O modelo de Huntington
Eu perambulava numa livraria da Barnes & Noble na semana passada quando deparei
com um livro escrito pelo meu velho líder de equipe do 1º
Destacamento Operacional das Forças Especiais
(1st Special Forces Operational Detachment Delta Force)
. O livro, por incrível que pareça, chamava-se "Inside
Delta Force". O autor, meu antigo líder de equipe, é Eric
Haney.
Ao folhear o livro encontrei uma fotografia da nossa equipe que fez o trabalho
arriscado no helicóptero "Chalk 4" numa operação
antes da hora H da Operação Urgent Fury, a invasão de
Granada uma invasão que deveria afundar-se nos anais das
invasões não só pelo seu cinismo como também pelo
absoluto fracasso do seu planeamento e execução. Na fotografia,
fomos colocados sabe-se lá por quem num grupo, aparentemente preparando
a nossa partida da ilha. A sujeira e o medo da operação ainda
estavam em nós, e estávamos visivelmente fatigados e com a
adrenalina gasta.
Fui até à página 300, onde Eric descreveu todo o fracasso
em pormenores dramáticos. Ele mudou uns poucos nomes por qualquer
razão, e o meu foi mudados para Stan Johnson. Talvez tenha pensado que
ainda estou na activa, alhures.
Isto tudo fez-me sentir estranhamente nostálgico, não de dar
tiros, mas de me ter tornado muito mais velho, das viagens longínquas
que fiz então, quase 20 anos atrás.
Mais tarde, naquele mesmo dia, parei para um café numa livraria melhor,
The Regulator, em Durham, onde quase me escapou um volume na
secção de História Militar chamado "American Soldier:
Stories of Special Forces from Iraq to Afghanistan", editado pela Nate
Hardcastle and Clint Willis. Num impulso relutante, retirei-o da prateleira e
ali na capa desta antologia estava o meu nome. O meu editor de "Sonho
odioso"
(Hideous Dream)
havia dado permissão para incluir uma parte substancial do meu livro, e
o de Eric. Ali se conta tudo desde o Vietname, escrito principalmente pelos
participantes reais.
O que me chocou nesta coincidência de livros foi que a maior parte deles
foi escrito por antigos alistados sargentos como eu.
As memórias começam a formigar, e algumas velhas cicatrizes
conectam-se como pontos dentro da minha cabeça.
Em 1986 comecei a ter problemas no Delta. Comecei a brigar e a afastar-me do
círculo interno maçónico um ano antes, quando os
"embaracei" num exercício no Panamá em que
desempenhando o papel de inimigo derrotei o meu próprio
esquadrão. Naquele mesmo ano, a unidade ficou embrulhada num
escândalo de uma fraude que implicava virtualmente toda a gente, e as
investigações principiaram uma orgia de dedo-durismo e
traição que arruinaram a moral da tropa e desencadearam um
expurgo.
No Dia de Acção de Graças de 1986 fui chamado ao gabinete
do Sargento Maior Mel Wick e sumariamente libertado da função de
"operador", meu certificado de segurança
(security clearance)
foi suspenso, e disseram-me para começar a procurar um emprego. O
rumor que serviu de base para a minha libertação da tropa foi que
havia, quando em El Salvador no fim de 1985, levado uma mulher que era uma
antiga guerrilheira da FMLN ao quarto do embaixador Edwin Corr na sua
residência palaciana em Colonia San Benito quando ele estava em viagem e
partilhado prazeres carnais com ela sobre os lençóis
presidenciais do embaixador. Numa palavra: Gostaria de poder reivindicar o
rumor nem que fosse pelo seu aspecto iconoclástico mas, ai
de mim, não é verdade. Mas pouco importa. Fui expurgado.
Pendente da devolução do meu certificado de segurança, eu
tinha de procurar uma missão em que um Airborne Ranger Infantry Sergeant
First Class pudesse trabalhar sem ter acesso a material classificado. Foi
assim que aconteceu ser designado, como instrutor de Ciência Militar, no
Departamento de Instrução Militar da Academia Militar de West
Point, Nova York.
Em West Point, durante o primeiro semestre dos calouros em Ciência
Militar, recrutas apavorados com cara de bebé entravam na sala de aula
à espera de serem instruídos sobre as formas de se tornarem
guerreiros.
Mas, ao invés disso, eles são sujeitos a uma versão
altamente seleccionada da história militar dos EUA que rasteia o
desenvolvimento do corpo de oficiais do Exército dos EUA através
das lentes loucas de algo que se chama Modelo de Profissionalismo Militar de
Huntington
(Huntington's Model of Military Professionalism)
.
Primeiramente, tendo revisto o material do meu curso a fundo para garantir que
os meus cadetes poderiam sobreviver aos exames, pensei que este semestre era
apenas uma outra extensão sádica do "sistema da quarta
classe", aquela estúpida tradição da
privação do sono, da submissão generalizada e da
humilhação que os calouros de West Point devem aguentar nos seus
primeiros noves meses.
Eu estava errado.
Todos os que vão ser oficiais militares dos EUA são doutrinados
no Modelo de Huntington.
Samuel P. Huntington, o grande racista cultural e intelectual da Guerra Fria,
desenvolveu uma teoria louca
(crackpot theory)
do "profissionalismo militar" e do "relacionamento
civil-militar" que foi adoptada décadas atrás como a
"teoria" oficial para o corpo de oficiais da Forças Armadas
dos EUA.
Em West Point, esta doutrinação é quase como um
Skull-and-Bones
,
uma lavagem cerebral semi-hipnótica, porque é infligida sobre
cadetes que entram na sala de aula num estado de sonambulismo
pós-traumático. Ao contrário dos rapazes de Bush,
contudo, nenhum cadete é forçado a permanecer num caixão,
recitando sua história sexual para os seus companheiros.
O Modelo de Huntington, que eu prometo não atacar muito aqui (por
compaixão para com o leitor), descreve o oficial militar ideal como uma
espécie de versão prussianizada de médicos, advogados e
administradores de empresas profissionalismo definido mecanicamente por
três atributos: conhecimento técnico especializado, um
"sentido corporativo", e uma vasta educação liberal.
Esta última significa uma licenciatura numa faculdade.
Huntington também faz a afirmação claramente absurda
na sua definição de relacionamento civil-militar de
que os militares podem ser apolíticos, uma asserção
bizarra da parte de um homem que afirma ter sido influenciado pelo grande
teórico militar prussiano
Carl von Clausewitz
.
(Clausewitz começa a sua teoria da guerra com a premissa de que "a
guerra é a política continuada por outros meios").
O Modelo de Huntington fornece uma justificação teórica
para a reprodução de um sistema de classe entre os militares, um
sistema e uma justificação ajustada unicamente para os militares
americanos pós-2ª guerra mundial.
Examinando o seu critério de um "profissional", verifica-se
imediatamente que as pessoas alistadas e experientes entre os militares
preenchem dois daqueles critérios. Eles têm perspicácia
técnica tal como a maior parte dos oficiais, e eles participam
plenamente da cultura militar (sentido corporativo). A
distinção, então, está num grau
universitário formal, uma credencial descrita por Huntington como uma
"vasta educação liberal".
Há algumas razões muito práticas, baseadas na pura
lógica militar, para a hierarquia nas forças armadas. A mais
óbvia é que a actividade definidora das forças armas
inclui matar, morrer, mutilar, ser mutilado e destruir propriedade. Estes
são, para dizer as coisas suavemente, comportamentos contra-intuitivos,
muitas vezes cometidos tendo em vista um objectivo político que é
pouco mais do que uma abstracção para os que são obrigados
a cometer todos estes males. Quanto mais afastado da experiência do
soldado está aquele objectivo, mais difícil é convence-lo
dos seus méritos pois ele (e ocasionalmente ela) tem de ser confrontado
com um inimigo crível que se comporte como ele/a espera. Assim,
juntamente com uma ideologia de militarismo tudo isso estimula terrores sexuais
profundamente irracionais, é preciso estabelecer um sistema de
disciplina draconiana a fim de assegurar que a maioria das tropas
combaterá, ao invés de fugir ou atirar nos seus oficiais, quando
a merda é despejada sobre a proverbial ventoinha.
Mas Sam Huntington estava a trabalhar no seu modelo de militar profissional na
década de 1950, e nessa época a disciplina para os militares
já era axiomática há séculos. A
"contribuição" de Huntington foi, de facto, desenvolver
uma teoria adequada especificamente às necessidades da primeira
força militar imperial após a 2ª Guerra, plenamente
emplumada e hirta.
Por que ficou ele tão entusiasmado com a sua definição de
profissionalização para as forças armadas?
Ele exprimia admiração aberta pelos prussianos, mas os costumes
feudais dos mesmos (os quais, a propósito, infectam todas as grandes
organizações militares do mundo hoje em dia) foram adaptados e
modificados para reforçar um sentido de tradição que
mantivesse uma espécie de continuidade cultural através das
muitas mudanças tecnológicas, doutrinais e estruturais na
condução da guerra. Estas mudanças são reflexos da
sociedade em que estas organizações militares estão
inseridas. Somente o etos militar é prussiano.
Este etos não deveria ser confundido com as necessidades práticas
de uma vasta, moderna, mecanizada (e agora computorizada) força militar,
concebida para projectar-se internacionalmente, através de um espectro
de conflitos potencial que vão desde acções menores de
polícia para tranquilizar uns poucos banqueiros com cara de
pastelão até a algo chamado Guerra Total, em que o objectivo
é a destruição de toda uma sociedade.
A pista para desvendar o mistério é que o Modelo de Huntington
denomina o oficial militar de "um administrador de violência".
Ênfase em administrador.
Uma organização militar permanente consistente por centenas de
milhares de pessoas e por centenas de milhares de milhões de
dólares de equipamentos e abastecimentos, empregando tecnologias no
estado-da-arte, e espalhando-se através dos cinco continentes... tem
muitas das características de... digamos... uma corporação
multinacional. Esta magnitude de dimensão e complexidade implica uma
complexa e altamente especializada divisão do trabalho, a qual por sua
vez exige um vasto aparelho administrativo para manter tudo sincronizado.
Isto é pelo menos parte da definição de burocracia.
Burocratas não precisam de líderes, no sentido homérico do
herói guerreiro. Eles precisam de administradores. Sociedades
burocratizadas como a nossa reproduzem-se a si próprias, isto é,
mantém as suas próprias estruturas e relações. Um
importante mecanismo para esta reprodução social, nos sectores
civis e militares, é o credenciamento.
Uma vez que aqueles calouros de West Point acabem de passar as dificuldades dos
seu Ano de Ralé, eles passam os três anos seguintes a serem
doutrinados sobre como manter controle sobre inconfiáveis, falsos,
manhosos e traiçoeiros porcos alistados tudo isto agora
codificado na linguagem apropriada da extrema-direita politicamente correcta.
Incluídos entre os manhosos e traiçoeiros estão aquelas
pessoas alistados sobre as quais elas dependerão totalmente para o seu
êxito, os NCOs.
O pequeno punhado de alistados com quem eu conversava em West Point consistiu
uma espécie de excursão atrevida e experimental a fim de expor os
cadetes aos "bons" NCOs. Na maior parte dos casos, penso, os
perversos cadetes preferiam-nos aos oficiais, e assim aquela experiência
foi logo concluída.
Isto, penso, aponta-nos para uma importante arena da luta de classe.
Após este passeio através do Delta e de West Point, preciso
reorientar o leitor de volta ao livro de Eric Haney. Dentro da Delta Force
há um canto de glória às operações especiais
e ao militarismo, encobrindo o racismo-machismo da unidade. Mas em certos
trechos Eric também levanta questões inconfortáveis acerca
da política externa dos EUA, e descreve tal como o meu
próprio livro a experiência real das pessoas por
trás da desgraçada mística das Special Ops. No nosso
caso, estas são experiências de pessoas alistadas que de muitas
maneiras transgridem a fronteira invisível entre pessoas alistadas e os
"administradores de violência" credenciados.
E está bem escrito.
Nós ambos, no nosso tempo de serviço activo, tornámo-nos
pessoas com as quais os oficiais contavam, mas achavam difícil controlar.
A questão real que quero enfatizar é que Eric Haney e eu
escrevemos livros para todos. E que eles foram publicados.
Nada contribui tanto para a reprodução de classe na nossa
sociedade, além das relações de propriedade, como a
divisão intelectual do trabalho imposta institucionalmente. Isto
secciona o conhecimento em guetos académicos, e tenta congelar as
pessoas da classe trabalhadora separadamente da intelligentsia. Credenciais!
O capitalismo precisa dos seus mandarins credenciados, e os mandarins muitas
vezes definem até quem são os críticos
"legitimados" do capitalismo. Especialização e
credenciamento são as chaves para esta legitimação, e as
chaves para a exclusão dos pretensos transgressores.
Aqueles de nós que não têm credenciais devem ser
excluídos da intelligentsia, pois a inclusão das nossas vozes, a
legitimação das nossas vozes, põe em causa a legitimidade
de todo o sistema de poder.
Sinto isto pessoalmente, tanto como antigo alistado como como homem de
esquerda. Como homem de esquerda, tenho por vezes me deparado com
pressões poderosas para circunscrever o meu próprio papel, e
limitar os meus próprios discursos públicos, à
crítica da política militar dos EUA... para servir a
revolução só como uma testemunha.
Deixe a teoria para os peritos. Actue só como militar.
Os camaradas da www.freedomroad.org Freedom Road não aceitam essa treta.
Eles incluem muitos intelectuais da classe trabalhadora.
As pessoas da classe trabalhadora podem e devem tornar-se intelectuais.
Podemos e devemos estudar diligentemente, debate, auto-criticar, reestudar, e
afiar continuamente nossa capacidade para actuar intelectualmente.
Não podemos ser preguiçosos acerca disto. É sempre mais
fácil pretender que se sabe alguma coisa do que aprender acerca dela.
É sempre mais fácil ser engraçado do que ser rigoroso.
É mais fácil conversar fiado do que praticar a humildade do
estudante sério. Temos de trabalhar, mais duramente do que a burguesia,
porque estamos em guerra.
Mas nunca nos poderemos permitir sermos intimidados por graus avançados
assim como não devemos tornar-nos anti-intelectuais. Nunca
poderemos nos permitir ficar contidos dentro de especializações
pré-determinadas. A experiência dos intelectuais da classe
trabalhadora. enriquecerá a teoria. Nossas estórias
manterão as coisas reais. Nossa prática definirá o futuro.
E nós merecemos ser ouvidos.
O original deste artigo encontra-se em
http://www.freedomroad.org/milmatters_9_huntington.html
.
[*]
Ex-sargento do Exército dos EUA.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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