Entropia de pleno espectro:
Operações especiais num período especial
O significado de Bakará
Agora o público americano sabe o que foi a Task Force Ranger. Aquela
unidade foi celebrizada pela Columbia Pictures na peça de propaganda de
grande êxito
[1]
chamada
Black Hawk Down
[NT: O título recebido em Portugal foi
"Cercados"
]. Contudo, a Task Force Range real foi o paradigma do problema do estado das
Operações Especiais dos EUA, e do contexto das Special Ops
naquele período. O verdadeiro desastre em Bakara, que o filme pretende
descrever, pode provavelmente ensinar-nos muito acerca da actual aventura
militar no Afeganistão.
Aproveitando o conhecimento de uma carreira militar dominada pela
experiência das "operações especiais" e, ao mesmo
tempo, tentando integrar aquela experiência com a minha actividade
política como marxista
[2]
, e ainda experimentando compreender a actual
conjuntura pós 11 de Setembro, encontrei-me a reflectir muito sobre a
experiência da Somália, onde participei como membro da malfadada
Task Force Ranger em 1993. Aquela experiência, e algumas das
conclusões que dali podem ser retiradas, pode contar-nos algo acerca da
indeterminada declaração de guerra feita pela petro-oligarquia
dos EUA que se apossou do poder em 2000 através de uma ordem judicial
proto-fascista.
Examinei recentemente um documento arquivado pelo US Army Command and General
Staff College com o título enfadonho de
"Análise
crítica da derrota da Task Force Ranger. Assunto: Uma análise
crítica clausewitiziana sobre a derrota militar da Task Force Ranger em
Mogadíscio, Somália, durante a operação RESTAURAR A
ESPERANÇA"
(Critical Analysis on the Defeat of Task Force Ranger Subject: A Clausewitzian
Critical Analysis on the military defeat of Task Force Ranger in Mogadishu,
Somalia during Operation RESTORE HOPE).
Os seus autores foram o Major Clifford E. Day e o Major Ralph P. Millsap, Jr.
Para maior brevidade, daqui para a frente referir-me-ei a este documento
simplesmente como "o Documento do Dia".
O Documento do Dia é acompanhado por uma ressalva. Aquela ressalva
afirma que o documento não constitui uma posição oficial
assumida pelo Departamento da Defesa, o que é interessante por si mesmo.
O Departamento da Defesa, tanto quanto eu posso lembrar, não costuma
assumir "posições oficiais" em relação a
operações passadas. Entretanto, o facto de ter sido escrito por
um estudante do Command and General Staff College (CGSC) e pelo seu orientador
de faculdade, e de ter sido publicado pelo United States Department of Defense
como um ficheiro PDF, indica que, pelo menos nos seus fundamentos, ele
está de acordo com a mesma estrutura analítica da
doutrina militar em vigor nos EUA. Estudantes e faculdades no CSGC não
costumam
propor heresias doutrinais.
Ao identificar elementos chaves daquela estrutura doutrinal poderemos
identificar as fraquezas sistémicas da doutrina militar dos EUA no
Afeganistão, fraquezas no domínio militar, e fraquezas que
são reproduzidas fora do sistema político mais vasto dentro do
qual esta doutrina militar está inserida, a qual potencialmente
traz consigo consequências militares directas. Podemos
também especular sobre como tais consequências militares podem
retro-agir dentro do establishment político como uma crise de
legitimidade.
Algumas das fraquezas são temporariamente remediáveis ao
nível militar. Contudo, aquelas de natureza sistémica são
essencialmente inultrapassáveis na ausência de mudança de
sistema, e a actividade militar está inextricavelmente nela inserida, e
a ela reagindo.
A LEI DA ENTROPIA
Tal sistema, o imperialismo "neoliberal" dos EUA, está agora
sujeito a crescentes pressões cruzadas ao longo de um certo
número de linhas de fractura, económicas, sociais,
políticas, ideológicas e militares. A reacção da
classe dirigente dos EUA a esta confluência de crises está a
aumentar de complexidade técnica e social. Este ensaio
argumentará que estas "contradições", se
aderirmos ao idioma marxista clássico, e a crescente complexidade
técnica da resposta às mesmas, estão sujeitas à lei
da entropia. Ou seja, a
generalizada
interdependência de sistemas tecnologicamente complexos empregues para
salvar a classe dirigente e o seu regime de acumulação de capital
traz consigo um crescente potencial para a desordem
generalizada
catalisada por rupturas que, em si próprias, podem parecer
inconsequentes.
Um exemplo: Em Novembro de 2001 um homem no Aeroporto Internacional de
Hartsfield, em Atlanta, o maior centro de tráfego aéreo no
Sudeste dos Estados Unidos
[3]
, deixou a sua mala com máquina
fotográfica no terminal pouco antes de embarcar no seu voo. Ele
precipitou-se de volta ao terminal para recuperar a sua mala. Quando
correu de volta para apanhar o seu avião, receando perder o voo e vendo
longas filas no checkpoint de segurança, impulsivamente subiu a
correr a escada rolante de descida a fim de contornar aqueles checkpoints. Foi
estúpido. E era ilegal. Mas era, em si mesmo, algo insignificante. As
pessoas esquecem coisas. As pessoas tomam atalhos. As pessoas seguem impulsos
que constituem maus juizos. Este acto impulsivo, entretanto, a um custo
incalculável, encerrou o tráfego aéreo de entrada e de
saída do aeroporto ao longo de quatro
horas, obrigou a evacuação de cerca de 10 mil pessoas, e teve
imensuráveis consequências em cadeia para cada uma e para todas
aquelas pessoas. Obrigou a alteração de rotas de aparelhos
aéreos, reescalonamentos, cancelamentos e re-emissão de bilhetes
durante vários dias a seguir. Foi no fim de semana antes do Dia de
Acção de Graças. Só a AirTrans evacuou 18 voos que
estavam a espera da decolagem no chão de Atlanta. Isto constitui a
realização do potencial entrópico baseado directamente na
complexidade do sistema. Aquela desordem pode ser libertada por um
subir-e-descer-de-escadas, ou pelo voo de um avião que se choca com um
edifício.
Pode-se argumentar que este foi um exemplo da elasticidade do sistema, uma vez
que Hartsfield retornou às operações, mas isto não
é simplesmente um assunto de se o copo está meio cheio ou meio
vazio. Isto aponta directamente para os limites finitos de inputs materiais no
sistema e a sua inerente insustentabilidade. No seu todo, o regime de
acumulação de capital como actualmente existe, com sua enorme
dependência de tecnologia complexa, está muito simplesmente
ultrapassando a sua base financeira e ecológica. Hartsfield é
apresentado aqui como um exemplo de uma cadeia entrópica, e não
deveria ser reificado.
Concentrar-me-ei aqui nas implicações para
operações militares, as quais tornaram-se as novas peças
chave da política dos EUA e que, acredito, estão agora entre
ventos díspares, rodopiando rumo a alguma combinação
sinergética a fim de desencadear uma "Perfeita Tempestade" de
crise social e política generalizada.
As doutrinas militares dos EUA endossadas pelos Relatório do dia
são um caso de Rube Goldberg
[NT]
, condenadas a degenerar em
reacção (decisão-reacção, e não das
espécies políticas) e perda de iniciativa. Uma vez que o
Relatório do Dia deixa de reconhecer o contexto táctico,
estratégico e político como processos que influenciam e
são influenciados por outros processos, ele tira conclusões e faz
recomendações que só poderão ampliar as fraquezas
doutrinais intrínsecas que resultaram na derrota da Task Force Ranger no
mercado de Bakara, distrito de Mogadíscio, Somália, em 3 de
Outubro de 1993.
A intenção deste artigo, entretanto, não é
simplesmente criticar o Relatório do Dia e sim investigar a sua forma e
o seu conteúdo a fim de detectar sinais de crises sistémicas mais
profundas.
A essência das conclusões do Relatório do Dia está
numa secção chamada "Cursos alternativos de
acção". O simples título desta secção
é instrutivo, nele o estudo da ciência militar, até o
momento, é visto como um exercício de
compartimentação académica, reflectindo a epistemologia
burguesa dominante analítico em oposição ao
sintético, atomizado em oposição a relacional,
mecânico em oposição a dialéctico. Os
sub-parágrafos desta secção são: Apoio
político adequado aos comandantes de campo; Construção de
sistemas viáveis de colecta de inteligência; Emprego de
força decisiva; Aproveitar a superioridade tecnológica; e
Assegurar a unidade de esforços. Não quero despender mais tempo
do que o necessário com os pormenores deste relatório, e
reconheço que o resumo sempre leva a uma certa distorção.
No entanto, traduzirei estes subtítulos.
—"Apoio político adequado aos comandantes de campo" é
uma resposta destinada ao então secretário da Defesa Les Aspin,
que vetou a introdução de blindagem pesada na Task Force. Muitos
dos oficiais superiores das Operações Especiais também
exprimiram dúvidas acerca do uso da blindagem, em grande parte porque
estas unidades convencionais não são facilmente
integráveis na Special Operations Task Force, e também porque
elas tendem a inibir a agilidade táctica. Mas é tradicional
entre os militares culparem os civis por descuido depois de se verificarem
falhas
tácticas.
—"Construção de sistemas viáveis de colecta de
inteligência" é como aquilo que vemos agora quando cada vez
mais revelações vêm à luz quanto àquilo que o
governo sabia e não sabia antes do 11 de Setembro. A conclusão
no Relatório do Dia, apresentada num inglês tortuoso e obscuro,
é de que "se nós soubéssemos mais, poderíamos
ter
feito melhor". Esta espécie de masturbação mental
também é muito comum entre os militares, cujos oficiais
geralmente constituem o caixote de lixo da intelligentsia americana
[4]
.
—"Emprego de força decisiva" é uma espécie de
versão do jogador de futebol das manhãs de segunda-feira da
Doutrina Powell
[5]
, a qual diz, de maneira semelhante à
conclusão anterior, "se tivéssemos tido mais poder de
combate disponível durante a batalha, teríamos actuado
melhor". É uma conclusão baseada na quantidade, não
na qualidade. O Relatório do Dia também aproveita esta
oportunidade para mais uma vez lançar a culpar pela falta de
força de combate adequada (adequada para que eventualidade eles
não dizem) sobre Les Aspin e os civis
[6]
.
—"Aproveitar a superioridade tecnológica" conclui, erradamente,
que a Task Force Ranger (TFR) deixou de utilizar com pleno aproveitamento o seu
equipamento de visão nocturna, e que se o raid em Bakara tivesse sido
conduzido à noite, as vantagens tecnológicas dos EUA com
equipamento de visão nocturna poderiam ter continuado o dia. Isto
é simultaneamente inexacto e estúpido. A TFR executou numerosos
raids à noite durante a sua permanência em Mogadíscio, mas
aqueles raids foram lançados com base em inteligência em tempo
real, tão inexacta quanto possa ter sido, acerca da presente (e
constantemente mutante) localização de Mohammed Farah Aidid, cuja
captura constituía a missão da TFR. Além disso, o
equipamento de visão nocturna não faz muito mais do que ampliar a
luz ambiente. Ele muitas vezes cria desvantagens tão
problemáticas como a falta de acuidade visual associada com combate
nocturno sem ajuda. O equipamento é ruidoso e incómodo. Ele
limita drasticamente e canaliza o campo de visão do operador. Ele
produz uma espécie de indescritível efeito hipnótico e de
isolamento psicológico no operador. Po vezes causa dores de
cabeça sérias. E cria uma profunda cegueira nocturna no operador
até mais de quinze minutos depois de tê-lo deixado de usar (por
mau funcionamento do equipamento, por exemplo, ou por qualquer outra
razão).
—"Assegurar unidade de esforços" refere-se à natureza
compartimentada da própria operação, em conjunto com
forças multinacionais, e as forças convencionais dos EUA
não estavam ao par da operação. O Relatório do Dia
conclui que a coordenação teria aumentado a eficácia de
ambas as inteligências, combinando esforços ali, e a resposta para
Bakara, quando a ajuda convencional foi muito lenta a chegar. Mas a realidade
é que partilhar informação sobre a natureza da
missão tão provavelmente comprometeria a missão quanto a
ajudaria, e além disso muito simplesmente ali não havia nem o
tempo nem a capacidade para coordenar esta "operação
especial" com todas as unidades na Somália.
Após este resumo, deixe-me retomar minha crítica à
doutrina subjacente.
As 46 páginas do Relatório do Dia concedem a maior parte do
espaço a factos técnicos e cronológicos relativos à
derrota de Bakara. A missão UNOSOM à Somália, Operation
Restore Hope (ORH), preparou o palco para 3 de Outubro. A decisão do
presidente George H. W. Bush de lançar a ORH depois de perder as
eleições gerais é mais do que suspeita. Quaisquer que
sejam os seus motivos, a missão UNOSOM transmutou-se de uma
missão de acção cívico-humanitária (HCA)
multinacional, sejam quais forem os motivos cínicos dos seus
vários participantes, com uma componente de segurança militar, em
operações militares para "estabilizar" a
Somália. Já se pode ouvir os ecos disso no Afeganistão.
A HCA, para todas as finalidades práticas, e ao contrário do que
afirmou o Relatório do Dia, estava então basicamente
ultrapassada. Estas são missões antitéticas, e não
podem ser executadas simultaneamente com igual ênfase em ambas, a menos
que os militares realmente armem, vivam e participem da vida dura em conjunto
com a população "protegida". Isto é verdadeiro,
mesmo que haja um Estado coerente com um inimigo único e coerente.
Não havia nenhum dos dois na Somália, e assim as
contradições da doutrina aplicada foram exponenciadas pelas
contradições sociais e militares que existiam na Somália.
Tacticamente, uma vez que as forças militares ocupantes na
Somália passaram a estar directamente empenhadas em
operações de pré-combate, isto é, adoptaram uma
postura mais pronta-para-o-combate, suas acções provocaram
contra-medidas preparatórias da parte de todas as facções
guerreiras. O balanço de forças na Somália estava num
estado de constante movimento de qualquer forma, e a introdução
deste novo e importante contendor militar directo (os EUA/NU) inevitavelmente
aumentou a entropia de um meio já caótico. Isto aumentou
exponencialmente, através do acréscimo de ainda uma outra
variável, o número de possíveis combinações
tácticas, e inversamente diminuiu a previsibilidade de uma
situação já imprevisível. O êxito inicial da
inserção militar dos EUA/NU foi baseado na falta de
preparação, e consequente falta de resposta, da milícias
indígenas, que foram obrigadas a ocupar-se com a
competição por posições no cenário
estratégico remodelado.
Todas as partes, significativa e previsivelmente, fortaleceram as suas
posturas defensivas a fim de assegurar-se que se manteriam sobre o terreno
já controlado. O ataque, em Junho de 1993, pelos paquistaneses,
à Aliança Nacional Somali (SNA) de Aididi, deparou-se com uma
defesa bem preparada (pelo combate de milícias experimentadas), e a SNA,
não surpreendentemente, proporcionou-lhe uma decisiva derrota
táctica com uma emboscada anti-blindados muito bem preparada
à qual o Relatório do Dia refere-se, ridiculamente, como um
"massacre". O seu grande êxito a seguir foi a emboscada contra
os americanos em Bakara.
Há outra condição de fraqueza inerente a forças
externas nesta situação, e esta é a necessidade de
desenvolver instalações fixas, e a seguir de abastece-las. O
aeroporto tinha de ser assegurado a fim de manter uma ligação
aérea. As estradas do aeroporto à Base Sword (a
instalação principal), uns bons 45 minutos de viagem para
comboios blindados, tal como uma miniatura da linha Maginot com os bunkers da
10ª Divisão de Montanha nas margens da estrada (cada um deles, por
si próprios, vulneráveis a pequenos ataques), estiveram
até ao fim em torno de Mogadíscio para evitar a minagem
omnipresente, e ataques de morteiro/atiradores individuais. Estas duas
instalações e o corredor que as ligava estavam todas
"fixadas".
Contra um inimigo altamente móvel e levemente equipado, isto traduziu-se
numa perda total de iniciativa no campo de batalha. As forças
móveis indígenas podem flagelar de longe as margens das
posições fixas, quando quiserem e como quiserem, com um risco
mínimo para si próprias (especialmente em áreas urbanas).
Cada suave golpe com êxito pode inaugurar todo um novo conjunto de
políticas, procedimentos, e contramedidas da força fixada,
mantendo-as perpetuamente numa estado de reacção às
iniciativas do(s) seu(s) inimigo(s). A ênfase da política dos EUA
na "força de protecção" (ou seja, uma fuga
obsessiva a quaisquer baixas americanas em combate, uma componente
implícita da Doutrina Powell) só aumenta a perda de iniciativa e
a vulnerabilidade.
Isto não só drena recursos e diminui a flexibilidade como
também se torna muito duro para a moral da tropa. Destaco este ponto
não como algo sem importância, porque isto será
significativo para a discussão posterior acerca das
operações no Afeganistão.
Há uma saída para este dilema numa perspectiva estritamente
militar, e ela consiste em retomar a iniciativa no terreno através de
acções audaciosas, agressivas e contínuas
contra uma organização militar específica. Mas a Doutrina
Powell procura evitar enfrentamentos de combate no solo, a
menos que haja uma superioridade técnica esmagadora e uma baixa
probabilidade de baixas americanas em combate. Para o comandante
táctico no terreno, sempre atentos às prioridades dos seus
superiores, isto traduz-se numa enorme relutância em travar combates
decisivos, ou mesmo em arriscar-se a combater, e uma ênfase exagerada a
todos os níveis de comando nas forças de protecção.
Operações ofensivas audaciosas, agressivas e contínuas
contra uma organização inimiga única proporcionarão
vitórias tácticas, mas inevitavelmente custarão vidas
"amigas", e por isso arriscam-se a perder o elemento invisível
mas essencial em toda a operação militar o apoio da
população civil nos EUA.
Isto constitui uma contradição sistémica. A
população dos EUA é alimentada com
"informação" não para informar, mas para obter a
sua aquiescência para a acção militar. Ela tende a
permanecer silenciosa até que corpos americanos comecem a chegar de
volta à casa, e aí começa a fazer perguntas.
Assim, recuperar a iniciativa táctica depende de um tipo de
acção aquela com uma probabilidade mais elevadas de baixas
"amigas" que poderia ameaçar a aceitação
interna da acção militar. Esta é uma das razões
porque o regime Bush-Rumsfeld faz tantas advertencias ao público
acerca dos "custos" da Guerra Infinita. Estamos a ser inoculados a
fim de proporcionar mais flexibilidade táctica aos militares.
É importante entender que uma chave e parte integral da Doutrina Powell
uma das forças predominantes da actual doutrina militar nos EUA
é este controlo total da informação. Controlar as
percepções do público acerca das operações
é uma parte importante das operações militares, de acordo
com esta doutrina, tal como a logística ou a inteligência. Uma
das dificuldades primárias para os militares dos EUA, por exemplo, no
Haiti, era que as fronteiras porosas do país permitiam que enxames de
repórteres internacionais não controlados andassem por toda a
parte.
[7]
O mesmo não aconteceu no Iraque, e nem tão pouco
no Afeganistão. Estas acções foram filtradas,
desinfectadas e embrulhadas para o consumo público. Com o
lançamento de
Black Hawk Down
, vimos a retro-projecção desta política a
operações passadas.
A DOUTRINA POWELL
Aqui preciso parar por um momento para descrever em mais pormenor o que
é a Doutrina Powell. Esta doutrina é assim chamada devido a
Colin Powell, que é o antigo Presidente da Joint Chiefs of Staff.
O primeiro teste de Powell como um jovem oficial negro foi como "deputy
assistant chief of staff (public affairs)" junto à Americal
Division, onde lhe foi atribuída a difícil e dúbia tarefa
de controlar danos após revelações sobre o massacre de My
Lai, onde soldados dos EUA torturaram, violaram e finalmente assassinaram 347
civis desarmados numa remota aldeia vietnamita. Ele cumpriu brilhantemente
aquele papel, demonstrando um talento real para negociar em labirintos
burocráticos e diplomáticos politicamente sensíveis, e foi
notado por Caspar Weinberger, que acabou por indicá-lo como seu
"deputy security adviser", quando Ronald Reagan indiciou Weinberger
como secretário da Defesa. Powell foi então pessoalmente
preparado para tornar-se o mais jovem e o único negro Presidente da
Joint Chiefs.
Powell nunca esqueceu as "lições" [ele imagina]
aprendidas no Vietnam: que precisa haver alguns critérios simples e
claros quanto ao "interesse nacional" o qual determina quando a
força militar será usada, que o peso do governo e a
influência da imprensa deveriam ser mobilizados para assegurar apoio
público à acção militar, que a força
esmagadora e devastadora deve ser empregue contra toda a sociedade com a qual
estamos em guerra (em oposição à
"proporcionalidade"
[8]
, o espectro que muitos inclusive
Powell incorrectamente responsabilizam pela derrota dos EUA no Vietname,
ressuscitado para explicar a derrota da Task Force Ranger), e que há
algumas claras "saídas estratégicas". Implícita
na Doutrina Powell, com a sua ênfase pesada nas relações
públicas, está aquela minimização das baixas dos
EUA.
Apesar de o Relatório do Dia apresentar uma descrição
muito detalhada do desastre em Bakara, comete precisamente os mesmos erros que
os militares cometem a milénios. Os fãs do futebol americano
chamam a isto o jogador das manhãs de segunda-feira. O
"jogador" examina os pormenores tal como ocorreram, uma visão
só possível em retrospectiva, e a seguir joga o jogo do "o
que-se" a fim de mudar o resultado, convertendo então os seus
"os ques-ses" em recomendações.
Eu fazia parte da Task Force Ranger, embora tenha sido enviado de volta para
casa depois de um conflito com um capitão idiota chamado Steele poucos
dias antes da derrota de Bakara (uma benção disfarçada,
talvez). Estive ali como parte da componente Ranger, apesar de anteriormente
ter servido quase quatro anos como um operador com Delta, e estivesse
familiarizado com a sua organização e os seus modelos de
planeamento.
Vários de nós, veteranos de Operações Especiais
asnáticas como a invasão de Granada, queixavam-se informalmente
uns com os outros acerca do modo como foram conduzidos os raids em série
que levaram à emboscada do SNA que apanhou a TFR a 3 de Outubro.
Lançámos patrulhas terrestres fora do aeroporto depois da
primeira noite em resposta a ataques de morteiros uma táctica
que, se tivesse sido prosseguida agressivamente, teria recuperado alguma
iniciativa. Mas o disparo de um tiro de advertência para impedir a fuga
de um somali assustou o comando, e eles interromperam as patrulhas.
As nossas queixas centravam-se na execução sucessiva de um raid
depois do outro utilizando exactamente o mesmo padrão
(template)
, o que
convenceu-nos de que estávamos a dar ao SNA e aos outros uma
oportunidade para analisar aquele padrão e preparar contra-medidas.
Cada vez que fazíamos um raid contra outro objectivo, nós
simplesmente voltávamos ao aeroporto e acocorávamo-nos por um dia
ou dois até sairmos outra vez da mesma forma.
Nosso pequeno grupo de descontentes dizia que deveríamos partir a
louça e lançar um raid a seguir a outro, usando um padrão
diferente de cada vez, tão rapidamente quanto pudéssemos nos
rearmar e reaprovisionar de combustível, até cairmos de
exaustão e então dormir durante seis horas e começar outra
vez. Mas não estávamos no comando. E maior eficácia
táctica apenas teria alterado as características superficiais da
situação global, de qualquer modo.
A Doutrina Powell exigia "força de protecção" e
acção ofensiva esmagadora. Os comandantes das
Operações Especiais eram de uma geração que fora
removida das Special Ops do estilo anterior, as que faziam o soldado, a equipe
e a criatividade a peça central da sua doutrina. Estes foram educados
sob um regime que construiu a sua doutrina em torno da tecnologia (ao
invés do inverso). E o contexto político, sendo a ciência
política um diferente "assunto", como se sabe, da
ciência militar, era muito fracamente compreendido.
Tivemos uma pequena advertência no círculo de tráfego K-4
por ocasião de um dos raids, pouco antes de ser "recambiado para
casa".
Eu estava com um veículo num ponto forte do lado de fora do
estádio adjacente ao círculo de tráfego, e estava escuro
como breu. As equipes Delta estavam dentro do alvo, um edifício a dois
quarteirões de distância. Os apoios MH-60 "little bird"
com canhões haviam sido afastados para evitar atrair fogo.
Então, vindo de algum lugar, fomos experimentados com disparos de
metralhadoras muito próximas como de um lado para outro da rua.
O SNA sabia onde estava a margem externa da nossa segurança, com base na
observação de raids anteriores, e eles vieram directamente para
nós. O fogo estava directamente diante de mim, e eu atirei com a
metralhadora, disparando cerca de dez vezes com tratadores a fim de indicar o
objectivo aos outros integrantes da equipa de defesa do nosso ponto forte. Os
Rangers no ponto forte tinha metralhadoras calibre .50, lançadores
automáticos de granadas MK-19 40 mm, e um conjunto de armas pequenas e
eles perceberam o sinal das balas traçadoras, despejando um volume de
munição atroz na parede do estádio. Então
recebemos fogo da direcção oposta, outra vez de fora, e sem balas
traçadoras, de modo que não podíamos nos orientar quanto
à sua direcção. Quando os somalis atacaram um dos
helicópteros com traçadoras, identificámos a sua
posição e respondemos contra uma pequena estrutura numa colina
baixa, enchendo a noite com um rio selvagem e em arco de traçadoras.
Como se verificou, o fogo para dentro do estádio, que estava cheio de
pessoas sem abrigo em andrajosas cabanas de panos, matou uns poucos civis
além dos dois ou três que dispararam sobre nós, e o nosso
fogo na colina fez um arco sobre Mogadíscio e foi despejado sobre uma
castigada Sword Base dos EUA. Tivemos um par de feridos, e tive de segurar uma
Chem-lite de luz verde nos dentes, uma experiência que dá cabo dos
nervos, para fazer uma transfusão num deles. Quando voltámos ao
aeroporto, encontrámos um buraco de bala calibre .50 na porta de um dos
nossos veículos. Éramos os únicos ali a ter 50s.
De acordo com a Doutrina Powell nós, naturalmente, fizemos as coisas
certas (embora pudéssemos ter impedido nossas baixas menores com
bombardeamento em tapete, suponho). Respondemos com força esmagadora
para assegurar protecção de forças. Também
reagimos a um experimento e proporcionámos ao SNA um quadro ainda melhor
do nosso padrão operacional.
Este raid foi considerado um êxito, porque empurrámos um par de
lugares-tenente de Aidid para fora do objectivo primário. O impacto dos
civis mortos nunca foi considerado. O perigo a que sujeitamos a Sword Base
nunca foi considerado, nem a falha de coordenação. Mas nenhum
comandante parou e disse: Hei, parece que eles adivinharam o nosso plano.
Vamos mudá-lo.
Isto ocorreu em parte porque o êxito é medido tecnicamente, e
só de um ponto de vista táctico, não político, da
mesma forma pouco inteligente como no Vietname. A medida política e a
crítica do sistema, em oposição aos problemas
técnicos, estão ausentes. Eliminei uma ameaça com os
tiros disparados pela metralhadora e suprimi quem quer que fosse que pudesse
ter estado com ela. Recrutei 100 novos milícias entre os civis que eu
(e o resto de nós) matámos e ferimos. E a nossa tecnologia,
longe de proporcionar-nos uma vantagem, estava a tornar-se um perigo para
nós próprios.
COMPLEXIDADE & VULNERABILIDADE
Há uma correlação entre a complexidade de um sistema e as
suas vulnerabilidades. Recorde-se o Aeroporto de Atlanta. Recorde-se o World
Trade Center e o Pentágono.
Em qualquer caso, as forças dos EUA continuarão a ser defrontadas
com estes problemas porque todos os comandantes dos EUA estão poupando o
seu pessoal, e nenhumas forças convencionais americanas em qualquer
prazo no futuro previsível estará comprometida com a
espécie de acção sustentada sobre o terreno aqui
discutida. As Operações Especiais continuarão a enfatizar
acções rápidas de ataque, baseada na surpresa, velocidade
e violência da acção, a fim de minimizar sua
exposição, e as tropas convencionais continuarão a
refugiar-se dentro de posições cada vez mais endurecidas.
Primeiro, porque o responsável do Sistema de Administração
de Pessoal entre os militares é alguém tão
implacável e competitivo como em qualquer empresa, e responsáveis
cautelosos ascendem, deixando apenas um pequeno punhado de lutadores no
comando. Segundo, porque as forças americanas, mesmo as mais duras do
núcleo, não podem sustentar longas operações no
estrangeiro sem uma enorme cauda logística. Basicamente, eles
são produtos de uma sociedade amimalhada e pasteurizada e
são muito frágeis. Pode-se colocar todos os músculos que
se quiser no soldados americano, e um E-coli local derruba-lo-á como uma
enorme árvores. Só água engarrafada para estes rapazes.
Esta é uma contradição do imperialismo, uma espécie
de darwinismo social invertido, o que é raramente discutido ou
plenamente compreendido quanto às suas implicações.
Quatro ou cinco dias é o máximo que eles podem permanecer em
campo sem que lhes sejam trazidos reabastecimentos por meio de
helicópteros, expondo os aparelhos e as suas próprias
posições. Isto significa que eles
devem
ter bases para retiradas entre missões. Assim, a maior parte das
forças ágeis disponíveis nos EUA terão de trazer
consigo uma instalação fixa.
O Relatório do Dia conseguiu descrever exactamente as dificuldades do
comando e controlo da missão, o que ainda criou uma outra
violação de um Princípio da Guerra: o da Unidade de
Comando. Mas isto não influenciou o padrão operacional, que era
da Delta; aprovado pelo próprio General Garrison (o comandante da Task
Force). Melhor unidade de comando poderia ter acelerado os esforços de
resgate para conseguir tirar a TFR da sua tempestade merda, mas não
teria impedido aquilo de acontecer
[9]
.
Mesmo que a TFR tivesse perseverado numa rota de acção
tacticamente mais saudável continuadas operações no
terreno contra Aidid um êxito táctico contra o SNA apenas
teria fortalecido uma ou mais das outras facções com ela
aparentadas. O problema fundamental teria permanecido. Na ausência de
acções a longo prazo e continuadas com significativas
baixas americanas as forças não-indígenas (US/UN),
bem alimentadas nas suas instalações fixas, permanecem um alvo
estático, cedendo a iniciativa às forças mais
flexíveis, móveis
e variáveis
que as rodeiam... sem sentimentalidades tão despropositadas acerca do
risco de baixas.
As forças ocupantes na Somália estavam destinadas a sofrer danos.
Aquelas no Afeganistão também. Ninguém pode prever como,
mas nós
podemos
prever que isto
acontecerá
.
A AVENTURA NO AFEGANISTÃO
A semelhança chave entre o Afeganistão e a Somália
é a falta de coerência política e a existência de
múltiplas e bem armadas facções guerreiras. A gente de
Bush sabe isso, e essa é a razão porque estão a fazer
tão vãos e ridículos esforços para remendar alguma
coisa junta que possa ser chamada de governo. Este é um boneco para
eles, pois uma vez montado, serão os militares americanos que
terão a responsabilidade final pela sua manutenção. Os
turcos e outros estão a ser levados para lá a fim de suprir as
fraquezas por enquanto, mas os EUA voltarão. As bases já foram
construídas.
E isto exigirá um
bocado
de manutenção. A diferença crucial é que os EUA
estão a conduzir operações no chão basicamente em
áreas rurais, onde desfrutam de muitas vantagens tácticas. Na
Somália, estavam concentrados dentro e em torno dos terrenos urbanos
altamente perigosos de Mogadíscio. A outra fraqueza mencionada acima
foi a de os EUA ficarem atolados pelo uso opções militares sendo
estas um último recurso. Isto também constitui uma fraqueza
sistémica.
Não há garantia de que a pequena ilha de tranquilidade em Kabul,
onde os EUA e as forças aliadas mantêm a tranquilidade com grande
custo e esforço, não se torne, como aconteceu em
Mogadíscio, um ponto de convergência final e quase
apocalíptico no fim de uma longa série de conflitos mutuamente
destrutivos.
Os guarda-costas de Karzai não impediram (e podem ter sido
cúmplices) o assassínio do seu vice-presidente Haji Abdul Qadir,
e tiveram assim de ser substituídos pelas Forças Especiais, que
anteriormente os haviam treinado. O residente lunático do Departamento
da Defesa, Paul Wolfowitz, está a dizer à imprensa que os EUA
têm de preparar-se para a próxima Guerra Fria. O encobrimento
pelos EUA das fatais Forças Especiais que dirigiram um ataque de AC-130
a duas aldeias e uma festa de casamento, na província de Uruzgan, foi um
caso à parte na imprensa internacional, pois os investigadores da ONU,
conhecidos pela sua circunspecção, estão a chamar os
porta-vozes dos EUA de mentirosos e apontam evidências de um encobrimento
deliberado. Conversas de guerra civil emergiram dos senhores da guerra, do
tadjique Ismail Khan em Herat, do tadjique Ustad Atta Mohammed em
Mazar-i-Sharif; do usbeque Abdul Rashid Dostum em Mazar-i-Sharif, do pashtun
Haji Abdul Qadir em Jalalabad, do pashtun Pacha Khan Zadran, de Paktika
Hazara, de Karim Khalili, e do pashtun Gul Agha Sherzai de Kandahar.
Uma força indígena a combater uma invasor estrangeiro ou um
Estado existente pode utilizar a acção militar como uma primeira
opção, como um catalisador, como a peça central da sua
luta política, porque não está a combater para
reter
controlo económico e político e sim para romper ou impedir
aquele controlo por uma outra força. As acções militares
são intrinsecamente melhores para criar a instabilidade do que a
estabilidade. Qualquer um daqueles líderes, sós ou em
combinação com outros, tem a capacidade para introduzir o
desequilíbrio total na situação afegã.
A força militar dos EUA é um instrumento, e está
subordinada à política externa que é antes de tudo sobre
investimentos,
ergo
, estabilidade. O facto de estar a ser usada para tudo é geralmente uma
indicação de que os EUA estão a ficar económica e
politicamente encurralados. A Somália era uma atracção
secundária que acabou por vir para o centro do palco por umas poucas
semanas, e a seguir recuou outra vez. Os EUA sentiam-se relativamente seguros
política e economicamente, e a Somália foi uma anomalia. Mas os
EUA estão agora nos espasmos de uma crise política (mascarada por
algum tempo pelo fervor chauvinista estimulado pelo 11 de Setembro), uma
recessão nacional que está sincronizada com uma recessão
global, o colapso da Argentina prenunciando uma crise generalizada na
América Latina, a lenta implosão do Japão, guerra
comercial com a Europa, e uma crescente maré de sentimento
anti-americano por todo o mundo. Latente nestes turbulentos e tristes ventos
está o potencial para a "Tempestade Perfeita".
Esta administração mordeu mais do que pode mastigar. Por estes
sinais, as circunstâncias provavelmente não darão à
administração Bush opções muito palatáveis.
Militarmente, eles muito simplesmente não podem conduzir
operações militares com êxito simultaneamente no
Afeganistão, no Balcãs, no Iraque, na Colômbia, etc, etc,
etc. Se houver qualquer resistência real, elas quebrarão as
finanças internas. A Argentina é um exemplo perfeito, tal como a
Venezuela e o Brasil. Estas modernas sociedades urbanas que estão
prestes a embarcar num caminho independente não são
subjugáveis pelas forças militares dos EUA. Mesmo um país
pobre e pequeno como o Haiti poderia tornar-se um atoleiro.
Esta é a razão porque os EUA estão a ressuscitar o velho
grupo das operações cobertas, da Guerra Fria. Isto também
fracassará. Se houve em algum momento um tempo propício para os
povos de todo o mundo se rebelarem contra o
diktat
dos EUA, ele é exactamente este. Porque a titubeante e desesperada
Administração Bush não seria capaz de manusear uma,
duas... ou uma centena de Somálias. O maior dos riscos, naturalmente,
que existe seja ele pensável ou não, é que Bush possa
escutar Wolfowitz, o Dr. Strangelove da política americana, e considerar
a utilização de armas nucleares tácticas a fim de
reestruturar a geografia política do planeta.
Mas, como diz um provérbio haitiano, se você não disser bom
dia ao diabo, ele comerá você. E se você
disser
bom dia ao diabo... ele também o comerá. Não há
opção senão combater o imperialismo.
É DIFÍCIL SER ESPECIAL
Após este extenso prefácio, vamos ver mais de perto o que
são as Operações Especiais e como se ajustam no actual
paradigma militar. Em particular, vamos examinar as Forças Especiais,
um subconjunto da comunidade das Operações Especiais dentro da
instituição militar, que é a peça central das
operações terrestres no Afeganistão.
[10]
As Forças Especiais (habitualmente mencionadas, desde a
canção chauvinista de Barry Sadler, como "Boinas
Verdes") descende do Office of Strategic Services (OSS), um grupo aliado
de operações cobertas organizado durante a Segunda Guerra
Mundial. Na realidade actual, esta organização do
Exército foi parida pelo Presidente John F. Kennedy para intervir no
Vietname.
A derrota francesa em Dien Bien Phu, em 1954, anunciou o fim do colonialismo
francês na Ásia e o princípio da intervenção
americana na região. Por volta de 1961 isto incluiu a
intervenção militar directas destes "conselheiros" das
Forças Especiais, especialistas na nova doutrina da
"contra-insurreição".
Os EUA tornaram-se o sustentáculo do corrupto governo sul vietnamita,
assumindo o papel da França em 1956 e iniciando missões militares
de aconselhamento através de uma organização ad hoc
chamada US Military Assistance Advisor Group (MAAG). O MAAG identificou a
necessidade de conselheiros especialmente treinados, e aquela unidade estava
organizada em Fort Bragg, Carolina do Norte, construída sobre uma
unidade experimental que tinha estado por ali desde 1952, chamada 10
th
Special Forces Group, e comandada pelo antigo oficial OSS Aaron Banks, o qual
posteriormente iria tornar-se um crítico agudo da Guerra do Vietname.
A história de Banks, que não vou pormenorizar aqui, aponta para o
"problema" das Forças Especiais. Resumidamente, a simples
fortaleza das Forças Especiais, sua capacidade para trabalhar
autonomamente, imergir em outras culturas, e de ser constantemente chamada a
exercer criatividade e engenho extremos, paradoxalmente é a grande
contradição que elas trazem para dentro de umas forças
armadas imperialistas. É-lhes pedido que conduzam
operações nos ambientes mais "politicamente
sensíveis", frequentemente em missões de profundo
significado estratégico, mas para actuar assim eles devem pensar
independentemente, observar cuidadosamente, e exercitar-se um bocado em termos
de sensibilidade pessoal e cultura. Isto os expõe a influências
subversivas.
Durante a Guerra Fria, a grande maioria dos responsáveis militares
desconfiava das Forças Especiais (SF) e rejeitavam totalmente sua
doutrina, a qual rejeitava a tomada de decisões de cima para baixo no
campo de batalha, e muitas vez enfatizava conceitos desenvolvidos pelos
partisans iuguslávos, pelos comunistas chineses e mesmo pelos escritos
de Guevara sobre a guerra de guerrilhas, defendendo a agilidade táctica
e a flexibilidade organizacional um anátema para os comandantes
das pesadas unidades mecanizadas em frente às igualmente pesadas
forças convencionais da União Soviética na Europa. As SF
eram encaradas, na melhor das hipóteses, como uma barraca de feira
doutrinal, e na pior como um elemento perigosamente disruptivo dentro do
Exército.
As SF, ao longo dos anos, realmente ganharam um orgulho perverso com o seu
status de criança-problema, sua perene escassez de fundos, sua
reputação de pessoas que esquecem cerimónias, demoram
demasiado os intervalos entre os cortes de cabelo, usam uniformes amarrotados e
não padronizados, e muitas vezes dirigem-se aos seus oficiais
tratando-os pelos primeiros nomes. Seu nível individual de
qualificação técnica em armas, comunicações,
medicina, explosivos, construção, e pequenas unidades
tácticas, contudo, eram sem paralelo no resto dos militares dos EUA, e
foi-lhes exigidos que estudassem línguas estrangeiras. Entre militares
que estavam a tornar-se cada vez mais padronizados, com cada soldado quase como
peça intercambiável, os soldados das SF defendiam ferozmente o
seu status como uma espécie de classe artesã nas cada vez mais
taylorizadas forças armadas.
As Forças Especiais especializam-se e especializaram-se desde o
princípio em trabalhar directamente com forças
estrangeiras, e mesmo em comunidades civis estrangeiras.
Isto as diferencia da 1
st
Special Forces Operational Detachment-Delta (Delta Force), uma unidade de
acção directa concebida originalmente para corrigir as
deficiências do "contra-terrorismo" identificadas após o
fracassado raid no Irão em 1980 (mais abaixo fala-se disto). Isto
também as diferencia dos Rangers, que são organizados como
batalhões de infantaria de choque, e que são especialmente
treinados para conduzir capturas de campos de pouso e para segurança
auxiliar de operações Delta. A inclusão conjunta sob um
único comando das Forças Especiais, dos Rangers, do 160
th
Special Operations Aviation Regiment, do 1
st
Special Operations Wing, etc, é problemática, como veremos.
Uma das qualificações chave enfatizadas em todo o treinamento das
SF é o desenvolvimento de relações com "os
indígenas". Consequentemente, um dos problemas mais comuns com as
Forças Especiais tem sido o perigo de um operador das SF venha a
"tornar-se nativo". Paradoxalmente, as SF tem sido caracterizada
durante alguns anos, especialmente a partir da sua rápida
expansão na última década e meia quando principiou a
recrutar intensamente fora dos partidários da supremacia branca nos
Batalhões Ranger, por sua cultura de racismo anti-negro (mais sobre isto
abaixo).
A mistura de indivíduos nos destacamentos SF tem reflectido esta
múltipla personalidade institucional. Simpatizantes do Klan entram em
equipes com brancos casados com mulheres negras, latinas e asiáticas.
Os chauvinistas estritos limitam os seus contactos com estrangeiros a
relações profissionais nas missões, ao passo que outros
gastam todo o tempo livre que dispõem longe da guarnição,
comendo comida local, desfrutando a cultura local e flertando com mulheres
locais. Os homófobos violentos nas equipas são por vezes
provocados pelos membros da equipa que mexem as bebidas deles nos bares com os
seus pénis.
O lançamento da operação Rice Bowl, o raid fracassado
dentro
do Irão em 1980, marcou uma nova ênfase nas
operações de acção directa a longa distância
(em oposição à contra-insurreição) pelas
Forças Especiais, e o abjecto fracasso da missão real assinalou a
necessidade de melhor coordenar as operações
inter-serviços. Isto inaugurou uma série de novas estruturas
administrativas e operacionais dentro das forças militares, chamada
Operações Especiais, as quais acabaram por incluir Special
Forces, Rangers, Seal Teams, Special Operations Aviation, Civil Affairs, e
Psychological Operations. Esta reorganização deixou de levar em
conta esta diferença chave entre as Forças Especiais (que
antigamente tinham "assuntos civis" e "operações
psicológicas" como parte da sua missão) como uma unidade que
tinha de estabelecer relações e trabalhar directamente com
comunidades indígenas, e as acções directas uniformizadas
como as dos Deltas e dos Rangers. Ao obrigar estas duas metodologias
anti-téticas a ficarem juntas sob o mesmo aparelho administrativo iria
ampliar várias contradições.
Com a administração Reagan, as Operações Especiais
ganharam uma importância acrescida na política externa dos EUA. O
dinheiro jorrou para dentro das Operações Especiais. Fort Bragg
tornou-se uma indústria em crescimento. A seguir a
destruição do Bloco do Leste remodelou drasticamente o panorama
geopolítico e militar. As Operações Especiais, outrora a
criança-problema dos militares, agora tornava-se a peça central
da doutrina em urgente desenvolvimento do pós-Guerra Fria. Finalmente,
Henry Shelton, um ex-oficial das Forças Especiais (durante a sua estadia
no Vietname), tornou-se o Presidente da Joint Chiefs of Staff. Menos de duas
décadas antes, um oficial das SF jamais poderia esperar ir além
dos posto de Coronel. Shelton arrombou o "tecto das SF" ao
estabelecer-se em postos de pára-quedistas convencionais até as
Operações Especiais tornarem-se um império privilegiado
dentro da instituição militar, em consequência ele
reemergiu como um dos poucos oficiais generais com alguma experiência em
SF.
Mas grandes contradições começaram a aflorar. A fortaleza
das SF fora o seu engenho característicos e a agilidade. Uma nova
burocracia administrativa das Operações Especiais que estendia,
camada sobre camada, tudo ao modo da Joint Chiefs, foi agora imposta às
SF. E havia uma obrigação para expandir maciçamente o
número das tropas, portanto reduzindo a "qualidade" global do
operador individual (muitos soldados mais jovens entraram nas SF, e estes eram
mais impetuosos e menos peritos em resolução de problemas
práticos). Os simples elementos de flexibilidade e agilidade que haviam
definido o valor característico das Forças Especiais foram
atacados pelas necessidades administrativas e correspondente
fricção burocrática e padronização de
um comando muito mais vasto. As Forças Especiais, em face da feroz
resistência dos operadores das SF, tinha de ser convencionalizada. O
próprio Henry Shelton foi parte deste processo, e os seus antecedentes
ambíguos que oscilaram entre Operações Especiais e
Exército convencional adequavam-no a esta tarefa.
A expansão das SF criaram uma situação em que muitos
soldados das Forças Especiais, demasiado jovens para terem sido
"beneficiários" directos ou indirectos dos rigores do
Vietname, os filhos da classe média branca dos fins da década de
70 e princípio da de 80, inabituados a longas, austeras e duras
permanências no campo, muitas vezes auto-complacentes ao extremo quando
entrados no serviço, estavam a entrar para as Forças Especiais
pelo prestígio e pela atracção por uma espécie de
estilo de vida macho, despreocupado e rebelde. Eles queriam cabelos compridos,
a "boémia dos destacamentos" e as missões sexy, mas
não queriam sofrer a dureza. As SF estavam a tornar-se a força
prima donna
com maior proporção de incompetentes e tagarelas.
Durante o meu período no Delta, entre 1982 e 1986, servi com um
megalomaníaco de cinco pés e meio e com complexo de
Napoleão chamado Danny Hobson cujo título de glória
era ter morto um invasor da sua casa com 14 anos por meio de uma pistola
e que era geralmente considerado na unidade como um pouco esquisito (é
preciso considerar a composição da Delta para apreciar o
significado desta avaliação). Como um ex-operador Delta,
promovido a Sargento Mort, a trabalhar no Special Warfare Center (SWC) em Fort
Bragg em 1988, ele vendeu-se aos SWC como o homem que tinha a
solução para as "conspiração dos frouxos"
nas SF.
Assim, ele implementou um novo Special Forces Assessment and Selection Course
(SFAS) para todos os candidatos às SF, um "curso de tortura"
brutalmente física de 30 dias baseado no modelo utilizado pelo
Australian Special Air Service (as suas SF). Isto funcionou. Os frouxos foram
extirpados, mas a maior parte do conjunto de soldados interessados e capazes de
sobreviver nas SFAS eram Rangers mais uma vez, a mais branca das
unidades do Exército
[11]
.
No fim dos anos 80 as SF haviam-se expandido maciçamente. Com a
expansão veio o dinheiro, e com o dinheiro veio equipamento. Montes de
equipamento, especialmente gadgets. As SF, que no passado trabalhara com
recursos inferiores ao resto do Exército, quando sargentos comuns tinham
de teclar Código Morse em rádios antiquados e usavam arame
farpado como antenas para aumentar o seu alcance, recebiam o estado-da-arte de
todas as coisas. Satcoms com encriptação digital e saltador de
frequência, barcos Zodiak com motores de 150 HP, pára-quedas de 9
células que podiam ser abertos em altitude e voar 40 quilómetros
em direcção a um objectivo, telémetros laser, armas de
franco-atirador de US$ 7000, uma vasta variedade de equipamentos de
visão nocturna, e mais e mais. Com o tempo, como aconteceu nas cada vez
mais tecnocêntricas forças armadas, os avanços
tecnológicos tornaram-se dependência tecnológica, e uma
doutrina das SF que fora centrada em habilitar homens acabou por ser recentrada
no manejo de equipamento. As SF estavam agora a assumir todas as
características dos militares convencionais dos EUA, e todas as suas
fraquezas em consequência. Estavam a tornar-se mimados e
começaram a perder a sua engenhosidade. A moral nas SF enfraqueceu na
proporção directa do fortalecimento da tendência
convencional. A corrupção, o racismo e a síndrome
prima donna
haviam-se tornado endémicas no momento em que o Bloco do Leste caiu. A
reacção era mais disciplina de cima para baixo, o que mais uma
vez asfixiava a iniciativa.
A instituição militar como um todo experimentou um
desenvolvimento concorrente, que certo modo coincidiu com as tendências
nas SF, e em alguns casos contrariava-a. É importante entender que a
doutrina militar não se desenvolve num vácuo, mas é de
diferentes maneiras influenciada pelos viéses da doutrina passada,
teorias de ciência militar competidoras, rivalidade
inter-serviços, proteccionismo burocrático, contratistas de armas
e os seus representantes eleitos, as políticas de promoção
para os níveis de comando mais elevados, e os viéses peculiares,
opiniões, ilusões e desilusões dos membros da Autoridade
de Comando Nacional (o Presidente, o secretário da Defesa e Conselheiro
de Segurança Nacional).
Desta mistura de influências emergiram duas tendências dominantes
dentro da instituição militar: a Doutrina Powell, e a
dominância de pleno espectro (full-spectrum dominance, FSD).
Como foi descrito anteriormente, a Doutrina Powell lista entre as suas
prioridades as relações públicas. Com a ênfase
sobre as relações públicas há uma ênfase
sobre a aparência dos soldados. Isto é um problema para as
Special Forces.
"A regra da polidez podia por vidas em risco, afirmam soldados",
lê-se num artigo de Ian Bruce no The Herald de 05/Junho/2002:
O General Lugar-tenente Dan K McNeill, um combatente veterano do
Vietname, do Golfo e do Panamá, chegou à sua sede na base
aérea Bagram no fim da semana passada e já ordenou aos seus 12
mil soldados que se escovassem, usassem uniformes e equipamento padrão,
e saudassem os oficiais quando se encontrassem com eles.
"Todo Exército do mundo abandona óbvios distintivos de posto
e saudação numa zona de combate porque isto identifica os
comandantes aos observadores inimigos e marca-os como alvos para
franco-atiradores.
"Alguns oficiais agora recusam-se a responder às
saudações, mas a reinstauração do protocolo militar
foi estendida até mesmo às barracas das forças especiais
um acampamento de tendas relativamente anárquico no limiar da
base que até agora tivera uma regra para si própria.
"Muitos dos soldados da Delta e dos Boinas Verdes na frente da guerra
ostentam cabelos compridos, não fazem a barba e tem-lhes sido permitido
usar combinações de coisas do kit GI e vestuários locais
práticos e confortáveis para as suas perigosas missões por
trás das linhas.
"Mesmo ali, um sinal em que até sábado se podia ler:
"Esta é uma zona de não-saudação", foi
removido e a padronização da aparência é para ser
aplicada enquanto os homens conhecidos pelos seus colegas convencionais como
"comedores de cobras" estiverem na base e em certa medida dentro dos
olhos do público. O General McNeill, que efectuou 300 saltos de
pára-quedas [Esta estatística, naturalmente, não tem
qualquer significado pois todos aqueles saltos foram sobre zonas seguras de
aterragem como aquelas no Fort Bragg - SG], ontem descartou os protestos pois
organizou-se para o que provavelmente será a mais dura fase da guerra,
arrancando e destruindo pequenos bolsões de combatentes do Al Qaeda e
dos Taliban em fortalezas remotas nas montanhas".
|
A DOUTRINA DO DOMÍNIO DE PLENO ESPECTRO
(Full-Spectrum Dominance, FSD)
Full-spectrum dominance" é a expressão chave na
Joint Vision 2020, o plano do Departamento da Defesa preparado na
gestão de Henry Shelton. Full-spectrum dominance significa a
capacidade das forças dos EUA, a operarem sós ou com aliados,
para derrotar qualquer adversário e controlar qualquer
situação ao longo de toda a cadeia de operações
militares. A frase utiliza a palavra qualquer duas vezes,
tornando-a talvez a mais grandiosa alucinação da história
militar americana, em contraste com a semiconsciente cautela inerente à
Doutrina Powell. Full spectrum refere-se a três coisas:
âmbito geográfico, nível de conflito e tecnologia.
Trata-se de uma doutrina que implicitamente objectiva a dominação
militar mundial, tendo em vista todas as coisas, desde tumultos de rua
até a guerra termonuclear, acompanhada de um cheque em branco aos
desenvolvedores de armas para um conjunto de dispositivos
(gadgets)
altamente (alguns diriam demasiadamente) refinados. Esta é a doutrina
da devoção de Rumsfeld, e ele tem uma fé na mesma de
cortar a respiração. Isto explica a sua selecção
da mediocridade militar que é o General da Força Aérea
Richard Meyers, que partilha a tecno-religiosidade de Rumsfeld como Presidente
da Joint Chiefs.
É importante fazer uma distinção entre FSD e a extrema
tecno-centricidade de Rumsfeld
et al
. Colin Powell, cuja doutrina própria pode acomodar-se e
mesmo saudar um leque mais vasto de opções tácticas, ainda
é um oficial militar treinado que pelo menos compreende os
Princípios da Guerra, os quais, considerados em conjunto, enfatizam a
liderança acima de todas as outras prioridades. Powell também
é suficientemente realista para reconhecer a ilusão de
qualquer adversário. Rumsfeld e companhia parecem acreditar
que a superioridade técnica é uma garantia de êxito
militar, e que a força militar de certo modo sempre pode solucionar as
subjacentes contradições económicas e militares. Powell,
com todas as suas imperfeições, sabe isso melhor
[12]
.
Às Forças Especiais está a ser solicitado que preencham
muitos dos vazios tácticos, vazios no "pleno espectro, no
Afeganistão. Pede-se-lhe que faça coisas que ninguém mais
pode fazer, porque elas são consideradas flexíveis, ágeis,
aptas para línguas. Reconhecimento especial. Treinamento de
milícias afegãs. Segurança para assuntos civis e
operações psicológicas. Acção directa.
Gendarmes. Espiões. Valentões. Guarda-costas.
A realidade é que poucos, se é que algum, fala os dialectos
locais, contando com tradutores que são examinados quase sob o
único critério da sua capacidade para falar inglês. A
lista das tarefas para as quais os soldados das Forças Especiais
estão a ser reconhecidos como aptos, agora descritas num Manual do
soldado das Forças Especiais tal como se fossem
instruções destinadas a um empregado da Macdonalds, são
demasiado numerosas e frequentemente irrelevantes, numa situação
que é culturalmente impenetrável para eles, e cambiante a todo
momento.
Há poucas dúvidas neste momento de que eles estão a ser
manipulados por várias facções. Vamos examinar um pouco
mais detidamente o ataque a centenas de civis em Kakarak, Afeganistão,
onde os militares americanos estão a efectuar investigação
para determinar se os militares dos EUA fizeram algo errado
[13]
.
Os civis afegãos em Kakarak não foram bombardeados.
É uma distinção importante. Já foi confirmado que
as Forças Especiais estavam a efectuar uma missão ali, e eles
usam aviões AC-130 para apoio aéreo, não bombardeiros. O
AC-130 é um aparelho propelido por turbinas e dotado de computadores, um
avião de carga que dispara uma variedade de armas controladas por
computador, a 5000 pés, numa órbita circular com uma
inclinação de 30 graus a fim de que os armamentos enquadrados na
porta estejam voltados DIRECTAMENTE para os alvos sobre o solo. Imagine um
funil com o ponto sobre o alvo, e o avião a circular por cima ao longo
da borda.
O avião transporta munições de
fogo directo
, não bombas.
Trata-se de um sistema de armas de precisão
. Aquilo não dispara algo como fogo errante. Trabalhei com
estes pássaros, e eles podem ser chamados para disparar sobre uma
motocicleta a 50 jardas (45,7 m) de distância da posição
amiga. Elas não são disparada por um piloto de
bombardeiro que está a balouçar num alvo que em
grande parte é invisível. Elas são disparadas por um
comandante do tanque de voo que sabe exactamente para o que está a
disparar, com ajustamentos e confirmação acerca do efeito
sobre o alvo do observador avançado das Forças Especiais
que está no solo.
Kakarak foi atacada deliberadamente... ...tal como Khorum em Outubro
mais de 100 mortos, Moshkhil em Dezembro 16 mortos, um comboio civil na
Província de Paktia em Dezembro 65 mortos, Qalaye Niaze em
Dezembro 52 mortos, inclusive 25 crianças, o raid de 12 de Maio
das Forças Especiais sobre a aldeia errada em Kandahar, onde
cinco foram assassinados directamente, inclusive um de 13 anos e outro de 15
anos de idade, e 32 pessoas capturadas, o raid de 24 de Maio em
Bandi Temur dois mortos e 59 sequestrados, inclusive um homem de 100
anos que morreu de um tiro de rifle na cabeça e uma garota de 13 aos que
caiu num poço quando fugia e afogou-se.
Das duas uma: ou há facções a utilizarem as forças
dos EUA para ajustarem as suas contas, ou a CIA alinhou com uma certa
facção e está a pagar algumas contas.
Benvindo de volta a Mogadiscio.
Uma outra razão, não mencionada, para o emprego das Forças
Especiais nas primeiras operações das SF desde o Vietname em que
os planeadores militares aceitam que existe uma probabilidade (moderadamente
alta) de combate no solo
é
a composição racial das SF.
Tanto Granada como a Somália surpreenderam os planeadores, que
subestimaram as forças oponentes e empregaram tácticas loucamente
arrogantes e, em ambos os casos, a luta mais árdua ficou, mais uma vez,
com as tropas das Operações Especiais, mas não com as SF.
O Panamá e o Iraque foram as expressões finais da Doutrina
Powell, com força esmagadora, severo afastamento dos media, pequena
probabilidade de combate intenso no solo e, mesmo assim, as missões de
maior risco foram reservadas aos Delta, aos Rangers, e aos Seal Team Six
unidades com
muito poucos
operadores negros
[14]
.
Unidades convencionais com mais de 30% de tropas afro-americanas colocam um
problema, se a história dá lições. Quando grande
número de tropas negras vão à guerra pelo Tio Sam, elas
retornam a casa com expectativas e atitudes. Pedir a alguém para se
arriscar ao supremo sacrifício por uma sociedade em que ela senta que
é de um povo colonizado tem um efeito galvanizador sobre as
consciências
[15]
.
Estas duas tendências doutrinárias, a Doutrina Powell e o
Domínio de Pleno Espectro, estão a ser empregues, numa certa
medida, no Afeganistão. O controlo do media e bombardeios
indiscriminados de alta altitude são padrões da Doutrina Powell.
Verifica-se a tentativa de coordenar a massa de baixas tácticas
(estrangeiras) da Doutrina Powell com as tropas de Operações
Especiais empregues em vários estilos de conflito de baixa intensidade
no solo. Ambas são doutrinas míopes pelos seus próprios
méritos, mas são absolutamente incompatíveis quando
empregadas em conjunto, quando uma parte significativa daquele espectro
pleno é trabalho das Forças Especiais.
A tentativa de combinar destruição maciça de vidas e de
propriedade, com bombardeamento em tapete a alta altitude, com a
construção de relações e de
cooperação militar entre a população foi tentada
outrora pelos EUA, no Vietname. E a tentativa de coexistir como uma
força militar (estrangeira) num meio de combate sem Estado, com senhores
da guerra com base étnica e de clã e a romperem alianças a
cada mudança dos ventos políticos também foi tentada antes
pelos EUA, na Somália.
Enquanto as Operações Especiais foram desenvolvidas utilizando
modelos não convencionais bem sucedidos e de movimentos de guerrilha, o
registo das Operações Especiais dos EUA tem sido horrendos. Os
pontos altos das Operações Especiais, o raid Son Tay, a
operação Rice Bowl, a invasão de Granada, a Task Force
Ranger, foram todos fracassos. As tácticas desenvolvidas pelas
forças insurrectas são adequadas para uma tarefa política
insurreccional, mas não se enquadram bem com uma missão
imperialista.
Na contradição jaz a esperança, dizia Berthold
Brecht. E podemos ter esperança.
Até à data, o Afeganistão tem sido um absoluto fracasso
militar. Toda a fonte independente disponível (a imprensa empresarial
dos EUA não é nem remotamente independente) confirma isto. O
Génio do Mal não foi capturado ou morto. Os Taliban simplesmente
ficaram no terreno no Afeganistão e no Paquistão à espera
de que os EUA fiquem profundamente submersos no pântano que
avança. A colheita da papoula será a melhor da década. O
próprio Paquistão ficou desestabilizado a ponto de arriscar-se a
uma guerra nuclear com o seu vizinho, a Índia. As facilidades para o
possível pipeline ainda não podem ser asseguradas. E os danos
colaterais infligidos pelos bombardeamentos e má inteligência,
combinados com o apoio ao corrupto e inepto regime de Karzai, vira segmentos
cada vez mais vastos da população contra os americanos a cada dia
que passa. O Exército turco, bem conhecido na Turquia pela sua
brutalidade, pode cuidar disso por algum tempo com a sua habitual
autoconfiança, até alienar e enfurecer as várias
facções por todo o Afeganistão. Nessa altura os EUA
terão de intervir outra vez com operações no terreno.
Quem está apanhado no meio disto? As Forças Especiais.
Apanhadas entre bombardear e construir relações. Apanhadas entre
as expectativas de combatentes não convencionais e os meninos bonitos do
regime. Apanhadas entre os pronunciamentos oficiais acerca da guerra e o seu
próprio e íntimo contacto com as realidades do
Afeganistão. E apanhadas entre o imperativo de mostrar ao
público alguma acção e a total incompreensibilidade das
missões que estão a ser montadas, tal como a perigosa e afinal
das contas despropositada Operação Anaconda.
Agora as forças das Operações Especiais estão a ser
consideradas, se acreditarmos nas fugas, para uma invasão de
Bagdade. A centralidade das Forças Especiais na actual doutrina e o
aparentemente insaciável desejo de guerra da administração
Bush, tal como o sistema queima a sua própria base material, logo
levará à ultrapassagem da capacidade das forças das
Operações Especiais. Não se trata apenas de uma
questão logística, é uma questão moral.
Quando planeadores militares avaliam a situação
inimiga, levam em conta cinco categorias materiais: dimensão,
localização, composição, disposição e
força. Mas incluída naquela avaliação está
uma sexta categoria. Moral. É algo difícil de quantificar e
operacionalizar, como diriam os positivistas. E ela não se correlaciona
bem com bem-estar material. Vi os soldados de um Destacamento, altamente bem
aprovisionado e bem cuidado, tornarem-se adolescentes aparvalhados, e vi tropas
em condições austeras prolongadas e exaustivas imbuídas de
um feroz espírito de combate. Considere as condições do
NLA no Vietname ou dos revolucionários cubanos, cuja moral raramente
enfraqueceu.
Tropas expostas a combate real reagem de diferentes maneiras. Algumas
desenvolvem a Post Traumatic Stress Disorder. Algumas parecem
adaptar-se muito bem, e a seguir readaptar-se a situações de
não-combate. Algumas tornam-se homicidas sádicas, embebedas com
o poder de vida e morte em relação aos outros. Algumas perdem o
sentido de finalidade e tornam-se suicidas. O recente dilúvio de
assassinato de esposas e de assassinos-suicidas entre operadores das
Forças Especiais que retornam do Afeganistão está a
dizer-nos algo.
Algumas tornam-se críticas.
As tropas das Forças Especiais geralmente começam as suas
carreiras militares em busca de algum ideal másculo. Elas são
geralmente apolíticas. Poucas apresentarão em público as
suas dúvidas ou os seus sentimentos quanto ao que fazem para viver.
Trata-se, apesar de tudo, de um emprego muito prestigiante. Assim, muitos
são capazes apenas de dizer, aquilo foi uma cabra fudida
(linguagem das SF para uma situação irremediável), e
continuam adiante com as suas vidas. Mas muitos também são
inteligentes, pessoas mesmo sensíveis, que sofrem as cicatrizes da
dissonância cognitiva. O Afeganistão será um fardo para
toda a vida para alguns deles, e não será de surpreender quando
entre as primeiras histórias de divergências e aversão que
surgirem directamente dos militares ali, algumas venham dos operadores das
Forças Especiais.
A moral em casa também é um facto, e como os dirigentes
americanos
de facto
continuam a reconstruir o mundo a força de armas, os custos
económicos, e a seguir os custos sociais, reacenderão a crise
política que foi temporariamente sufocada pela explosão
chauvinista do 11 de Setembro. Mas a história oficial está a
ficar cada vez mais difícil de ser sustentada. Ela ainda persiste
só devido à grande paixão americana, a
negação. Mesmo que não possa perdurar para sempre. E
quando isto acontecer, esta administração pode acrescentar uma
crise de legitimidade à sua extensa listas de desgraças. Talvez
esta crise, no fim das contas, seja a sua ruína.
A legitimidade pode ser a chave para o poder na conjuntura que se aproxima,
pois os benefícios materiais do imperialismo para a classe
operária das metrópoles são liquidados com a
contra-revolução que veio de cima.
30/Jul/02
NOTAS
[1] O filme de Ridley Scott recebeu a cooperação sem precedentes
do Departamento da Defesa da administração Bush, ao ponto de por
em contacto artistas e equipas de filmagem com unidades militares
top secret
, permitindo-lhes observar e praticar tácticas e técnicas que
são classificadas, e permitindo aos militares exercerem o poder de veto
sobre virtualmente todos os aspectos do filme. A combinação
bizarra de colaboração directa entre Hollywood e o Departamento
da Defesa e a privatização-mercantilização da
propaganda oficial é um reflexo do estado de degeneração
desesperadora desta época e da sua elite política.
[2] Esta expressão exige clarificação. Tem sido sujeita a
muitos usos e abusos durante anos. A palavra em si própria designava
muitos homens de palha. Neste contexto, entretanto, significa que aderi a uma
metodologia interpretativa que toma o materialismo dialéctico como o seu
axioma filosófico e o materialismo histórico como a
aplicação do MD a questões de desenvolvimento social.
Isto não implica, e de facto rejeita, a conversão de algumas
versões do marxismo numa doutrina quase-religiosa, completa
com profetas infalíveis e textos sagrados, nem isto implica o endosso ou
a rejeição em conjunto das práticas, incluindo o
exercício do poder estatal, por marxistas no passado ou no presente. O
marxismo, tanto como método crítico como prática
política, está ainda em evolução, e este ensaio
pretende ser uma pequena contribuição para essa
evolução.
[3] É argumentável que Hartsfield seja realmente o aeroporto mais
ocupado do mundo.
[4] E que agora exerce uma poderosa influência perturbadora sobre os
dirigentes políticos, que realmente excedem os militares em mediocridade
intelectual.
[5] Cobriremos a Doutrina Powel em maior pormenor mais abaixo.
[6] Tais espécies de argumentos assumem que todas as variáveis
são independentes, quando o oposto é que é verdadeiro. Se
o inimigo neste caso tivesse observado blindagem pesado na Task
Force, suas tácticas teriam sido alteradas em conformidade. Se o
ambiente da inteligência tivesse sido diferente, então o que
observou teria sido diferente. Esta espécie de pensamento superficial e
falacioso encontra-se a todo momento entre o corpo de oficiais da
instituição militar americana.
[7] O autor também participou na operação Uphold Democracy
(no Haiti), um ano após a catastrófica solução da
operação Restaurar a Esperança (na Somália), e ele
apresenta uma
crítica abrangente das Forças Especiais e dos militares
americanos no seu livro "Sonho odioso: Memórias de um soldado da invasão
americana do Haiti"
(Hideous Dream: A Soldier's Memoir of the US Invasion of Haiti)
(Soft Skul Press, 2000). A esperança não foi restaurada na
Somália. A democracia não foi confirmada no Haiti.
[8] Proporcionalidade é a ideia de que a acção
militar é proporcional à necessidade. Como um Princípio
da Guerra, isto é chamada Economia de Força, e é pregado
nos púlpitos das academias de serviço, como West Point onde
ensinei Ciência Militar durante três semestres. Mas quando os
civis são culpados, utilizando a retro-projecção das
variáveis independentes citadas anteriormente,
proporcionalidade é transformada em heresia civil que
subverte os êxitos militares. Por outras palavras, Powell acredita que a
derrota no Vietname era uma consequência, em parte, da falta de vontade
para escalar para quaisquer meios necessários, incluindo as armas
nucleares.
[9] O Relatório do Dia também retracta com precisão o
absurdo de empregar uma equipa de agentes brancos da CIA para reunir
inteligência humana numa nação negra como a Somália.
[10] Ter em mente que no momento em que ler isto aquela operação
ter-se-á estendido. As SF são agora activas nas Filipinas e na
Colômbia.
[11] Os soldados negros não têm estado muito interessado nos
programas de selecção do Exército que enfatizam o abuso e
a humilhação. Para muitos soldados brancos, isto é
percebido como uma espécie de rito de passagem dentro da fraternidade.
Os negros também são extirpados das Forças Especiais e dos
Rangers pelos racistas que efectuam avaliações subjectivas
durante os cursos e fases de treinamento e selecção.
[12] O dilema, se for mesmo reconhecível pela mediana inteligência
de George W. Bush e Donald Rumsfeld, é que esta doutrina tecnocentrica
intensamente complexificada é agora a pedra de toque de toda uma
geopolítica estratégica com o singular objectivo de impor ordem
numa altamente instável (por si própria) situação
mundial. O potencial sistémico para a entropia significa que alguma
coisa inevitável, e imprevisível, romperá o sistema e
criará a cascata de desordens. Recorde-se o aeroporto de
Atlanta. Recorde-se o 11 de Setembro.
[13] Uma das coisas mais importantes que posso salientar, como veterano por
mais de duas décadas na instituição militar, é que
o Departamento da Defesa é uma burocracia. Isto coloca as coisas em
perspectiva. As burocracias são intrinsecamente incapazes de admitir
pecados. O ABC dos burocratas é CYA. O que está a acontecer
aqui é encobrimento.
[14] Se algum. Não sei ao certo agora. Quando estive na Delta, havia
dois operadores negros durante um período de quase quatro anos. Na Seal
Team 6, com quem por vezes trabalhávamos, nunca vi um único
operador negro, e eles referiam-se abertamente à sua defesa de 36 horas
da mansão do Governador de Granada, depois de serem apanhados ali, como
um tiro de negro...
[15] Latinos e ilhéus do Pacífico, contudo, são muito
comuns nas SF, e o rito social de passagem para dentro destas unidades de
arianos honorários é a negrofobia. O viés
anti-negro entre estes grupo dentro das SF é muitas vezes feroz.
[NT]
Rube Goldberg foi um artista, inventor, engenheiro, escritor e escultor
norte-americano. Ele é mais conhecido pelos seus desenhos
cómicos de inovações e invenções malucas. O
seu trabalho artístico foi publicado em jornais de todos os Estados
Unidos durante décadas, até os anos 60. Hoje a expressão
Rube Goldberg é utilizada para designar qualquer coisa que seja
construída de uma forma excessivamente complicada ou mediante um
procedimento contrário ao habitual.
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Ex-sargento-mor do Exército dos EUA. Publicado em português com a
autorização do autor.
Tradução de J. Figueiredo.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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