Fundamentos ideológicos da presente guerra mundial: Nas raízes do consenso popular

por Giulio Girardi [*]

Fundamentos ideológicos da presente guerra mundial:
Nas raízes do consenso popular
O consenso popular à guerra, problema crucial

I- PONTO DE VISTA E PROJECTO HISTÓRICO DO PODER DOS EUA
Bush: o discurso do 20 de Setembro de 2001
Declaracão de guerra
A base do consenso nacional
A solidariedade internacional
Identificação do inimigo
Proclamacão da guerra santa
A teología do destino manifesto, projecto de grandeza imperial dos Estados Unidos

II- PONTO DE VISTA E PROJECTO HISTÓRICO DO INTEGRALISMO TERRORISTA ISLAMICO
“Integralismo religioso” e “terrorismo”
O integralismo terrorista de Bin Laden
A política norte-americana em relação ao Islão: imperialista e terrorista
Retorsão da acusação de terrorismo contra os Estados Unidos
Terrorismo e imperialismo em relação aos países islamicos: Arabia Saudita, Palestina, Iraque, etc.
Ofensiva contra o conjunto do mundo islamico
A jihad, guerra de libertação e de afirmação do Islão
A jihad , terrorismo legítimo e necessário
A jihad, dever religioso fundamental
A jihad , guerra contra o imperialismo com os seus mesmos métodos
O ponto de vista do oprimido-opressor

III-COMPARAÇÃO ENTRE OS DOIS PROJECTOS HISTÓRICOS E OS DOIS TERRORISMOS
Dois projectos em contraste radical
Dois projectos com profundas afinidades
Entre os dois projectos imperiaies será inevitável a tomada de partido?
O ponto de vista dos oprimidos e das oprimidas como sujeitos alternativos
Mobilizações contra o neoliberalismo e contra os terrorismos
Algumas pistas de busca

CONCLUSÃO NÃO CONCLUSIVA:
POR UMA INSURREIÇÃO DA CONSCIÊNCIA MUNDIAL CONTRA OS TERRORISMOS


O consenso popular à guerra, problema crucial

Painel na nova Igreja de S. Maria de Los Angeles, Manágua, Nicarágua, obra promovida por Giulio Girardi Para entender o que se está a passar no mundo e qual é em particular o sentido desta guerra, para entender o que está a mudar e o que não está a mudar na história, gostaria de experimentar um caminho: o de explorar as ideologias em que se inspiram os protagonistas, que são o poder norte-americano com os seus aliados, representado por George W. Bush e o integralismo islâmico terrorista, representado por Osama bin Laden. Chamando a atenção para os factores ideológicos da guerra não pretendo, naturalmente, considerá-los como a sua explicação adequada; o papel dos factores políticos e económicos continua a ser decisivo. Contudo, a exploração das ideologias parece-me importante para entender o polo subjectivo da guerra, ou seja, as motivações explícitas e o consenso popular que a sustentam pelos dois lados. Esta exploração teria em primeiro lugar que permitir-nos entender porque grandes massas humanas estão a enfrentar-se e a massacrar-se, porque em ambos os campos grupos numerosos estão dispostos a arriscar a vida por uma causa que consideram justa e até mesmo santa.

Entretanto, este enfoque parece-me interessante também por uma razão oposta. Ele teria que permitir-nos perceber não só o que os combatentes dos dois campos vêm como também as razões pelas quais não vêm realidades que a um observador externo são evidentes; porque, por outras palavras, análises e avaliações que para um observador externo parecem evidentemente equivocadas podem contar com um consenso maciço.

Queremos pois referir-nos às ideologias no seu duplo sentido de iluminação da realidade e de ocultação da mesma. É um problema epistemológico aparentemente abstracto, mas na realidade extremamente concreto porque se refere a um dos aspectos mais decisivos e profundos da guerra, ou seja, o consenso majoritário com o qual, apesar do sacrifício de inocentes que vai perpetrando, ela conta em ambos os lados. É um problema política e tragicamente central, o da cumplicidade inconsciente entre as vítimas e os seus verdugos.

A importância do problema do consenso encontra uma importante confirmação numa interpretação da guerra que considero bastante convincente: a guerra representa para o Estados Unidos e os demais governos ocidentais a maneira de reconstruir o consenso no processo de globalização neoliberal que agora está a atravessar uma crise profunda.

Esta interpretação explicaria a cumplicidade com o crime do 11 de Setembro que observadores bem informados atribuem às autoridades norte-americanas: elas ter-se-iam omitido frente às muitas chamadas de atenção que lhes haviam dirigido vários serviços de inteligência.

Este enfoque constitui também a premissa de que é necessário partir para enfrentar a pergunta decisiva: será inevitável, como muitos afirmam, no ocidente e no integralismo islâmico, tomar partido por um lado ou por outro? É inevitável, como se afirma no ocidente, tomar partido “pela democracia ou pelo terrorismo”, “pela civilização ou pela barbárie”, ou existe caminho alternativo? E, neste caso, qual é o seu conteúdo positivo?

Se, além disso, como me parece evidente, as duas ideologias que se enfrentam cumprem uma função de ocultação e deformação da realidade, impõe-se a pergunta: existe um ponto de vista sobre a história que permita uma aproximação maior à realidade dissipando as névoas ideológicas?

Finalmente, exploração dos fundamentos ideológicos da guerra e do consenso de que ela goza é o ponto de partida necessário de qualquer estratégia alternativa. Questionar a guerra significa pois em primeiro lugar erradicar o consenso popular em que ela se baseia e fortalecer o grito insurreccional da consciência mundial contra ela. Penso então que sobre este problema crucial haveria que chamar com veemência a atenção do Fórum Social Mundial de Porto Alegre.

Tentaremos portanto analisar o ponto de vista do poder norte-americano e ocidental e o ponto de vista do integralismo terrorista islâmico a fim de nos interrogarmos a seguir sobre a possibilidade de um ponto de vista alternativo aos dois.

Acrescentaremos depois algumas reflexões destinadas a questionar o integralismo católico e denunciar a sua responsabilidade na génese de outros integralismo religiosos, como o islâmico. Penso pois que um dos mais radicais questionamentos do consenso à guerra e das mais importantes contribuições à paz deve proceder uma nova relação entre as religiões: de diálogo, colaboração e fecundação mútua. Relação que só se tornará possível se cada religião abandonar a pretensão ser a única verdadeira e descobrir a riqueza das outras.

I- PONTO DE VISTA E PROJECTO HISTÓRICO DO PODER DOS EUA

O ponto de vista do poder norte-americano é evidentemente o que domina o sistema político e informativo mundial. Ele se exprime nos discursos e nas decisões das autoridades norte-americanas, do governo e das câmaras, dos aliados ocidentais, da NATO, etc. No que se refere mais directamente à Itália, exprime-se nos discursos e nas decisões das autoridades italianas, da presidência da república, do governo, das câmaras, etc. Às razões objectivas que indubitavelmente fundamentam esta tomada de partido, acrescenta-se a convicção de que só assumindo o ponto de vista dos grandes a Itália poderá sentar-se, hoje e amanhã, à mesa dos grandes; e o actual governo poderá conquistar, na Itália e no estrangeiro, a credibilidade que até agora lhe faltou.

Este ponto de vista encontra-se reflectivo e argumentado pela grande maioria dos meios de comunicação social dos Estados Unidos e dos países aliados. Dele compartilha a grande maioria do povo norte-americano e dos outros povos ocidentais (dentre eles o italianos); e é este consenso que permite às autoridades proceder com tanta segurança. Aquilo que da minha parte considero particularmente importante e preocupante é que este ponto de vista é compartilhado também por quase todos os partidos e movimentos de esquerda: eles entenderam que só conformando-se com as opções do poder norte-americano e ocidental poderão conservar o poder em seus países ou reconquistá-lo se o perderam. Inclusive se estas tomadas de partido provocam, para a esquerda e para muitos dos seus militantes, uma dramática crise de identidade, uma série angustiante de interrogações sobre o sentido da sua militãncia.

Contudo, não seria legítimo identificar simplesmente o ponto de vista do poder norte-americano com o do povo norte-americano, nem o ponto de vista dos governos ocidentais com o dos seus povo. Existem pois nos países ocidentais e nos próprios Estados Unidos consistentes minorias que se caracterizam como "antagónicas" e cujo ponto de vista contrapõe-se ao ponto de vista dominante quer a respeito da globalização neoliberal quer a respeito do terrorismo. Estas minorias, Estas minorias recusam o dilema "ou com os Estados Unidos ou com os terroristas" e acreditam na possibilidade de trilhar um caminho alternativo. Acerca da análise do seu ponto de vista, no qual, por minha parte, reconheço-me, teremos que retornar.

Bush: o discurso do 20 de Setembro de 2001

Queremos, entretanto, explorar com mais precisão o ponto de vista do poder norte-americano a respeito do terrorismo. Fa-lo-emos tomando como base o discurso pronunciado por George W. Bush a 20 de Setembro de 2001, no qual o presidente formulou sua declaração de guerra ao terrorismo e esclareceu seu sentido. Muitos comentadores qualificaram este discurso, logo a seguir, como o mais importante da presidência Bush. A BBC considerou-o inclusive como o mais significativo pronunciado por um presidente americano após a segunda guerra mundial.

O discurso foi pronunciado na sede mais solene possível, o Capitólio, frente às duas Câmaras do Congresso, à maioria dos membros do governo, aos presidentes das municipalidades de Nova York e de Washington. Foi interrompido 29 vezes por aplausos "bipartidários", ou seja, dos republicanos e dos democratas. Segundo alguns inquéritos realizados imediatamente depois, o consenso popular que conquistou chegava a 90%. Além das autoridades e do povo dos Estados Unidos, Bush dirigia-se à comunidade internacional. Com esta intervenção o presidente, cuja eleição fora tão problemática, afirmou a sua autoridade como intérprete da consciência nacional e como símbolo de unidade, candidatando-se ainda a líder mundial.

A consciência do clima de crise e de terror em que o discurso foi pronunciado reflectia-se também nas medidas extraordinárias de segurança que envolviam a assembleia: helicópteros e aviões de caça que sobrevoavam o Capitólio, e um controle severo dos acessos. Durante o discurso o vice-presidente Dick Cheney permaneceu num lugar seguro e secreto em outra parte da capital.

Declaração de guerra

O objecto fundamental do discurso foi, como assinalámos, a declaração de guerra. "Convoquei os militares, proclamou o presidente, a ficarem em estado de alerta. A hora em que os Estados Unidos actuarão aproxima-se". Na realidade, os Estados Unidos haviam declarado oficialmente o estado de alerta máximo. O presidente havia autorizado a chamada às armas de 50 mil reservistas.

Para Bush, a análise dos factos que justificavam a declaração de guerra era muito simples. Os EUA foram objecto de um ataque covarde por parte do terrorismo internacional que, após a derrubada do comunismo, configura-se como o novo "inimigo principal". Caracterizando o ataque terrorista como o início da primeira guerra do milénio, Bush anunciou que guerra será, uma guerra longa, dura e difícil, diferente de todas as anteriores; guerra na qual os EUA sentem-se agredidos e não agressores, vítimas e não culpados; uma guerra defensiva, e portanto legítima e obrigatória.

O objectivo da guerra é defender a liberdade, a democracia e a civilização, é restaurar a justiça; é romper e derrotar a rede global do terror. "Somos um país que acordou frente ao perigo e que está clamando pela defesa da liberdade. Se levarmos nosso inimigo à justiça ou nossa justiça ao inimigo, justiça se fará". Estes objectivos foram expressos nos termos em que será denominada a empresa: "justiça infinita" e "liberdade permanente".

Para tais objectivos, a potência mais forte do mundo compromete-se a investir todos os seus meios: "Empregaremos todo recurso sob nosso comando, cada medida diplomática, da instrumento de inteligência, cada instrumento de segurança pública, cada influência financeira e cada arma de guerra". Numa palavra, o fim justifica todos os meios.

A base do consenso nacional

Nos seus projectos de guerra, Bush sente-se apoiado por todo o país. Pela opinião pública indignada, que pede vingança, e que, segundo os inquéritos, é favorável a uma resposta militar, inclusive se ela provocar vítimas na população civil (vítimas, observo eu, tão inocentes como as norte-americanas, e talvez mais).

Bush também conta com o apoio unânime, bipartidário, do Congresso, que o autoriza a tomar as iniciativas oportunas e que põe à sua disposição para este objectivo somas excepcionalmente elevadas. O Congresso havia aprovado por unanimidade uma resolução que autorizava o uso da força militar. Também havia aprovado um pacote de emergência de 40 mil milhões de dólares para financiar acções antiterroristas e operações de resgate e recuperação dos edifícios destruídos, o dobro do montante que havia pedido o Presidente.

A solidariedade internacional

O ataque terrorista, observou Bush, golpeou os EUA não como um país particular e sim como país líder de uma aliança internacional que governo o mundo, inspirando-se nos princípios do neoliberalismo. O objecto da globalização neoliberal, que o atentado perseguia, estava claramente indicado pelas Torres Gémeas do Centro Mundial do Comércio. Assim, o terrorismo golpeou os EUA como símbolo da civilização ocidental.

Portanto, o destinatário desta mensagem era todo o mundo. "O desastre da semana passada, declarou o presidente, afectou todo o mundo, não só pelo ataque contra a liberdade como também pelos mortos de mais de 80 países, que incluem "homens e mulheres de El Salvador, Irão, México e Japão". Portanto, esta é uma luta do mundo, uma luta pela civilização... Instamos todas as nações a ajudar-nos"... Dirigindo-se à "comunidade internacional", Bush exprimiu sua gratidão àqueles países que haviam concordado em apoiar os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, advertiu o mundo de que nesta guerra não era possível neutralidade: "estão connosco ou com os terroristas". Além disso, "sabemos que Deus não é neutro".

Concretamente, ele podia contar com o apoio da NATO, que pela primeira vez nos seus 52 anos de vida activara a cláusula de defesa comum, ou seja, ou artigo pelo qual se um dos membros da organização for agredido, todos se consideram agredidos. Ele havia conseguido além disso o apoio oficial de duas nações chave, o Paquistão e a Arábia Saudita, cuja importância estratégica para uma acção bélica é evidente. Procura finalmente o apoio dos países árabes que haviam colaborado com os EUA nas suas guerras anteriores. Estava a negociar por fim a "viragem" da aliança com os inimigos históricos, protagonistas do antigo "reino do mal", Rússia e China, que ele, no seu compromisso apostólico, conseguiu converter ao "reino do bem".

O secretário de Estado afirmou que a partir de agora Washington julgaria a nações pela sua vontade de colaboração. Isto converteu-se, afirmou, numa nova maneira de medir a relação: e o grau de cooperação dos países afectará a assistência futura de Washington. Um dilema dramático para a consciência dos países islâmicos.

À comunidade internacional, Bush dirigiu uma advertência categórica: "nesta guerra não é possível neutralidade, ou connosco ou com os terroristas". Sabemos, além disso, que "Deus não é neutro". O mesmo Deus tem que entender que se quiser continuar a ser Deus, tem que tomar partido claramente ao lado do bem, ou seja, ao lado de Bush.

Identificação do inimigo

A identificação do objectivo implica a identificação do novo inimigo principal. No imediato indicava-se o milionário Osama Bin Laden e a rede terrorista internacional que ele dirige e financia, Al Qaeda. Mas a guerra norte-americana pretende golpear todas as organizações terroristas do mundo e os governos que as apoiam. Bush caracteriza estas organizações como uma "rede", termo que lhe atribui uma certa unidade e coordenação mundial, reconhecendo ao mesmo tempo que elas não são facilmente localizáveis. Entende-se assim porque esta guerra será diferente das outras, nas quais o inimigo era um Estado ou um conjunto de Estados, claramente localizados. Compreende-se porque esta guerra será previsivelmente muito longa.

A Al Qaeda, a organização terrorista mundial dirigida por Bin Laden, parece particularmente forte e eficiente nos próprios EUA, onde havia preparado tranquilamente os ataques com um alto nível tecnológico e onde havia podido actuar, pelo menos por um ano, sem ser detectada pelo FBI. É certo que Bin Laden nega toda participação nos atentados, mas conhecem-se suas declarações públicas, que anunciavam um ataque sem precedentes aos interesses norte-americanos; também é conhecida sua responsabilidade em actos anteriores de terrorismo anti-norte-americano, particularmente no bombardeio do World Trade Center.

Ao regime talibã Bush apresentou como exigência "inegociável" que entregasse Bin Laden e todos os terroristas que actuavam no seu país, que desmantelassem os seus acampamentos e abrissem o país à autoridades dos EUA, permitindo-lhes verificar se cumprira essas exigências. "O talibã tem que actuar e actuar imediatamente, tem que entregar os terroristas ou compartilhar o seu destino". Posteriormente Bush recusará categoricamente o pedido dos talibãs, os quais exigiam as provas das suas acusações. A palavra do império tinha que ser suficiente garantia de verdade para todos.

O presidente precisou entretanto que o inimigo são os terroristas e não o mundo islâmico nem o mundo árabe. "O inimigo dos Estados Unidos não são nossos muitos amigos muçulmanos, não são nossos muitos amigos árabes. Nosso inimigo é uma rede radical de terroristas e todos os governos que a apoiem". "Respeitamos o povo do Afeganistão mas condenamos o regime talibã".

Além disso, neste discurso, Bush evitou a expressão "cruzada", que havia utilizado antes. Mas não evitou a satanização do inimigo. Trata-se para ele de assassinos, "herdeiros de todas as ideologias assassinas do século XX. Ao sacrificar vida humanas para servir suas visões radicais, ao abandonar todos os valores com excepção do desejo de poder, seguem o caminho do fascismo, do nazismo e do totalitarismo. E eles vão a seguir nesse caminho, na sepultura da história das mentiras descartadas".

Esta frequente aproximação entre os grupos terroristas e os Estados totalitários permite a Bush encontrar nas guerras contra o nazismo, o fascismo e comunismo os antecedentes e a justificação da sua guerra anti-terrorista.

Mas qual é o motivo de um comportamento tão abjecto? Bush não se preocupa muito por aprofundar a questão, apesar da sua importância decisiva. Sua resposta é muito simples. A motivação dos terroristas, além da vontade de poder, é o ódio, ódio à democracia e à liberdade. Eles "odeiam o que vêm aqui nesta Câmara: um governo democraticamente eleito. Odeiam-nos por nossas liberdades". Falta na sua análise qualquer tentativa de explorar as razões deste ódio, atribuído unicamente à perversão daqueles que o cultivam. Falta qualquer suspeita de que na génese do ódio os Estados Unidos possam ter alguma responsabilidade com a sua política, com a sua vontade de dominação, e muito menos com os seus crimes.

Falta, além disso, nesta identificação do inimigo, uma definição do terrorismo. Os EUA reservam-se o direito de decidir quais são no mundo as organizações terroristas. Não é difícil prevê que qualquer grupo inconformado com a política norte-americana e com a globalização neoliberal, qualquer pessoa, grupo ou organização que se recuse a submeter-se ao pensamento único poderá ser caracterizado como "terrorista" e condenado como tal. Os aliados dos EUA nesta guerra, a Rússia ou a China por exemplo, reivindicarão por sua vez o direito de decidir quem são, em relação a eles, os terroristas, e de denunciar como tais povos que lutam pela sua liberdade. Tão pouco faltarão, na Itália e em outros países ocidentais, aqueles que denunciarão como terroristas todos os chamados "no-global", ou seja, os que se rebelam contra a lógica da globalização neoliberal e estão comprometidos com a busca de uma alternativa.

Proclamação da guerra santa

Apesar de Bush haver excluído que os inimigos sejam os muçulmanos e que a guerra seja uma cruzada, sua declaração de guerra e sua caracterização ética do inimigo, bando de assassinos movidos pela inveja e pela vontade de poder, imprime à guerra os traços de um enfrentamento mundial entre o bem e o mal, que prolonga e actualiza o do século XX, com o comunismo ateu como reino do mal; um conflito entre o bem e o mal, entre a civilização e a barbárie, entre a liberdade e o totalitarismo. Um conflito frente ao qual todos os povos e todas as pessoas do mundo são chamadas a tomar partido.

Proclamando além disso que "Deus não é neutro", Bush afirma solenemente que o ponto de vista de Deus coincide com o seu, e com o do poder ocidental. Esta convicção permitirá aos estrategistas da guerra denominá-la, num primeiro momento, "justiça infinita". Nesta perspectiva, portanto, o conflito não apenas ético, entre o bem e o mal, é também religioso, entre Deus e seus inimigos. A palavra "cruzada" desapareceu, mas a substância do seu sentido permanece intacta.

Por outro lado, os talibãs reagirão interpretando a declaração como um pretexto para destruir o sistema islâmico, e solicitando aos muçulmanos de todo o mundo que se comprometam na guerra santa. Um alto dirigente do grupo islâmico Hamas, fazendo-se eco do movimento talibã, a partir de Gaza instou todos os muçulmanos a unirem-se contra uma possível represália. Assim a guerra esteve a assumir os traços de uma cruzada do ocidente capitalista cristão contra o Islão.

O ponto de vista dos EUA exprime tipicamente a necessidade que tem o poder opressor de esconder e de esconder de si próprio a realidade da violência que pratica. A cegueira do dominador é uma consequência necessária da sua violência. Por ser o país mais comprometido em relações de dominação, os EUA são também um dos mais cegos do mundo. Uma cegueira produzida por sua ideologia. Esta o impede de tomar consciência da sua responsabilidade na génese do terrorismo mundial. Impede-o de perceber a ineficácia e o perigo das ofensivas militares contra o terrorismo. Impede-o de ter a vontade e a capacidade de entender as motivações do seu inimigo. Permite-lhe exigir com arrogância que as pessoas tomem partido, com ele ou com o terrorismo, sem suspeitar que possa existir um ponto de vista alternativo, ao mesmo tempo, à sua violência criminosa e à dos terroristas.

O apoio majoritário do povo norte-americano aos projectos guerreiristas de Bush mostra, entretanto, que o próprio povo compartilha esta ideologia e esta cegueira. O mesmo se pode dizer, também, para os aliados incondicionais.

A teologia do destino manifesto, projecto de grandeza imperial dos Estados Unidos

Para apreender com profundidade os pressupostos ideais do actual conflito militar, vale a pena evocar a teologia do destino manifesto do povo norte-americano. Esta teologia, lançada em 1879 por John Fiske, teve um enorme impacto em todo o país, possivelmente porque interpretava e ainda interpreta aspirações profundas da população e alimenta o orgulho nacional. Ela fundava o projecto de grandeza daquela nação que nascia. Projecto imperial que ela, não o esqueçamos, havia herdado da Europa, e directamente da sua mãe pátria, a Grã Bretanha.

Agora, este projecto tem um duplo fundamento, económico e ideológico. No terreno económico, a nova sociedade americana herda a mentalidade mercantil e empresarial da Grã Bretanha, pátria do capitalismo. Percebe na expansão externa a condição essencial da prosperidade interna. The principle of our institutions is expansion (o princípio das nossas instituições é a expansão) proclamava naqueles anos o ministro de assuntos exterior Everett. A independência conseguida não significava o abandono daquela tradição, e sim o seu fortalecimento no âmbito do "nosso nascente império americano" ( our rising american empire).

O expansionismo económico junta-se a uma visão messiânica da sociedade nascente, como povo eleito, novo Israel, chamado a instaurar nas terras conquistas uma nova humanidade e, em perspectiva, a hegemonizar o mundo. Não penso, naturalmente, que todos os dirigentes norte-americanos conheçam esta teologia e que nela inspirem as suas grandes opções. Ela, contudo, exprime claramente a convicção e o orgulho do povo norte-americano de ser chamado pela Divina Providência a cumprir na história um destino excepcional. Sinal evidente desta missão é exactamente, a seus olhos, a convergência entre a superioridade da força económica, política e militar do seu país e a superioridade dos valores ocidentais de liberdade e democracia, que ele representa e que se sente chamado a defender por todos os meios.

A leitura dos acontecimentos actuais sob este ponto de vista é a de um povo que vê ameaçado seu destino manifesto e os valores que tem a missão histórica de defender. Ele sente portanto não só o direito como também o deve de reafirmar o seu destino, pondo ao serviço dos valores ocidentais toda a sua força económica, política e militar. Os valores ocidentais representam o reino do bem e os seus inimigos, nas várias épocas, o reino do mal. O conflito no qual se joga o sentido da história é justamente aquele que opõe o bem ao mal. O triunfo dos EUA e dos seus aliados ocidentais é o triunfo do bem. No novo milénio, as forças do bem continuam a ser representadas pela aliança ocidental hegemonizada pelos EUA; as forças do mal estão representadas pela rede terrorista mundial e pelos países que a protegem.

Neste contexto, o imperialismo económico dos EUA é não só justificado como também idealizado. Ele prolonga e consolida o ideal cristão que justificou a conquista e a colonização da América. Prolonga e consolida a construção daquela civilização, chamada ocidental cristã, fundada sobre relações de dominação. Prolonga e consolida a construção daquela civilização, cuja origem está marcada por um crime de lesa humanidade, o genocídio físico, cultural e religioso dos povos indígenas. Prolonga e consolida a construção daquela civilização criminosa que pretende hoje impor-se, inclusive pelas armas, como o reino do bem.

Entretanto, os dirigentes e o povo dos EUA são orgulhosos da sua história e do seu poder. Orgulho que a espantosa agressão de que foram vítimas os obriga a reafirmar. Agora, este orgulho os pressiona a evidenciar unicamente o aspecto positivo, glorioso, da sua expansão e a esconder aos outros e a si próprios o preço de sangue e de injustiça que ela custou às suas vítimas.

A ideologia do destino manifesto também permite entender o papel que o processo de globalização neoliberal assume para os EUA. Este processo, que atribui à liberdade de mercado o papel de lei suprema da economia e da história, tem origem numa decisão política das grandes potências ocidentais, a começar pelos EUA de Ronald Reagan e pela Grã Bretanha de Margaret Thatcher. Apesar de afirmar a supremacia do mercado financeiro capitalista na organização do mundo, este processo de facto subordina a economia mundial à política das grandes potências, particularmente do imperialismo norte-americano. Este imperialismo apresenta-se como a expressão da modernidade e do progresso, escondendo o seu carácter injusto e violento por trás da máscara da ideologia.

A análise do ideal e da prática imperialista dos Estados Unidos permite compreender as razões profundas do chamado "antiamericanismo", que o pensamento único designa com uma série de qualificações como "emotivo", "preconcebido", "marxista vetusto", "amanhecido", etc, considerando-o então carente de qualquer fundamento objectivo, culpável, pelo contrário, por ignorar a contribuição que os EUA concederam e concedem à liberdade da Europa, lutando contra o nazismo, o comunismo e agora contra o terrorismo. A ideia de que este "antiamericanismo" é na realidade expressão de "anti-imperialismo" está totalmente ausente do pensamento único neoliberal, que eliminou da sua análise a categoria de imperialismo capitalista, reconhecendo só, no passado, a existência do imperialismo soviético.

Estas premissas preparam-nos para entender as razões do terrorismo que golpeou os Estados Unidos. Ele não era pois dirigido apenas contra os símbolos do poder norte-americano e sim, mais precisamente, contra os símbolos do imperialismo nas suas dimensões económica, política e militar.


II- PONTO DE VISTA E PROJECTO HISTÓRICO DO INTEGRALISMO TERRORISTA ISLÂMICO [1]

“Integralismo religioso” e “terrorismo”

Parece-me útil, por precisão, distinguir o sentido dos termos "integralismo religioso" e "terrorismo", para depois evidenciar a relação entre eles. O integralismo religioso (islâmico, hebraico, cristão, etc) é um método hermenêutico, uma doutrina e uma prática. O método hermenêutico integralista é uma interpretação do livro sagrado, rigorosamente aderente à letra do texto, que rechaça assim as contribuições da ciência e do espírito crítico. A doutrina integralista é a que se considera a única verdade revelada, chamada então por Deus para converter-se na religião universal da humanidade. No terreno prático , a religião integralista atribui-se a si própria o papel de norma necessária e exclusiva, com seu sistema de valores, de vida pessoal e social: questiona portanto a legitimidade quer de uma organização laica da sociedade quer do pluralismo religioso.

O integralismo atribui portanto à sua religião o direito-dever de defender-se, de impor-se e de propagar-se. Entretanto, converte-se em "terrorista" quando este direito-dever pensa poder exercer-se, por disposição divina, recorrendo inclusive à violência física e militar, quando implica também o direito-dever da vingança. Neste sentido, parece-me, caracteriza-se o integralismo de bin Laden. Contudo, existem sem dúvida forma de integralismo islâmico não terrorista, assim como existem hoje (e têm uma posição dominante) integralismos católicos não terroristas, ainda que o próprio integralismo católico tenha sido terrorista durante séculos.


O integralismo terrorista de Bin Laden

Em relação ao integralismo terrorista de Bin Laden, a condenação foi unânime, não dos Estados Unidos e dos governos do ocidente, que aderiram à guerra, como também da parte daqueles sectores que por toda a parte do mundo questionam a validade da guerra como resposta ao terrorismo. Só então uma atitude sectária poderá qualificar a recusa à guerra como conivência com o terrorismo.

Entretanto, é compreensível a pergunta que os promotores da guerra colocam aos que questionam sua validade para erradicar o terrorismo: qual é então a vossa resposta ao terrorismo? O pressuposto da pergunta é muito claro: para responder com eficácia ao terrorismo não existem estratégias diferentes da guerra. Por isso, a recusa à "guerra infinita" converte-se em conivência com o terrorismo.

Trata-se, de qualquer forma, de uma pergunta muito exigente, que não podemos evitar e que nos conduz a desencadear uma ampla busca popular e participativa. Mas esta busca tem que partir de uma análise profunda do terrorismo islâmico e das suas razões. Portanto, só entendendo sua natureza e sua génese poderemos decidir como derrotá-lo. Os dirigentes norte-americanos e ocidentais até agora não entenderam, parece-me, a importância desta análise para elaborar uma adequada estratégia de resposta. Contentaram-se em desqualificar os terroristas, descrevendo-os como malvados, diabólicos, psicopáticos, exaltados, loucos, fanáticos, bárbaros, assassinos, como inimigos da civilização, da liberdade, da democracia, movidos por um ódio injustificado e irracional contra o ocidente e contra a modernidade. Esta leitura permite aos ocidentais interpretar sua reacção como uma guerra defensiva, como uma forma de legítima defesa; evita-lhes a necessidade de interrogarem-se sobre suas responsabilidades na génese do terrorismo e sobre o que seria preciso mudar na sua política para derrotá-lo.

Parece-me necessário, em alternativa, entender porque esta acção terrorista conta com um consenso popular tão forte, ainda que minoritário, porque ela suscita uma mitologização da figura de Bin Laden, porque milhares de pessoas, no Paquistão por exemplo, mobilizaram-se para lutar ao lado dos talibãs, porque esta luta pode contar com o sacrifício da vida de tantas pessoas; porque o próprio Bin Laden abandonou as comodidades e a segurança oferecidas por uma das famílias mais ricas do mundo a fim de dedicar-se a um empreendimento tão arriscado e louco.

Na exploração destas motivações, os ocidentais têm que reconhecer os limites do nosso conhecimento do Islão, que se afirmou de repente como protagonista na cena mundial. As interpretações que vou expor devem ser entendidas mais como pautas de investigação do que como explicações; como uma pequena contribuição para aquela busca participativa que considero essencial desenvolver, e que, além disso, já está em andamento.

Para entender o ponto de vista do integralismo islâmico terrorista temos que começar por ouvir os discursos, as ameaças, os apelos de Bin Laden, sem desqualificá-los previamente como "delirantes", e perguntando-nos antes de onde retiram sua eficácia mobilizadora e exaltante para tantos muçulmanos. Uma coisa deve ficar clara: esforçar-se por compreender as razões de Bin Laden não significa de modo algum justificar sua estratégia sanguinária; além disso, valorizar o ponto de vista de Bin Laden não significa atribuí-lo ao Islão no seu conjunto, e sim unicamente àqueles sectores que compartilham a estratégia terrorista. Penso, pelo contrário, que a colaboração de muçulmanos não integralista é essencial — por um lado, para isolar os terroristas, por outro para desenvolver aquela busca de uma civilização multiétnica, multicultural e multireligiosa, que é a única alternativa autêntica aos terrorismos.

Para entender o sentido que Bin Laden e seus partidários atribuem à sua luta e identificar assim as raízes do terrorismo islâmico temos que partir da sua análise da política norte-americana em relação ao Islão e descobrir na rebelião contra esta política a justificação e até a sacralização do terrorismo.

A política norte-americana em relação ao Islão: imperialista e terrorista

Retorsão da acusação de terrorismo contra os Estados Unidos

No centro desta análise está uma vigorosa retorsão da acusação de terrorismo contra os Estados Unidos e o seu cúmplice principal, o Estado de Israel. "Os americanos nos denunciam como terroristas. Mas eles são os maiores terroristas da história" (p. 93). "Os cruzados continuam massacrando nossas mães, nossas irmãs e nossas crianças. Contudo eles, com os seus meios maciços de comunicação, acusam-nos de terrorismo" (p. 94). "Os Estados Unidos estabeleceram um novo slogan, chamando 'terroristas' a todo os que decidiram enfrentar sua injustiça. Querem ocupar nossos países, roubar nossos recursos, impor-nos autoridades e orientações políticas não fundamentadas na revelações de Deus... Se não estamos de acordo, dizem que somos terroristas" (p. 99). "Para qualquer lado que dirijamos nosso olhar, vemos os Estados Unidos como líder do terrorismo e dos crimes do mundo. Os Estados Unidos não consideram um acto de terrorismo lançar uma bomba atómica sobre países longínquos a milhares de quilómetros. Tais bombas foram lançadas contra nações inteiras, incluindo mulheres, crianças e anciãos, e até hoje, no Japão, restam marcas daquelas bombas" (p. 99-100).

Terrorismo e imperialismo em relação aos países islâmicos: Arábia Saudita, Palestina, Iraque, etc.

O terrorismo e o imperialismo norte-americano que Bin Laden denuncia com particular virulência é o que golpeia inúmeros países islâmicos. Em relação a eles, o imperialismo norte-americano representa uma "intrusão sacrílega" (p. 105). Eles são vítimas de agressão militar, de exploração e usurpação económica, de ataques à hegemonia e aos valores do Islão. Esta reacção não deveria causar estranheza aos cristãos que recordassem as cruzadas pela libertação do santo sepulcro das mãos dos infiéis, o valor espiritual que a igreja reconheceu a estas lutas, a recompensa eterna que assegurou aos caídos; tão pouco deveriam causar estranheza aos cristãos conscientes das profundas ambiguidades daquelas façanhas.

Bin Laden é particularmente sensível à invasão norte-americana da sua pátria, terra dos lugares sagrados do Islão. "O governo americano ofendeu 1,2 mil milhões de muçulmanos ao ocupar o solo sagrado onde está a Meca dos muçulmanos. Nenhum poder imperialista no mundo jamais se havia comportado assim" (p. 95-96). "A última e maior das agressões que os muçulmanos sofreram desde a morte do Profeta é a ocupação da terra dos lugares santos, as bases da casa do Islão, o lugar da revelação, a fonte da mensagem, por parte do exército dos cruzado americanos e dos seus aliados" (p. 120-121). "Há mais de sete anos os Estados Unidos ocupam a terra do Islão no mais sagrados dos lugares, a península arábica, saqueando e dando ordens aos seus governantes, humilhando o seu povo, aterrorizando os seus vizinhos e transformando suas bases na península em vanguardas para atacar os povos islâmicos próximos" (pg. 138). "Aos cruzados não lhes foi permitido ocupar a terra dos dois lugares sagrados... Nossa terra foi enchida de bases militares dos Estados Unidos e dos seus aliados. Ao invés de motivar o exército, o pessoal de guarda e de segurança a oporem-se aos ocupantes, o regime utilizou estes homens para proteger os invasores, aumentando assim a humilhação e a traição" (p. 129). "Os cidadãos conhecem a verdade, ou seja, que o nosso país converteu-se numa colónia norte-americana e decidiram escorraçar os americanos da terra santa... Eles sabem que o nosso país é o maior produtor de petróleo do mundo... e que a ocupação do solo saudita tem como único objectivo subtrair riqueza do povo em benefício dos americanos" (p. 105-106). "Ao actuar assim, os americanos provocaram a imensa cólera do povo saudita" (p. 105).

Da denúncia da ocupação norte-americana não se pode separar, segundo Bin Laden, a condenação do próprio regime saudita, culpado de haver acolhido as tropas ocupantes: "O regime saudita, cometendo o imperdoável error de acolher as tropas militares americanas, manifestou toda a sua duplicidade. Concedeu apoio às nações que lutam contra os muçulmanos" (p. 105). Este comportamento provoca a excomunhão do regime: "Ao ser leal ao regime norte-americano, o regime saudita cometeu um acto contra o Islão. E isto, com base na jurisprudência islâmica, a sharia , põe o regime fora da comunidade religiosa" (p. 106).

"É evidente que não existe nenhum dever mais importante que o de lançar o inimigo americano fora da terra santa... Não há outro dever, depois da fé, senão lutar contra o inimigo que está a corromper a vida e a religião... Se não há outra maneira de rechaçar o inimigo senão a mobilização colectiva de todos os muçulmanos, então os muçulmanos têm o dever de ignorar as diferenças insignificantes que existem entres eles" (pg. 126, 133).

Outro lugar particularmente sensível da agressão imperialista norte-americana, perpetrada com a cumplicidade de Israel, é a Palestina. "O fim dos americanos, religioso e económico, nestas guerras, é também servir os interesses do Estado hebreu e de distrair a atenção da sua ocupação de Jerusalém e do extermínio dos árabes da Palestina". "Vossa atitude para com os muçulmanos da Palestina é vergonhosa... Nos massacres de Sabra e Chatila, hebreus e americanos destruíram as casas sobre as cabeças das crianças. O único meio que temos para defender-nos destes assaltos é utilizar o mesmos métodos" (p. 90). [2] Os americanos acusam nossas crianças na Palestina de serem terroristas... Em contrapartida, defendem um país, os dos judeus, que com seus aviões e seus barcos, destruem o futuro destas crianças" (p. 95). "Se umas pobres crianças palestinas, cujo país foi ocupado, lançam pedras contra as tropas de Israel, diz-se que são terroristas. Em troca, quando os pilotos israelenses bombardearam os edifícios das Nações Unidas em Qana, no Líbano, que estavam cheios de mulheres e crianças, os Estados Unidos boicotaram qualquer documento que implicasse uma condenação de Israel" (p. 99). "A inimizade entre nós e os judeus é muito antiga no tempo e tem raízes muito profundas. Não há dúvida que uma guerra entre eles e nós é inevitável... O dia do juízo não virá enquanto os muçulmanos não tiverem derrotado os judeus e os judeus esconder-se-ão por trás das árvores e das pedras, e as árvores e as pedras falarão e dirão: 'muçulmano, há um judeu por trás de mim, vem e mata-o". Estamos certos do nosso triunfo" (p. 110-111).

Outra vítimas do imperialismo e do terrorismo norte-americano, a que bin Laden se refere com frequência, é o Iraque. "Os americanos golpeiam os mais débeis, as crianças e as mulheres... Estou verificou-se, por exemplo, com as 600 mil crianças iraquianas, que morreram por falta de comida e de medicamentos, provocada pelas sanções e o boicote norte-americano" (p. 95). "O Iraque foi violentamente bombardeado, o povo foi esmagado e os media tentam distrair a atenção concentrando-se em alguns aspectos da conduta de Sadam Hussein, enquanto milhares de iraquianos morrem todos os dias" (p. 107). Apesar da grande devastação infligida ao povo iraquiano pela aliança cruzado-sionista, e apesar do enorme número de pessoas mortas, que ultrapassou o milhão, apesar de tudo isto, os americanos estão a tentar mais uma vez repetir os seus horríveis massacres, como se não fosse suficiente o extensíssimo embargo imposto depois daquela guerra feroz. Vêm para aniquilar o que resta daquele povo e para humilhar os seus vizinhos muçulmanos" (p. 138-139).

Ofensiva contra o conjunto do mundo islâmico

Entretanto, em termos mais gerais, o objectivo da "aliança judaico-cruzada" é uma "feroz ofensiva contra o mundo islâmico no seu conjunto" (p. 107). Como fundamento de uma afirmação tão grave, Bin Laden cita, além dos países que recordámos, o Paquistão, o Afeganistão, o Irão, a Síria, o Líbano, a Jordânia, o Egipto, o Sudão, a Somália, a Bósnia, a Chechenia, o Tadjiquistão, etc (p. 91, 107-109). Numa palavra "a aliança judaico-cruzada está em guerra contra Deus, contra seu mensageiro e contra todos o muçulmanos" (p. 139).

Bin Laden considera o conjunto dos muçulmanos como uma "grande nação" de 1,2 mil milhões de pessoas. Portanto, ao agredir um país islâmico os Estados Unidos estão a agredir toda a "nação". Cada acto de agressão contra qualquer destas terras impõe a cada muçulmano o dever de enviar um número suficiente dos seus filhos para lutar contra aquela agressão" (p. 91). "Cada ataque contra o Afeganistão não será um ataque contra um indivíduo... Nem contra o mullah Mohammed Omar nem contra Osama bin Laden. O facto é que o Afeganistão, que levantou a bandeira do Islão e procurou aplicar a sharia do Islão, por isso mesmo converteu-se num objectivo da aliança judaico-cruzada. Nós sabemos que o Afeganistão será bombardeado (ainda que os infiéis digam que o fazem pela presença de Osama Bin Laden) por ser nação islâmica, porque é o único Estado que nesta época procura aplicar a lei do Islão: por isso, todos os muçulmanos teriam que apoiar o Afeganistão" (p. 114-115). "A América cometerá um grande erro se pensar que Osama Bin Laden pode lutar só contra um país tão grande. Mas Osama Bin Laden tem confiança em que pela graça de Deus, que seja louvado e glorificado, a nação islâmica cumprirá com este dever. Tenho confiança em que esta nação de 1,2 mil milhões de muçulmanos será capaz, com a ajuda de Deus, de por fim à lenda da chamada superpotência da América" (p. 113).

São estas incessantes agressões perpetradas pelo imperialismo norte-americano e judeu, não a liberdade e a democracia, que, segundo Bin Laden, engendram nos muçulmanos o ressentimento e o ódio e portanto a explosão do terrorismo. "As hostilidade que a América continua a mostrar contra os muçulmanos teve como reacção um ódio crescente contra a América e contra o Ocidente" (p. 101-102). "Se o governo americano é sério quando fala em parar os atentados, então que deixe de provocar os sentimentos de 1,2 mil milhões de muçulmanos" (p. 102). Esta reacção não se pode caracterizar simplesmente como "antiamericanismo" e sim como anti-imperialismo, e mais precisamente como anti-imperialismo islâmico.

A jihad , guerra de libertação e de afirmação do Islão

A jihad , terrorismo legítimo e necessário

Para Bin Laden, a denúncia do imperialismo norte-americano e da sua agressão política, militar, económica e religiosa contra o Islão fundamenta a justificação das suas acções, mais do que a exaltação da reacção terrorista contra ele. "O terrorismo pode ser louvável ou reprovável. Aterrorizar uma pessoa inocente é discutível e injusto... Mas aterrorizar os criminosos e os ladrões é necessário para a salvação das pessoas e para a segurança dos seus bens... Cada Estado e cada civilização tem que recorrer ao terrorismo em certas circunstâncias, para abolir a tirania e a corrupção. O terrorismo que nós praticamos é do tipo mais louvável, porque é dirigido contra os tiranos e os agressores, contra os inimigos de Alá e contra aqueles que executam actos de traição contra os seus próprios países, a sua fé, o seu profeta e a sua nação. Aterrorizar estas pessoas é legítimo e necessário... Levam nossas riqueza, nossos recursos e nosso petróleo. Nossa religião é atacada. Matam e massacram nossos irmãos. Comprometem nossa honra e nossa dignidade, e se nos atrevemos a dizer uma só palavra de protesto contra o agressor chamam-nos terroristas" (p. 98). "Se libertar o meu país leva-me a ser denunciado como terrorista, é uma grande honra para mim sê-lo" (p. 101). "Se a instigação à jihad contra os judeus e os americanos, para libertar a mesquita de Al Asa e a santa Ka'ba, se considera um crime, a história testemunhará que sou um criminoso" (p. 101).

A jihad, dever religioso fundamental

Esta violência, que se caracteriza como defensiva e libertadora, não é apenas justificada, é também um dever religioso fundamental. Sua expressão mais completa é a jihad ou guerra santa. "Nosso apelo a cada muçulmano para que participe na jihad contra Israel e contra a América definimo-lo como um dever religioso. No Corão, nosso grande Alá animou-nos muitas vezes a lutar por ele... Prometemos a Alá continuar na luta enquanto tivermos sangue em nossas veias ou um olho que continue a ver" (p. 91-92). Sermos chamados de inimigo número um ou número dois não nos preocupa. O que nos interessa é agradar a Deus, que Ele seja louvado e glorificado, fazendo a jihad por sua causa e libertando os lugares sagrados do Islão" (p. 100). "Não existe nenhum dever mais importante que o de rechaçar o inimigo americano para fora da terra santa... Não há outro dever, depois da fé, senão o de lutar contra o inimigo que está a corromper a vida e a religião" (p. 126). A jihad faz parte da nossa religião e nenhum muçulmano pode dizer que não quer fazer a jihad pela causa de Deus... Estes são dogmas de nossa religião, e nós perguntamos: 'existe outra maneira de rechaçar os infiéis?' (p. 92).

A justificação e sacralização da jihad fundamenta-se então, por um lado no facto de que ela reage à "intrusão sacrílega" do imperialismo nos países islâmicos e particularmente à ocupação dos lugares santos. E, pelo outro lado, fundamenta-se nos objectivos que ela persegue, ou seja, a libertação destes países e destes lugares, a restauração do Estado islâmico e a afirmação mundial do Islão, chamado a converter-se em religião universal.

"Nosso apelo ao Islão foi revelado por Maomé. É um apelo dirigido a todo o género humano. Fomos encarregados de seguir as pegadas do mensageiro e de levar sua mensagem a todas as nações, de abraçar o Islão, a religião que invoca a justiça, a solidariedade e a fraternidade entre as nações. Fomos encarregados de difundir esta mensagem a toda gente. Ao mesmo tempo lutamos contra os governos e as pessoas que aprovam a injustiça contra nós. Lutamos contra aqueles governo que atacam nossa religião e que roubam nossas riquezas, ferindo nosso coração. E lutamos da mesma maneira e com os mesmos meios que eles usam contra nós" (p. 89-90). Como cristãos, teremos a honradez de reconhecer muitas afinidades entre estas colocações e aquelas que por séculos marcaram a nossa história.

A jihad , guerra contra o imperialismo com os seus mesmos métodos

É particularmente significativo, parece-me, o reconhecimento da afinidade que esta guerra anti-imperialista declara com os modos e meios do imperialismo contra o qual luta. Ela reconhece que evoluciona na mesma lógica do seu inimigo, a do direito do mais forte, reconhece portanto que não representa uma ética política nem uma civilização alternativa em relação a ele. "Nos massacres de Sabra e Chatila, judeus e americanos destruíram as casas sobre as cabeças das crianças. E o único meio que temos para defender-nos destes assaltos é o de utilizar os mesmos métodos" (p. 90).

Tal como o terrorismo imperialista, o terrorismo islâmico de Bin Laden justifica também a matança de inocentes, se esta for necessária para golpear o inimigo; "Suponhamos que os americanos tenham atacado uma nação islâmica e roubado meus filhos, os filhos de Osama Bin Laden, para usá-los como escudos, e a seguir tenham começado a matar muçulmanos, como o fizeram no Líbano, na Palestina e no Iraque, ou como quando ajudaram os sérvios a massacrar muçulmanos na Bósnia. Segundo a lei islâmica, se renunciarmos a golpear os americanos para não matar os muçulmanos utilizados como escudos, causamos um mal maior a todos os muçulmanos que são atacados, mal que ultrapassa amplamente o bem de salvar o que estão a ser usados como escudos. Isto significa que em casos como este, quando se torna claro que é impossível expulsar os americanos sem atacá-los, causando inclusive a morte de muçulmanos, a lei do Islão impõe atacar" (p. 112).

Tal como o imperialismo que combate, Bin Laden afirma a legitimidade de todas as armas, como as armas químicas e atómicas por exemplo. Questionado acerca da sua intenção de usar armas químicas, “A pergunta implica que eu possua usar armas químicas e pretende saber como a usaremos. Respondo que conseguir armas químicas (que possam se contrapor às que possuem os infiéis), para a defesa dos muçulmanos, é um dever que nos impõe a religião. Se eu tivesse estas armas seria por ter cumprido com esse dever, e agradeceria a Deus por me terem sido concedidas... Seria um pecado para os muçulmanos não tentar conseguir as armas que impedissem os infiéis de prejudicar os muçulmanos. Mas como poderíamos usar estas armas, se as possuíssemos, é problema nosso” (p. 114).

Creio que os cristãos, antes de qualificar estes discursos como “delirantes” teríamos que reflectir sobre a afinidade que a jihad apresenta com as cruzadas organizadas para libertar os lugares sagrados; teríamos que reflectir sobre a afinidade entre a jihad e as guerras de conquista, benditas pela igreja como instrumentos de evangelização e de instauração da cristandade; teríamos que reflectir sobre nossa mobilização contra o Islão e mais recentemente contra o comunismo ateu e as guerras que justificaram.

O ponto de vista do oprimido-opressor

Querendo agora caracterizar o ponto de vista do fundamentalismo islâmico à Bin Laden, eu o definiria como o do oprimido-opressor: ou seja, do oprimido que se rebela contra a sua própria opressão, mas não contra a opressão em geral; que não questiona os valores do opressor como tais e portanto não emerge como sujeito alternativo e, sim, reproduz aqueles valores em sua rebelião e em sua prática. Concretamente, o oprimido-opressor não rechaça aquele direito do mais forte, que inspira o opressor. Aceita o terreno sobre o qual este se move e tenta converter-se por sua vez no mais forte. Com este objectivo, orienta seus esforços no sentido de destruir a força do opressor, praticando os mesmos métodos que denuncia no opressor. Sua pretensão de impor com a violência a toda a sociedade, particularmente às mulheres, a lei do Islão em sua versão integralista aproxima este regime dos mais opressivos e repressivos regimes ocidentais.

III- COMPARAÇÃO ENTRE OS DOIS PROJECTOS HISTÓRICOS E OS DOIS TERRORISMOS

Comparando agora, do ponto de vista dos oprimidos e das oprimidas os dois projectos históricos que tentei caracterizar, impressionam-me em sua relação dois aspectos que pareceriam contrastantes. Por um lado, os dois projectos são radicalmente opostos entre si, por outro profundamente afins. A contraposição entre os dois projectos é previsível, uma vez que eles inspiram os dois campos inimigos nesta guerra. Em troca, é surpreendente e desconcertante a profunda afinidade entre os dois inimigos mortais; e, vamos chamá-los pelos seus nomes, entre os dois terrorismos opostos. Esta constatação parece-me central na análise e determinante no descobrimento da alternativa.

Dois projectos em contraste radical

Na perspectiva de Bin Laden os agressores convertem-se em vítimas e as vítimas em agressores: os terroristas já não são os islâmicos e sim os norte-americanos; defensores da “liberdade duradoura” e da “justiça infinita” já não são os ocidentais e sim os muçulmanos mobilizados; heróis e mártires da guerra já não são os soldados ocidentais e os bombeiros de Nova York e sim os jovens muçulmanos que sacrificam sua vida pela causa, particularmente os que se comprometem em ataques suicidas; os valores ético-políticos destinados a afirmar-se a nível mundial já não são os ocidentais cristãos e sim os islâmicos; à coalizão internacional convocada pelos Estados Unidos e construída em torno do ocidente contrapõe-se a comunidade dos Estados islâmicos fieis à sua religião; a condenação já não golpeia os Estados que hospedam terroristas e sim aqueles países islâmicos que se vendem aos Estados Unidos, que hospedam as suas tropas, que lutam ao seu lado contra outros países islâmicos, que portanto traem sua religião, o reino do bem converte-se no reino do mal e vice-versa; o mesmo Deus muda de campo, passando do ocidente para o Islão; são os muçulmanos e não os norte-americanos aqueles que proclamam que nesta guerra Deus não é neutro, que Deus está connosco.

Dois projectos com profundas afinidades

Por outro lado, encontram-se nos dois enfoques profundas e impressionantes afinidades. Uns e outros consideram-se agredidos e portanto vítimas; uns e outros consideram-se comprometidos na luta contra o terrorismo; uns e outros demonizam o seu inimigo, denunciam-no como terrorista, assassino, inclusive como satânico: uns e outros consideram-se defensores da liberdade e da justiça contra os agressores; consideram-se a expressão do reino do bem, em guerra contra o reino do mal; uns e outros pensam que o ataque desencadeado contra um membro da sua aliança tem que ser percebido por cada um como dirigido contra ele próprio e provocar, em consequência, sua reacção militar; uns e outros pensam que estão a conduzir uma guerra justa e mesmo santa; uns e outros perseguem, por vontade Deus, um projecto imperialista, ou seja, a instauração de uma ordem mundial hegemonizado pelos seus valores, religiosos ou laicos; uns e outros pensam que o seu destino manifesto, de hegemonizar o mundo, tem que prevalecer sobre o direito de cada povo à autodeterminação; uns e outros pensam que o seu objectivo, a afirmação no mundo dos seus valores, justifica todos os meios; consideram portanto que é justo sacrificar à causa também a vida de muitíssimos inocentes, incluindo mulheres e crianças. Tanto uns como outros colocam todos os países do mundo frente a este dilema: ou connosco ou contra nós, não há alternativa. Numa palavra, existe um pensamento único fundado no direito do mais forte, que associa o projecto histórico ocidental e o integralismo islâmico terrorista.

Entre os dois projectos imperiais será inevitável a tomada de partido?

No solene discurso de declaração de guerra, Bush, como assinalámos, dirigiu à comunidade internacional uma advertência drástica: nesta guerra não é possível neutralidade, nem para os homens, nem para os povos, nem para Deus: ou connosco ou com os terroristas, ou com a civilização ou com a barbárie.

Problema: Será evidente que entre o ponto de vista do poder americano e ocidental e o do terrorismo islâmico não existe alternativa? Será evidente que entre o ponto de vista do poder americano e ocidental não existe outra alternativa senão a militar? Que condenar a guerra significa reduzir-se à impotência ou inclusive converter-se em cúmplice do terrorismo?

A análise que temos desenvolvido do ponto de vista dos oprimidos e da oprimidas como sujeitos levou-nos a uma conclusão desconcertante: ou seja, que o contraste entre estes dois inimigos mortais e entre seus projectos históricos não é tão profundo: trata-se pois, em última análise, do enfrentamento entre dois imperialismos terroristas.

Mas quero avançar um pouco mais, assumindo o risco de ser julgado extremista e sectário: trata-se de dois imperialismo objectivamente criminosos. Digo bem “objectivamente”: não quero negar a boa fé subjectiva de uns e de outros, convencido de que seu triunfo militar significa a afirmação de grandes valores: dos valores ocidentais de liberdade e democracia para uns, de autentica religiosidade para outros. Contudo, para uns e para outros, a boa fé subjectiva significa incapacidade de perceber o carácter criminoso das suas façanhas sangrentas, das quais, pelo contrário, orgulham-se; incapacidade inerente ao ponto de vista dos opressores, pois precisa esconder dos outros e esconder de si próprios o carácter injusto e criminoso das suas acções; pois precisa assim construir uma imagem revertida da realidade, na qual as vítimas convertem-se em verdugos e os verdugos em vítimas. Uma afinidade fundamental entre as duas ideologias de dominação é portanto a sua capacidade de cegar.

Assim, antes de exercer a sua carga destrutiva sobre o inimigo, a opção violenta é exercida sobre aqueles que a professam, envenenando e cegando sua inteligência. Esta ideologia é o veneno mais mortífero que infecta a humanidade, pois priva grandes massas da sua autonomia intelectual e moral, da capacidade de descobrir a injustiça escondida no sistema económico e político e de indignar-se contra ela.

O ponto de vista dos oprimidos e das oprimidas como sujeitos alternativos

Se os dois projectos históricos que se enfrentam são imperialistas e terroristas, não é nada evidente que a tomada de partido entre eles seja iniludível; pelo contrário, é iniludível, do ponto de vista dos oprimidos e das oprimidas, a necessidade de recusar ambos. Recusá-los, mas em nome de quem? de que estratégia? de que projecto histórico?

Ao ponto de vista dos opressores dos dois campos estamos a contrapor exactamente o ponto de vista dos oprimidos e das oprimidas, que emergem em todo o mundo para a consciência e para a dignidade de sujeitos antagónicos e alternativos. Ponto de vista que descobrimos na dinâmica dos movimentos populares conscientizados e mobilizados: dos indígenas, dos negros, dos camponeses, das mulheres, dos jovens, dos diminuídos, etc; de todos os sectores que se rebelam contra a globalização neoliberal e lutam por uma alternativa de civilização. Ponto de vista que foi nossa bússola na análise e tem que continuar a sê-lo na elaboração da estratégia. Ponto de vista que funda uma cultura alternativa à dos dois imperialismos e ao seu pensamento único: uma cultura então da não violência libertadora; de uma não violência entendida no seu sentido positivo e criativo, capaz portanto de descobrir e valorizar os recursos intelectuais, morais e políticos dos oprimidos e das oprimidas.

Apesar de não dispor neste momento de inquéritos internacionais sobre o tema, penso que este ponto de vista é amplamente compartilhado pelas grandes maiorias do terceiro mundo, mesmo que elas o exprimam timidamente e não consigam influenciar as decisões políticas dos seus países. Um papel primário dos intelectuais e dos educadores próximos ao povo é exactamente valorizar esta tomada de partido intuitiva e o seu potencial mobilizador.

Porque se os opressores, como assinalámos com insistência, necessitam ocultar aos outros e ocultar a si próprios a violência que praticam e portanto encontram na mentira uma aliada indispensável, os oprimidos e as oprimidas, em troca, têm interesse em desmascará-la e encontram na verdade uma aliada indispensável. Porque a rectidão das suas opções práticas neles provoca uma co-naturalidade com a verdade que leva a descobri-la.

Assim, a opção fundamental que nos impõe a situação de guerra não é, como pretende Bush, entre dois projectos contrapostos, o ocidental e o terrorista, e sim entre o ponto de vista dos opressores de todas as cores por um lado e o ponto de vista dos oprimidos e das oprimidas pelo outro. A tomada de partido paradoxal, na qual me inspiro e que estou a propor, é esta: temos de proclamar contra ventos e marés a superioridade não apenas ética como também intelectual do ponto de vista dos oprimidos e das oprimidas como sujeitos em relação ao ponto de vista dos mais fortes, dos imperialistas do ocidente e do oriente. É esta tomada de partido, parece-me, o ponto de partida e o fundamento de qualquer alternativa ao neoliberalismo e aos terrorismos.

Mobilizações contra o neoliberalismo e contra os terrorismos

Mas onde se exprime concretamente este ponto de vista? As mobilizações que por toda a parte do mundo rebelam-se contra a guerra representam, parece-me, uma resposta decisiva. Tomaram maciçamente partido contra a guerra aquelas forças que há vários anos questionam não propriamente a globalização, como se repete demasiado frequentemente, e sim a globalização na sua versão mortífera, a neoliberal.

Parece-me particularmente significativa esta convergência entre os movimentos que recusam e neoliberalismo e os que recusam a resposta terrorista ao terrorismo. Esta convergência implica uma convicção: entre a lógica que inspira a globalização neoliberal e a que inspira a guerra existe uma profunda coerência. Nos dois terrenos está em vigor o direito do mais forte. A globalização neoliberal é um processo de organização do mundo, particularmente da economia, ao serviço dos mais fortes. Ela própria é uma guerra de colonização (económica, política, cultural, etc) que representa a passagem da conquista da América para a conquista do mundo. Para favorecer a concentração da riqueza e do poder em poucas mãos, ela condena grandes massas à miséria, à marginalização e à morte. Para defender a desordem estabelecida contra os protestos populares, ela não vacila em desencadear a violência sangrenta das chamadas forças da ordem. Numa palavra, a globalização neoliberal é uma organização imperialista e terrorista do mundo. Que provoca, antes ou depois, a reacção terrorista de muitas de suas vítimas.

Esta convergência manifesta todo o seu alcance quando se compara a interpretação do terrorismo vinculado ao impacto do neoliberalismo com uma leitura que o caracteriza, em termos mais gerais, como rebelião contra a pobreza, a desigualdade e a injustiça. Leitura formulada surpreendentemente por James Wolfensohn, presidente do Banco Mundial: “É difícil dizer quando a guerra será ganha... A guerra não será ganha enquanto não enfrentarmos o problema da pobreza e portanto das origens do descontentamento. Não só no Afeganistão como nas regiões próximas, em muitos outros países. Esta guerra apresenta-se com a cara de Bin Laden, do terrorismo da Al Qaeda, das ruínas do World Trade Center e do Pentágono, mas trata-se apenas de sintomas. Ganhar a guerra significa tratar das raízes deste protesto, a pobreza e a desigualdade. Não entender isto significa fechar os olhos à origens do rancor dos pobre em relação ao Norte do mundo” (Entrevista a Mauricio Molinari, La Stampa , 7 de Dezembro de 2001).

Esta interpretação sugere uma resposta ao terrorismo que, por um lado, está próxima da nossa e, por outro, é radicalmente oposta. É próxima da nossa porque afirma a necessidade de combater o terrorismo erradicando suas causas, em primeiro lugar a pobreza mundial. Mas é radicalmente oposta à nossa porque considera que a luta contra a pobreza combate-se aplicando mais rigorosamente a lógica neoliberal, abrindo e dinamizando os mercados e privatizando a economia; ao passo que nossa busca da alternativa implica o questionamento radical da lógica neoliberal e uma inversão da tendência histórica.

Numa palavra: é evidente para nós que a recusa da guerra e a recusa da lógica neoliberal nascem das mesmas convicções. E que a busca de uma alternativa à guerra converge com a busca de uma alternativa ao neoliberalismo. Gostaria de assinalar aqui algumas pistas para esta dupla busca.

Algumas pistas de busca

1) A guerra actual não começou a 11 de Setembro. É preciso buscar as suas origens muito mais profundamente no projecto e na prática imperialista do Ocidente e particularmente dos Estados Unidos: projecto e prática imperialista que caracteriza a civilização ocidental dita cristã e que pretende contrapor-se à “barbárie” islâmica.

Evoquemos alguns momentos particularmente significativos deste projecto e desta prática:
- A conquista e a colonização da América, realização do projecto colonial europeu. Ela marca a génese e a caracterização da civilização ocidental cristã e do sistema capitalista com aquele tremendo empreendimento terrorista que foi o genocídio dos povos indígenas.
- O projecto e a prática imperial que marcou e marca, com numerosíssimas intervenções terroristas, a política internacional dos Estados Unidos e a afirmação do capitalismo no mundo.
- Mais proximamente o projecto e a prática imperial do ocidente traduzida no processo de globalização neoliberal, instauração de uma economia mundial fundada no direito do mais forte e portanto numa forma de terrorismo económico e político.
-A decisão do ocidente de reagir ao terrorismo islâmico com o terrorismo intercontinental torna mais evidente ainda a interpenetração entre violência económica e política e violência militar.
Assim, as declarações repetidas por toda a parte, de que depois do 11 de Setembro nada será como dantes, têm de ser corrigidas e integradas. Os acontecimentos do 11 de Setembro e os que se seguem não podem ser entendidos em profundidade se não forem interpretados à luz do passado do Ocidente, do Islão e das relações entre ambos.

2) O integralismo islâmico é uma reacção ao projecto e à prática imperialista e terrorista do Ocidente, e particularmente dos Estados Unidos; na sua origem está a imensa cólera e a profunda humilhação provocada por estas agressões. Por outro lado é uma tentativa de reproduzir e prolongar aquele projecto.

3) Se isto é assim, uma resposta adequada do Ocidente ao terrorismo islâmico e a outros terrorismos não pode consistir numa reafirmação orgulhosa dos valores que pretendemos defender. Ela implica o reconhecimento leal dos crimes que marcaram nossa civilização, da dívida histórica que temos com nossas vítimas, particularmente do mundo árabe e islâmico. É evidente além disso que ao desencadear novas guerras contra os países islâmicos não se erradica o terrorismo e sim que se o alimenta e estende tragicamente.

Em consequência, a resposta da Europa ao terrorismo não pode consistir numa política de subordinação aos Estados Unidos e de cumplicidade com seus projectos imperialistas, e sim numa política autónoma e alternativa. É evidente, entretanto, que a Europa não terá nunca uma política internacional autónoma se não conseguir superar sua condição de “mercado comum” e sua fragmentação política: enquanto não alcançar este objectivo a partir de dentro, a única base da sua unidade será a submissão aos Estados Unidos.

Elaborar uma política autónoma e alternativa suporia, da parte da Europa, uma recolocação autocrítica do seu projecto imperialista, a denúncia dos crimes que mancharam a sua história e marcaram sua civilização, o reconhecimento da sua dívida histórica com os países do Terceiro Mundo, particularmente com os países árabes e o compromisso de pagá-la, tomando partido ao lado destes povos no seu processo de libertação.

4) Uma resposta válida ao terrorismo islâmico e aos outros terrorismo anti-ocidentais só pode consistir no extirpar das suas raízes, ou seja, do projecto e da prática imperialista e em estabelecer as bases de uma civilização alternativa... Paradoxalmente, assim, a resposta válida ao terrorismo anti-ocidental está a ser oferecida pelos movimentos comprometidos na elaboração da alternativa à globalização neoliberal, movimentos que o pode ocidental desqualifica como terroristas e que reprime violentamente. Dentre estes movimentos, representam uma resposta mais directa ao terrorismo anti-ocidental aqueles que optam claramente e criativamente por uma estratégia não violenta.

5) No que se refere à Itália, se ser um “país normal” significa comprometer-se sem vacilação no caminho da guerra e colocar-nos na primeira fila entre os senhores da guerra, é muito melhor renunciar a ser um “país normal” e questionar abertamente esta concepção da “normalidade”. Construir uma civilização alternativa significa também construir uma nova normalidade.

6)A resposta ao terrorismo anti-imperialista que estamos a delinear é evidentemente um projecto de longo prazo, destinado a marcar toda uma época histórica. Além disso, já o sabemos, um projecto de longo prazo é também aquele que foi lançado por Bush para derrotar militarmente os terrorista de todo o mundo. Entretanto, o poder ocidental e o movimento popular necessitam muito tempo por razões muito diferentes: o poder americano e ocidental necessita anos para destruir, o movimento popular deles necessita para construir.

7)Uma contribuição importante para a autocrítica do Ocidente tem que ser oferecida também pelo cristianismo. O papa convidou cristãos e muçulmanos para o encontro de Assis de 24 de Janeiro de 2002 a fim de proclamar, diz textualmente, que “a religião não tem jamais de converter-se em motivo de conflito”. Parece-me, contudo, que para esta declaração de intenção ser crível tem começar por reconhecer que na realidade histórica verificou-se e verifica-se exactamente o contrário.

Pelo seu lado, o cristianismo justificou e sacralizou muitíssimas guerras, particularmente as cruzadas e as conquistas; nestas guerras aplicou o princípio inspirador do pacto com o império romano, segundo o qual a defesa e a difusão da mensagem cristã podem e deve contar com a forças das armas e dos exército; ou, como diríamos hoje, com a força do terrorismo. Além disso nestas guerras o cristianismo identificou-se plenamente com o Ocidente e sua civilização, tomando partido contra seus inimigos, dentre eles em primeiro lugar os povos islâmicos.

Em particular, as cruzadas para a libertação dos lugares sagrados implicavam guerras sangrentas contra os infiéis e legitimavam a libertação desses lugares a conquista das suas terras. Estas cruzadas contribuíram, sem dúvida, para provocar, como reacção igual e contrária, a jihad islâmica. Como nos surpreendermos, então, se dentre os objectivos possíveis do terrorismo islâmico menciona-se a basílica de São Pedro?

8)A construção da paz também implica, indubitavelmente, um profundo processo autocrítico por parte do integralismo islâmico. Mas a maneira mais eficaz de despertá-lo não é uma crítica formulada do ponto de vista ocidental e cristão. É a nossa própria autocrítica, como ocidentais e como cristãos, que pode criar esse clima de honradez e de sinceridade recíproca que possibilita o diálogo e a autocrítica. Para suscitar a crítica será decisiva a contribuição das mulheres islâmicas conscientizadas e do movimento internacional de mulheres que está a tomar partido ao seu lado.

CONCLUSÃO NÃO CONCLUSIVA: POR UMA INSURREIÇÃO DA CONSCIÊNCIA MUNDIAL CONTRA OS TERRORISMOS

A tarefa prioritária que nos impõe hoje o ponto de vista dos oprimidos e das oprimidas como sujeitos alternativos é a de quebrar, através de um amplo processo de educação popular libertadora, a dependência intelectual e moral maciça que explica o consenso à ideologia dominante nos terrenos decisivos da globalização e da guerra. Do que se trata então é de reverter a tendência histórica, fortalecendo militantemente a insurreição e a rebelião da consciência popular que já está a sacudir o mundo e a corroer o consenso ao terrorismo ocidental. Esta insurreição, com a opção fundamental que implica, é o ponto de partida necessário e a fonte de inspiração de qualquer projecto de alternativa.

Com efeito, o ataque terrorista do 11 de Setembro constitui para toda a humanidade um terrível sinal de alerta, que uns e outros estão a interpretar de modos diferentes e opostos. O poder norte-americano e ocidental encontra-se em estado de alerta máximo com a ameaça do terrorismo contra a ordem mundial que o hegemoniza e contra as populações dos seus países. Quanto aos movimentos alternativos, o terrorismo obriga-os em primeiro lugar a tomar consciência de forma mais aguda das ameaças de morte que pendem sobre grande parte da humanidade e que sobre a própria mãe terra pende não tanto o terrorismo anti-ocidental quanto o próprio terrorismo ocidental, desencadeado pela economia e pela política neoliberal.

Além disso, a insurreição da consciência popular tem como objecto não só ameaças de morte como também potencialidades de vida e esperança. Ela implica pois, particularmente por mérito dos povos indígenas conscientizados e mobilizados, o redescobrimento e a reafirmação do direito de todos os povos e de todas as pessoas à autodeterminação solidária. A afirmação deste direito contrapõe-se frontalmente à lógica neoliberal, cujo eixo é a autodeterminação do capital financeiro transnacional. Direito, portanto, cuja afirmação impõe-se como a alma de uma civilização alternativa não-violenta e de uma estratégia não-violenta para construí-la.

A insurreição da consciência mundial que somos convocados a acender implica, mais precisamente, como conteúdo da estratégia não-violenta, o descobrimento e a valorização dos recursos intelectuais, morais e políticos dos oprimidos e das oprimidas de todo o mundo. Recursos demasiado frequentemente ignorados, sub-avaliados e até afogados pelas mesmas organizações de esquerda, vítimas quase sempre daquele autoritarismo que denunciam no sistema vigente: autoritarismo que é, a meu ver, uma das razões principais da nossa falta de criatividade e das nossas derrotas históricas.

Assim, se os dois projectos imperialistas fundamentam sua confiança no direito da força económica e militar, o projecto alternativo de civilização fundamenta sua confiança na força do direito, da justiça, da verdade, do amor; ou seja, na força do povo oprimido, conscientizado, mobilizado e organizado. Se além disso os dois projectos imperialistas fundamentam sua confiança no Deus dos exércitos e do terror, que está ao lado dos mais fortes, o projecto alternativo fundamenta sua confiança no Deus Amor Libertador universal, comprometido ao lado dos oprimidos e das oprimidas.

Só, pois, resgatando a confiança nos recursos inexplorados dos oprimidos e das oprimidas, só valorizando sistematicamente estes recursos nas nossas organizações, em nossa busca e em nossa luta, poderemos afirmar com fundamento que uma nova história é possível, que uma nova história, construída pelos excluídos e pelas excluídas de ontem, já começou.

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Notas

1) Para documentar o pensamento de Bin Laden baseio-me no livro de Fabrizio Falconi e Antonello Sette, Osama Bin Laden, Terrore dell'Occidente , Roma, Fazi Editore, 2001. A esta edição referem-se as páginas citadas.

2) Os autores do livro comentam: “O atentado às Torres Gémeas de Nova York verificou-se no aniversário das matanças de Sabra e Chatila" (p. 90). Acrescento, pela minha parte, que foi também o aniversário do golpe de Pinochet no Chile e do início de uma temporada de terrorismo nesse país e em muitos outros, apoiada pelos Estados Unidos e justificada pela luta contra o "reino do mal", representado então pelo comunismo ateu.



[*] Filósofo e teólogo da libertação


Este artigo encontra-se em http://resistir.info

04/Set/02