o
esqui, o futebol, o golfe (com a notável excepção do
Tiger), bem como o lacrosse, o atletismo, a natação e a
Federação Mundial de Luta resíduos daquilo que era
uma grande e gloriosa aglutinação atlética branca.
É claro que havia entusiastas do desporto que adoravam as estrelas das
suas equipes favoritas sem considerarem a sua raça. Por vezes
até gostavam mais dos atletas negros. Esses machos brancos tendiam a
ser liberais. Não serviam para Bush. Ele tinha que se preocupar com o
seu eleitorado mais imediato. Se possuía uma força oculta, era o
seu conhecimento das coisas íntimas que mais preocupavam os machos
brancos estadunidenses precisamente os assuntos que nem sempre estavam
dispostos a admitir para si próprios. O primeiro foi de que as pessoas
na onda do desporto podem ficar afeiçoados à vitória. O
desporto, a ética corporativa (a publicidade) e a bandeira dos EUA
converteram-se num triunvirato da luta-pela-vitória que desenvolveu
muitas conexões psíquicas com os militares.
Apesar de tudo, a guerra foi a extrapolação mais dramática
e mais séria do desporto. O conceito da vitória pode ser visto
por alguns como a espécie mais nobre de lucros em união com o
patriotismo. Assim, Bush sabia que uma grande vitória era um caminho
fácil que daria resultado no caso do macho branco estadunidense. Se os
negros e os latinos nas fileiras recrutadas eram representativos da sua
proporção na população, ainda não
constituíam uma maioria e as caras do corpo de oficiais (como as vemos
na televisão) sugerem que a porcentagem de brancos aumenta à
medida que se eleva a patente. Além disso tínhamos comandos em
demolição de tanques, super-Marines e a melhor força
aérea que já existiu. Se não podíamos encontrar
machismo em qualquer outra parte, certamente podíamos contar com a
inter-relação entre combate e tecnologia. Permitam-me que lance
a ofensiva sugestão de que pode ter sido uma das razões
encobertas mas reais porque desejávamos a guerra. Sabíamos que
provavelmente seria algo que nos faria ficar bem.
Enquanto isso, contudo, dentre todos os rápidos acontecimentos dos
últimos meses, nossos militares sofreram uma metamorfose. Certamente
foi uma transformação do diabo. Passámos, seja como for,
da condição de um atleta potencialmente grande a servir como
médico interno ao qual se exigia que operasse em alta velocidade para a
de um paciente terrivelmente doente cheio de frustração,
indignação e violência. Agora, durante o mês
passado, inclusive enquanto estão o paciente, apresenta-se uma nova e
inquietante pergunta: Foi desenvolvido algum remédio novo para tratar
aquilo que parece ser uma série de infecções? Sabemos
realmente como tratar supurações arroxeadas? Ou seria melhor
continuar a confiar na nossa imensa sorte estadunidense, nossa fé na
nossa sorte de pode fazer tudo, divinamente protegidos? Somos, por
hábito, belicosos. Se essas supurações forem
incontroláveis, ou demasiado custosas quanto a tempo, não
poderíamos deixá-las para trás? Poderíamos passar
ao próximo destino. A Síria, poderíamos declarar com a
nossa melhor voz de John Wayne: Vocês podem correr, mas não podem
esconder-se. A Arábia Saudita: Vocês, depósito de graxa,
necessitam-nos mais do que nunca? E ao Irão: Cuidado, estamos a
vê-los. Vocês dariam uma verdadeira merenda. Pois quando
combatemos sentimo-nos bem, estamos prontos para lançar-nos e já
verão como é. Já tomámos o gosto. Claro,
há um cabaz cheio de milhares de milhões à espera no
Médio Oriente, enquanto pudermos escapar dos biliões de
dívidas que nos esperam em casa.
Digamos de forma bem clara: os motivos que orientam os principais actos
históricos de uma nação provavelmente não se elevam
mais alto do que o entendimento espiritual da sua liderança. Ainda que
George W. não saiba tanto quanto como acredita saber sobre as
disposições da bendição divina, continua da mesma
forma a conduzir-nos a alta velocidade um homem ao volante cuja vaidade
mais legítima será provavelmente que sabe como converter a
propriedade parcial de uma equipe de beisebol da liga nacional numa
vitória na eleição para governador do Texas. E poderemos
chegar a esquecê-lo algum dia? foi catapultado, mediante
astúcias legais e fraudes, a um pedestal agora um tanto maculado,
mas ainda todo-poderoso: Viva o Chefe!
Não, não ascenderemos mais alto que o entendimento espiritual dos
nossos dirigentes. E agora que o ardor da vitória começou a
arrefecer, alguns verão que tinha falhas. Porque somos vítimas
uma vez mais de todas essas ciências da publicidade que dependente da
falsidade e da manipulação. Fomos iludidos sobre os verdadeiros
motivos para esta guerra, puxados e empurrados por alguns dos melhores
especialistas na arte de enganar a fim de que acreditássemos que
vencemos uma luta nobre e necessária. Quando, na realidade, o
adversário era um imbecil esvaziado cujas monstruosidades degeneravam
para a senilidade.
Talvez não fosse tão velho. Talvez Saddam tenha tomado a
decisão de passar à clandestinidade com toda a riqueza que havia
subtraído e financiar a al-Qaeda ou algum apêndice em algum tipo
de cooperação com Osama bin Laden uma nova equipe
clandestina, os Gémeos Terroristas Incompatíveis. É uma
hipótese tão insana como o mundo no qual começamos a viver.
A democracia, mais que qualquer outro sistema político, depende de um
vislumbre de honradez. Em última instância está em grande
parte à mercê de um líder nunca se pôs a si
próprio numa situação embaraçosa. O que dizer de
alguém que passou dois anos na Força Aérea da Guarda
Nacional (para não ter que ir ao Vietname) e que actuou como muitos
outros filhotes do papá, mimados e ricos sem se darem ao
incómodo de se apresentarem para cumprir o dever no seu segundo ano de
serviço? A maioria de nos tem episódios de juventude podem dar
vergonha quando pensamos neles. É um sinal de amadurecimento não
tentarmos aproveitar nossas falhas e vícios de juventude e sim fazermos
o possível por aprender com eles. Bush, contudo, tratou de converter
sua declaração do fim da campanha iraquiana num impressionante
desfile de fantasias. Escolheu para cenário a cobertura do
porta-aviões Abraham Lincoln, chegando num Viking jet S-3B que fez uma
aterragem dramática com o
tail hook
baixado. O porta-aviões estava bem dentro do raio de
acção de um helicóptero a partir de San Diego, mas G.W.
não teria podido exibir-se em roupagens de voo e portanto não
teria podido demonstrar como ficava bem no uniforme que não havia
honrado. Jack Kennedy, um herói da guerra, sempre andava em traje civil
quando era comandante em chefe. O mesmo fazia o general Eisenhower. George W.
Bush, que teria podido, se estivesse só no mundo, ser um modelo
masculino de classe mundial (uma vez que nunca sai mal numa foto) tratou de por
o capacete de aviador e brilhar no traje de voo. Ali esteve para a sua
sessão fotográfica, vendo-se como mais outro tipo sensacional
entre tipos sensacionais. Esperemos que a nossa democracia sobreviva a esse
bombardeio de sujidade no seu próprio ninho.
07/Jul/03
[*]
Escritor norte-americano.
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