Guerra preventiva, 'o crime supremo'
Iraque: A invasão que viverá na infâmia

por Noam Chomsky [*]

Comoventes cartões postais distribuídos pelos invasores ao povo iraquiano. Setembro de 2002 foi marcado por três eventos de considerável importância, estreitamente relacionados. Os Estados Unidos, o Estado mais poderoso da história, anunciaram uma nova estratégia de segurança nacional afirmando que manterão permanentemente a hegemonia global. Qualquer desafio será bloqueado através da força, dimensão na qual os Estados Unidos reinam supremos. Ao mesmo tempo, os tambores de guerra começaram a bater para mobilizar a população para uma invasão ao Iraque. E abriu-se a campanha para as eleições intercalares para o Congresso, que iria determinar se a administração seria capaz de levar adiante sua radical agenda interna e internacional. A nova “grande estratégia imperial”, como foi chamada certa vez por John Ikenberry ao escrever na principal revista do establishment , apresenta os Estados Unidos como "um Estado revisionista que pretende aproveitar suas vantagens momentâneas transformando-as numa ordem mundial por ele dirigida", um mundo unipolar no qual "nenhum Estado ou coligação poderia jamais desafiar o líder global, protetor e aplicador”. [1] Estas políticas estão repletas de perigos até mesmo para os próprios Estados Unidos, advertiu Ikenberry, unindo-se a muitas outras personalidades da elite da política externa.

O que deve ser protegido é o poder dos Estados Unidos e os interesses que ele representa, não o mundo, que se opõe vigorosamente a esse conceito. Poucos meses depois estudos revelaram que o medo dos Estados Unidos atingiu alturas notáveis, junto com a desconfiança nas lideranças políticas. Uma pesquisa Gallup internacional feita em dezembro e fracamente noticiada nos Estados Unidos mostrou a falta de apoio para os planos anunciados por Washington de uma guerra contra o Iraque conduzida de forma unilateral pelos Estados Unidos e seus aliados, na verdade, a coligação Estados Unidos-Reino Unido.

Washington disse às Nações Unidas que a organização poderia ser relevante se endossasse os planos dos Estados Unidos, ou então iria tornar-se um clube de debates. Os Estados Unidos tinham “o direito soberano de levar adiante uma ação militar”, disse o moderado Colin Powell ao Fórum Econômico Mundial, que também se opôs aos planos de guerra: “quando estivermos firmemente convictos de algo, nós o faremos, não importa que ninguém nos siga”. [2]

O PRINCÍPIO CRUCIAL

O Presidente George Bush e o Primeiro Ministro Tony Blair mostraram todo seu desprezo pelas instituições e pelo direito internacional no seu encontro nos Açores às vésperas da invasão. Eles deram um ultimato, não ao Iraque e sim ao Conselho de Segurança: “Voltem atrás ou iremos invadir sem o seu insignificante selo de aprovação. E nós o faremos quer Saddam Hussein e sua família abandonem ou não o país”. [3] O princípio crucial é que os Estados Unidos devem efetivamente governar o Iraque.

O presidente Bush declarou que os Estados Unidos “tem a autoridade soberana de usar a força para garantir a segurança nacional, ameaçada pelo Iraque com ou sem Saddam Hussein, de acordo com a doutrina Bush. Os Estados Unidos ficarão satisfeitos com o estabelecimento de uma fachada árabe, adoptando o termo utilizado pelos britânicos em seus dias de fastígio, enquanto o poder estadunidense vai sendo firmemente implantado no coração da maior região produtora de energia do mundo. A democracia formal será esplêndida, mas apenas se for do tipo submisso aceito pelos Estados Unidos, pelo menos enquanto a história e a prática atual servirem de guia.

A grande estratégia autoriza os Estados Unidos a executarem uma guerra preventiva. Preventiva (preventive) , não antecipativa (pre-emptive) . Quaisquer que sejam as justificativas para uma guerra antecipativa, elas não justificam uma guerra preventiva, especialmente na forma como esse conceito é entendido pelos seus actuais entusiastas: o uso da força militar para eliminar uma ameaça inventada ou imaginada, de modo que mesmo o termo “preventiva” é demasiado caridoso. Guerra preventiva é, simplesmente, o crime supremo que foi condenado em Nuremberg.

Isso foi compreendido por aqueles que têm alguma preocupação com o seu país. Quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, o historiador Arthur Schlesinger afirmou que a grande estratégia de Bush é “alarmantemente similar à política que o Japão imperial empregou na época de Pearl Harbor, em uma data que, como disse um antigo presidente norte americano (Franklin D. Roosevelt), ficaria marcada pela infâmia”. Não foi nenhuma surpresa, disse Schlesinger, que “a onda global de simpatia pelos Estados Unidos após o 11 de Setembro tenha aberto caminho para uma onda global de ódio ao militarismo e arrogância estadunidenses e à crença de que Bush é uma ameaça maior à paz do que Saddam Hussein.” [4]

O DISCÍPULO DE AL CAPONE

Para as lideranças políticas, em sua maior parte recicladas dos setores mais reacionários das administrações Reagan-Bush Senior, a onda global de ódio não é um problema. Eles querem ser temidos, não amados. É natural para o secretário da Defesa Donald Rumsfeld citar as palavras do gangster Al Capone: “Você consegue mais com uma palavra gentil e uma arma do que apenas com uma palavra gentil”. Eles entendem, tão bem quanto seus críticos, que suas ações aumentam o risco de proliferação de armas de destruição em massa e de terror. Mas isso também não é um grande problema. Bem à frente na sua escala de prioridades estão os objetivos de estabelecer a hegemonia global e implementar sua agenda interna, que deve desmantelar as aquisições conquistadas pelas lutas populares ao longo do século passado e institucionalizar mudanças radicais para que a tarefa de recuperar essas aquisições se torne extremamente difícil.

Não é suficiente para um poder hegemônico declarar uma política oficial. Ele deve estabelece-la como uma nova norma da lei internacional através de uma ação exemplar. Comentaristas eminentes podem então explicar que a lei é um instrumento vivo flexível e, assim sendo, a nova norma é um guia de ação válido. Fica subentendido que apenas os que possuem armas podem estabelecer normas e modificar a lei internacional.

O alvo escolhido deve preencher algumas condições. Deve ser indefeso, importante o suficiente para valer o incômodo, uma ameaça iminente à nossa sobrevivência e um mal definitivo. O Iraque preenchia todos os quesitos. As duas primeiras condições são óbvias. Para explicar a terceira é suficiente repetir os discursos de Bush, Blair e seus colegas: “O ditador está reunindo as armas mais poderosas do mundo para dominar, intimidar a atacar. E ele já as utilizou em aldeias inteiras matando milhares de sus próprios cidadãos e deixando outros cegos ou deformados, se isso não é mal, então mal não significa nada”. A eloqüente denúncia de Bush com certeza soa verdadeira. E aqueles que contribuíram para fortalecer o mal não podem gozar a impunidade. Entre eles está a própria pessoa que diz essas palavras altivas, seus atuais parceiros e todos aqueles que se uniram a eles enquanto apoiaram o “homem do mal”, Saddam Hussein, mesmo depois de ele ter cometido esses terríveis crimes e após a primeira guerra com o Iraque. Nós o apoiámos devido ao nosso dever de ajudar os exportadores americanos, explicou a administração Bush Sênior.

O VERDADEIRO CRIME DE SADDAM

É impressionante ver como é fácil para os líderes políticos, enquanto atribuem a Saddam os mais monstruosos crimes, suprimir as palavras cruciais: “com a nossa ajuda, pois não nos importamos com tais assuntos”. Esse apoio transformou-se em denúncia logo que o seu amigo Saddam cometeu seu primeiro verdadeiro crime, que foi desobedecer (ou talvez entender mal) as ordens e invadir o Kuwait. A punição foi severa — para seus súditos. O tirano escapou incólume e foi posteriormente fortalecido pelas sanções ao regime impostas pelos seus anteriores aliados. Igualmente fáceis de suprimir são as razões pelas quais os Estados Unidos voltaram a apoiar Saddam imediatamente após a Guerra do Golfo, quando ele esmagou rebeliões que poderiam te-lo destronado. O mais importante correspondente internacional do New York Times , Thomas Friedman, explicou que o melhor para os Estados Unidos seria “uma junta com mão de ferro para o Iraque, sem Saddam Hussein”, mas já que esse objetivo parecia inatingível teríamos que nos satisfazer com o possível. [5] Os rebeldes fracassaram porque os Estados Unidos e seus aliados fomentaram a opinião "extraordinariamente unânime de que por piores que fossem os pecados do líder do Iraque, ele oferecia ao seu país e à região maior esperança de estabilidade do que os que sofriam a sua repressão". [6]

Tudo isso foi omitido no comentário feito junto às sepulturas coletivas das vítimas do terror de Saddam Hussein, devidamente autorizado pelos Estados Unidos, comentário este que serviu como uma justificativa para a guerra no plano moral. Isso já era bem conhecido desde 1991, mas foi ignorado por razões de Estado. Uma relutante população dos Estados Unidos tinha de ser empurrada para um clima de guerra. A partir de setembro foram emitidos terríveis sinais sobre a ameaça que Saddam apresentava para os Estados Unidos e sobre suas ligações com a Al-qaeda, com insinuações claras de que ele estaria envolvido no ataque do 11 de Setembro. Muitas das acusações apresentadas aos media "não passavam no teste do riso", comentou o editor do Bulletin of Atomic Scientists , "mas quanto mais ridículas, mais os media se empenhavam em faze-las engolir como um teste de patriotismo. [7] A propaganda surtiu efeitos. Dentro de algumas semanas a maioria dos estadunidenses passou a considerar Saddam Hussein como uma ameaça iminente aos Estados Unidos. Quase a metade deles acreditou que o Iraque estaria por trás do terror do 11 de Setembro. O apoio à guerra estava relacionado a tais crenças. A campanha publicitária foi suficiente para dar à administração uma escassa maioria nas eleições, na medida em que os eleitores deixavam de lado suas preocupações imediatas e se acotovelavam debaixo do guarda chuva do poder, temendo o inimigo demoníaco.

O êxito da diplomacia pública foi mostrado quando Bush, nas palavras de um comentarista, “promoveu um poderoso grande final no estilo Reagan às seis semanas de guerra, no tombadilho do porta-aviões Abraham Lincoln no 1° de Maio”. Essa é provavelmente uma referência à orgulhosa declaração do presidente Ronald Reagan de que a América estava “a tornar-se mais alta” após a conquista de Granada, a capital mundial da noz moscada, em 1983, o que impediu que os russos a usassem para bombardear os Estados Unidos. Bush, como uma mímica de Reagan, sentiu-se livre para declarar, sem preocupação com o ceticismo em casa, que ele tivera uma vitória na guerra contra o terror ao remover um aliado da Al-qaeda. [8] Tornou-se irrelevante o fato de que nenhuma evidência confiável tivesse sido apresentada para a alegada ligação entre Saddam Hussein e seu acérrimo inimigo Osama bin Laden e que a acusação tivesse sido contestada também por observadores competentes. Também irrelevante foi a conexão conhecida entre a vitória e o terror: a invasão parece ter sido um enorme contratempo na guerra contra o terror, tendo aumentado o recrutamento da Al-qaeda, como admitem os oficiais estadunidenses. [9]

O Wall Street Journal reconheceu que a extravagância teatralmente ensaiada de Bush no porta-aviões “marca o início de sua campanha para reeleição em 2004”, que, segundo espera a Casa Branca, “será construída tanto quanto possível, dentro de temas referentes à segurança nacional”. A campanha eleitoral irá focar “a batalha do Iraque, não a guerra”, explicou o principal estrategista político republicano Karl Rove: “A guerra deve continuar, nem que seja para controlar a população interna”. [10]

O BOTÃO DO PÂNICO

Antes das eleições de 2002, Rove instruiu os ativistas do partido a se concentrarem nas questões de segurança, distraindo as atenções da população sobre a impopular política interna republicana. Tudo isso é uma reciclagem da política de Reagan. Foi assim que eles mantiveram o poder político durante seu primeiro mandato. Eles pressionavam regularmente o botão do pânico para evitar a oposição pública à política que deixou Reagan como o presidente vivo com maior rejeição em 1992, época na qual ele pode ter-se aproximado até mesmo do índice de Richard Nixon.

Apesar dos pequenos êxitos, a campanha de propaganda intensa deixou o público indiferente em campos fundamentais. A maioria continuou a preferir que as Nações Unidas conduzissem as crises internacionais ao invés dos Estados Unidos e um em cada dois preferiam que as Nações Unidas reconstruíssem diretamente o Iraque e não os Estados Unidos. [11]

Quando o exército de coligação fracassou na descoberta das armas de destruição em massa, a postura da administração dos Estados Unidos mudou da absoluta certeza de que o Iraque possuía tais armas para a posição em que “as acusações se justificavam pelos equipamentos que potencialmente poderiam ser usados para fabricar armas”. [12] Os oficiais mais antigos sugeriram então que se refinasse o conceito de guerra preventiva, de forma a autorizar os Estados Unidos a atacar qualquer país que “possua armas mortais em quantidade massiva”. Essa revisão sugere que “a administração agirá contra qualquer regime hostil que tenha a intenção e a habilidade para desenvolver armas de destruição em massa”. [13] Rebaixar o critério para o recurso à força é a conseqüência mais importante do colapso do argumento proclamado para a invasão.

Talvez a realização mais espetacular da propaganda tenha sido o elogio da visão de Bush ao querer levar a democracia ao Oriente Médio em meio às diversas manifestações de ódio e desprezo pela democracia. Isso é explicitado pela distinção feita em Washington entre a Velha e a Nova Europa, a primeira sendo vilipendiada e a segunda aclamada pela sua coragem. O critério de separação é nítido: A Velha Europa constitui-se de governos que tomaram a mesma posição que a maioria de sua população na questão da guerra com o Iraque, enquanto os heróis da Nova Europa seguiram as ordens de Crawford, Texas, desrespeitando, na maioria dos casos, a grande maioria de seus cidadãos que estavam contra a guerra. Comentaristas políticos falavam sobre a Velha Europa e suas doenças psíquicas enquanto o Congresso baixava ao nível da comédia vulgar.

No fim do espectro, o antigo embaixador dos Estados Unidos nas Nações Unidas, Richard Helbrooke, apontou para o “importante fato” de que a população de oito membros da Nova Europa é maior do que a da Velha Europa, o que provaria que França e Alemanha estavam “isoladas”. Assim é, a menos que desejemos sucumbir à heresia da extrema esquerda radical que acredita que a opinião pública deva ter algum papel na democracia. Thomas Friedman então recomendou que a França fosse removida dos membros permanentes do Conselho de Segurança, pois ela está “no jardim de infância e não brinca corretamente com os outros”. Segue-se então que a população da Nova Europa deve estar ainda no berçário, a julgar pelas sondagens. [14]

A Turquia foi um caso particularmente instrutivo. Seu governo resistiu à pesada pressão dos Estados Unidos para que mostrasse suas credenciais democráticas seguindo as ordens estadunidenses e contrariando 95% de sua população. A Turquia não cooperou. Os comentaristas norte americanos ficaram enfurecidos com essa lição de democracia, tanto que alguns começaram a divulgar crimes turcos contra os curdos na década de 1990, antes um tema tabu devido ao papel crucial dos Estados Unidos naquilo que aconteceu, embora essa divulgação ainda fosse cuidadosamente camuflada em lamentações.

O ponto crucial foi expresso pelo representante do secretário da Defesa, Paul Wolfowitz, que condenou os militares turcos por “não tomarem o papel de liderança como esperávamos” — isto é, eles nada fizeram para evitar que o governo turco honrasse a sua quase unânime opinião pública. Portanto, a Turquia teve que adiantar-se e dizer: “Nós cometemos um erro, vamos procurar descobrir como poderemos ser o mais prestativos possível para os americanos” [15] .
A posição de Wolfowitz foi particularmente informativa porque ele tem sido descrito como a figura de proa na cruzada da administração para democratizar o Oriente Médio.

A irritação em relação à Velha Europa tem raízes muito mais profundas do que apenas o desprezo pela democracia. Os Estados Unidos sempre encararam a unificação européia com alguma ambivalência. Em seu discurso Ano da Europa, 30 anos atrás, Henry Kissinger aconselhou os europeus a manterem suas responsabilidades regionais dentro da "estrutura total da ordem administrada pelos Estados Unidos”. A Europa não deve prosseguir o seu próprio curso independente, baseada no seu centro industrial e financeiro franco-germânico.

Os interesses dos administradores estadunidenses estendem-se agora também ao nordeste da Ásia, a região econômica mais dinâmica do mundo, com amplos recursos e economias industriais avançadas, uma região potencialmente integrada que pode também flertar com a ideia de desafiar a estrutura conjunta da ordem mundial, a qual tem de ser mantida permanentemente, pela força se necessário, como declarou Washington.


[*] Noam Chomsky é professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
Tradução de AM.


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NOTAS
(1) John Ikenberry, Foreign Affairs, Sept.-Oct. 2002.
(2) Wall Street Journal, 27 January 2003.
(3) Michael Gordon, The New York Times, 18 March 2003.
(4) Los Angeles Times, 23 March 2003.
(5) The New York Times, 7 June 1991. Alan Cowell, The New York Times, 11 April 1991.
(6) The New York Times, 4 June 2003.
(7) Linda Rothstein, editor, Bulletin of Atomic Scientists, July 2003.
(8) Elisabeth Bumiller, The New York Times, 2 May 2003; transcript, 2 May 2003.
(9) Jason Burke, The Observer, London 18 May 2003.
(10) Jeanne Cummings and Greg Hite, Wall Street Journal, 2 May 2003. Francis Clines, The New York Times, 10 May 2003.
(11) Program on International Policy Attitudes, University of Maryland, April 18-22.
(12) Dana Milbank, Washington Post, 1 June 2003
(13) Guy Dinmore and James Harding, Financial Times, 3/4 May 2003.
(14) Lee Michael Katz, National Journal, 8 February 2003; Friedman, The New York Times, 9 February 2003.
(15) Marc Lacey, The New York Times, 7/8 May 2003.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

19/Ago/03