O debate que não aconteceu acerca do tecto de endividamento
Guerra e dívida
Vamos começar com a questão mais óbvia: Se os governos
aumentam a sua dívida no processo de executar programas que o Congresso
já aprovou, porque teria o Congresso ainda uma outra opção
de impedir o governo de continuar estas despesas autorizadas, recusando-se a
elevar o tecto de endividamento?
A resposta é óbvia quando se observa a razão porque esta
verificação à prova de falha foi introduzida em quase
todos os países do mundo. Ao longo da história moderna, a guerra
tem sido a causa principal do aumento da dívida nacional. A maior parte
dos governos operam em equilíbrio fiscal durante os tempos de paz,
financiando seus gastos e investimentos com a cobrança de impostos e de
taxas de utilização. As emergências de guerra pressionam
este equilíbrio para o défice por vezes para guerras
defensivas, algumas vezes para a agressão.
Na Europa, os controles parlamentares dos gastos de governo foram concebidos
para impedir governantes ambiciosos de travarem guerras. Este era o grande
argumento de Adam Smith contra dívidas públicas e a sua
insistência em que as guerras fossem financiadas numa base de pagamento
imediato. Ele escreveu que se o povo sentisse imediatamente o impacto
económico da guerra a invés de adiá-lo com tomadas
de empréstimos seria menos provável que apoiasse o
aventureirismo militar.
Esta não era obviamente a posição do Tea Party, nem a dos
republicanos. O que é tão notável acerca da crise de 2 de
Agosto do tecto da dívida nos Estados Unidos é a sua aparente
dissociação com as despesas de guerra. Certamente, mais de um
terço (US$350 mil milhões) do corte de US$917 mil milhões
em gastos correntes cabe ao Pentágono. Mas isso simplesmente reduz a
notável taxa de escalada que se verificou desde do Iraque até o
Afeganistão e a Líbia.
O que é ainda mais notável no mês passado é que o
democrata Dennis Kucinich e o republicano Ron Paul procuraram fazer com que o
presidente Obama obedecesse às condições da Lei de Poderes
de Guerra
(War Powers Act)
e obtivesse a aprovação do Congresso para a sua guerra na
Líbia, como é exigido quando a guerra perdura por mais de
três meses. Esta tentativa de aplicar a regra da lei à
Presidência Imperial não teve êxito. Obama afirmou que
bombardear um país não era guerra. Era guerra só se
soldados de um país estivessem a ser mortos. O bombardeamento da
Líbia foi feito a partir do ar, a longa distância e talvez
também por aviões sem piloto
(drones).
Então uma guerra sem sangue é realmente uma guerra sem
sangue do lado do agressor, não é?
Esta foi precisamente a situação pela qual a regra do tecto de
endividamento foi introduzida em 1917. O presidente Wilson havia levado os
Estados Unidos à Grande Guerra, rompendo a sua promessa de campanha
eleitoral de não o fazer. Isolacionistas nos Estados Unidos procuraram
limitar o compromisso da América, através da
imposição da vigilância do Congresso e a
aprovação do aumento do tecto de endividamento. Esta salvaguarda
obviamente era destinada a ser utilizada contra gastos não programados
que ocorressem sem a aprovação do Congresso.
O presente aumento da dívida do Tesouro dos EUA resulta de duas formas
de guerra. Primeiro, a claramente militar Guerra do Petróleo no
Médio Oriente, desde o Iraque ao Afeganistão
(Pipelinistão) e à Líbia rica em petróleo. Estas
aventuras acabarão por custar entre US$3 e US$5 milhões de
milhões
(trillion).
Segundo, e ainda mais caro, é a mais encoberta e ainda mais custosa
guerra económica da Wall Street contra o resto da economia, exigindo que
perdas de bancos e instituições financeiras sejam transferidas
para o balanço do governo ("contribuintes"). Os salvamentos de
"almoços gratuitos" para a Wall Street não por
coincidência, o contribuidor número um de campanhas
políticas para o Congresso custam US$13 milhões de
milhões.
Parece notável que o foco principal de Obama sobre o tecto de
endividamento seja para advertir que o financiamento da Segurança Social
deve ser cortado, juntamente com o do Medicare e outros programas sociais. Ele
chegou a dizer que apesar do facto de que salários postos à parte
para o FICA
[1]
terem sido investidos em títulos do Tesouro durante mais
de meio século, o governo pode não enviar cheques esta semana.
Um duplo padrão radical está em acção para a
democracia. Os investidores da Wall Street certamente não se preocupam
muito. De facto, taxas de juro a longo prazo de Títulos do Tesouro
realmente afundaram durante o mês passado e especialmente durante a
última semana. Assim, possuidores de dívida institucional
obviamente esperam ser pagos. Só os poupadores da Segurança
Social são congelados
(stiffed)
ou estaria Obama simplesmente a tentar ameaçá-los, de
modo a aparecer como um herói salvador da sua Segurança Social
através de uma Grande Negociação?
Wall Street tinha isto como certo. Não havia crise real. A
autorização para elevar o tecto do endividamento público
não é uma ocasião adequada para discutir política
fiscal a longo prazo. Desde 1962 exactamente quando a Guerra do Vietname
começava a escalar ela foi elevada 74 vezes. Isto dá uma
média de cerca de uma vez a cada oito meses. É como ir a um
notário público só para certificar que o presidente
não está a fazer algo errado. O sr. Obama podia ter pedido um
voto limitado apenas a isto, sem cláusulas adicionais. Nunca antes tais
cláusulas foram acrescentadas. E ainda mais notavelmente, não
houve tentativa de impor uma cláusula restringindo a
administração Obama de gastar quaisquer fundos adicionais na
Líbia, sem obter uma declaração de guerra oficial do
Congresso.
Obama podia ter recorrido à 14ª emenda para pagar. Ele podia ter
adoptado a proposta feita por Scott Fulwiler e outros economistas da UMKC
[2]
de o Tesouro emitir US$1 milhão de milhões de moedas
metálicas e pagar o Fed por
Títulos do Tesouro. Mas o sr. Obama dirigiu o debate para a direita,
transformando-a numa discussão sobre como cortar a Segurança
Social e o Medicare na guerra de classe estado-unidense que está a
emergir, ao invés de super-estender a Guerra do Petróleo à
África do Norte.
A primeira grande vitória para o sector financeiro na guerra de classe
interna da América foram os cortes fiscais
"temporários" de Bush sobre a riqueza. Esta agressão
não foi desfeita a fim de restaurar o equilíbrio
orçamental. Não foram revogados nenhuns cortes fiscais
temporários, nenhuma escapatória foi fechada. O fardo de
equilibrar o orçamento foi empurrado ainda mais sobre a base do Partido
Democrata: o trabalho urbano, minorias raciais e étnicas, os litorais
Leste e Oeste. Mas os democratas dividiram-se na votação para
elevar o tecto da dívida ao retalhar os gastos sociais do seu maior
eleitorado.
Eleitorado votante, mas não contribuidores de campanha. Isto parece ser
a chave de como se desdobrou a crise da dívida. Embora líderes
democratas como Maxine Walters Waters, Dennis Kucinich, Henry Waxman, Barney
Frank, Edolphus Towns, Charles Rangel e Jerrold Nadler se opusessem (e do lado
republicado, Ron Paul, Michele Bachmann e Ben Quayle), grande parte da
oposição baseada em princípios veio de republicanos
tradicionais. Paul Craig Roberts, assistente do secretário do Tesouro do
Reagan, acusou o acordo de ser demasiado à direita e de favorecer a
riqueza num grau que ameaça provocar depressão.
A essência da teoria económica clássica do mercado livre
era restringir o poder executivo numa época em que o poder de
fazer guerra era o principal abuso aos interesses nacionais. Assim como as
câmaras baixas de legislativos bicamerais assumiam o poder de comprometer
nações a uma dívida nacional permanente ao
invés das dívidas reais que morriam com os reis, como era norma
antes do século XVI também os parlamentos afirmaram seu
direito de impedir a guerra.
Mas agora que as finanças são a nova forma de guerra
interna, não externa onde está o poder para constranger o
poder do Tesouro e do Federal Reserve a comprometerem os contribuintes com o
salvamento de interesses financeiros do topo da pirâmide
económica? O Fed e outros bancos centrais afirmam que a sua
"independência" política é uma
"característica de democracia". Parece ao invés ser uma
transição para a oligarquia financeira. E agora que essas
finanças juntaram-se à indústria petrolífera,
grandes monopólios e privatizadores do domínio público, a
necessidade de alguma espécie de supervisão do Congresso é
tão necessária quanto foi o poder parlamentar sobre gastos
militares em tempos passados.
Nenhuma discussão deste princípio básico foi divulgada no
debate do tecto de endividamento. Mesmo críticos que (ostensivamente)
votaram de forma relutante (de modo a proporcionar uma desculpa
plausível para o que sem dúvida serão as suas posteriores
condenações do acordo quanto chegar outra vez o tempo de
eleições) actuaram como estivessem a salvar a economia. A
realidade é que agora há pouca esperança de reconstruir a
infraestrutura como prometera o presidente. Os cortes na partilha da receita
federal atingirão duramente cidades e estados, forçando-os a
vender ainda mais terra, estradas e outros activos do domínio
público para cobrir seu défice orçamental quando a
economia dos EUA afundar ainda mais na depressão. O Congresso acabou de
acrescentar deflação fiscal à deflação da
dívida, desacelerando o emprego ainda mais.
Como será que eles explicarão tudo isto nas
eleições de Novembro de 2012?
03/Agosto/2011
[1] FICA: Federal Insurance Contributions Act.
Lei federal americana que obriga empregadores a reterem os salários de
funcionários para o pagamento da Previdência Social e de Seguros de
Saúde
[2] UMKC: University of Missouri - Kansas City
[*]
Ex-economista da Wall Street. Professor e investigador da Universidade de
Missouri Kansas City. Autor de
Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire
(new ed.,
Pluto Press
, 2002) e
Trade, Development and Foreign Debt: A History of Theories of Polarization v.
Convergence in the World Economy.
mh@michael-hudson.com
O original encontra-se em
http://www.counterpunch.org/hudson08032011.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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