I - Uma contradição novíssima e peculiar.
Comecemos por uma pergunta: pode emergir uma contradição entre as grandes corporações transnacionais estado-unidenses e o capitalismo norte-americano?
Este enunciado poderia parecer absurdo: se se fala do capitalismo deste ou daquele país, será possível pensar que surja uma contradição entre este e suas empresas capitalistas? Acaso não se está a falar do mesmo? Será que se pode falar de capitalismo nacional como algo distinto ou separado das empresas capitalistas que nele radicam? O tema merece alguma discussão mínima. Podemos abordá-lo em termos de: i) a dinâmica e os modos que assume o investimento estrangeiro; ii) as origens sectoriais e regionais dos lucros.
II – O investimento no estrangeiro.
O investimento no estrangeiro, ou exportações de capital, constitui um traço antigo nas grandes potências capitalistas. E quando o sistema avança para a sua fase monopolista, tal traço acentua-se: “o que caracterizava o velho capitalismo, no qual dominava plenamente a livre competição, era a exportação de mercadorias. O que caracteriza o capitalismo moderno, no qual impera o monopólio, é a exportação de capital”.[1]
Neste movimento, podem-se distinguir diversas etapas. Num primeiro momento, a direção das exportações de capital vai do centro para a periferia e concentra-se na produção e exportação de matérias-primas. Estas tornam-se baratas e ajudam a baixar a composição de valor do capital e, deste modo, elevar a taxa de lucro. Além disso, o grosso da indústria continuava localizada no pólo desenvolvido.
Num segundo momento, pelo menos na América Latina, emerge algum desenvolvimento industrial impulsionado pelo Estado e capitalistas nacionais. O que muito contrariava os teóricos neoclássicos, os que continuavam a alegar a favor da “racionalidade” da divisão internacional tradicional do trabalho. Em termos quase “curiosos”, em breve chegou ali o capital transnacional, apoderando-se dos segmentos mais estratégicos. Junto a este movimento há outro que se deve sublinhar: o investimento estrangeiro também se move entre os países do centro: vai dos Estados Unidos para a Europa e vice-versa. Do Japão para a Europa, etc. Neste caso, não são os salários baixos o factor impulsionador e sim a dimensão dos mercados para bens industriais. O lucros gerados por este movimento favorem mais os Estados Unidos: na Europa, por exemplo, expande-se o “american way of life” e a cultura gringa tende a impor-se. Esta fase coincide com outra: a do padrão de acumulação com regulação keynesiana que imperou nos EUA e Europa desde fins dos anos quareta até, aproximadamente, meados ou fins dos setenta. Também se deve destacar: nesta fase observa-se um crescimento muito forte das grandes companhias transnacionais.
Desde fins dos setenta até agora, o que impera é o padrão neoliberal. Se pensarmos nos EUA, verificamos: a) piora drasticamente a distribuição do rendimento: sobe a taxa de mais-valia; b) a distribuição da riqueza (não do Rendimento Nacional, trata-se dos ativos fixos e financeiros) tornou-se a mais regressiva dos países mais desenvolvidos. Inclusive é mais regressiva da que se verifica na Índia e África do Sul.[2] c) cai o coeficiente de investimento e reduz-se significativamente o ritmo de crescimento do PIB; d) geram-se problemas pelo lado do emprego produtivo; e) o mercado interno torna-se pouco atraente; f) emerge um défice crónico na Balança de Pagamentos, que se financia com o expediente de emitir dólares que os estrangeiros adquirem e usam como meio de reserva.
No plano que mais nos interessa cristaliza um fenómeno chave: possibilita-se uma minuciosa fragmentação dos processos produtivos. Portanto, esta fragmentação possível dá oportunidade a que diversas partes do processo produtivo se possam localizar em muito diversos sítios do globo terráqueo. O que passa a depender dos níveis do salário, das políticas tributárias e cambiais e das possíveis infraestruturas (portos, caminhos, energia elétrica, etc) que os diversos países e regiões podem oferecer. Tudo isso recorda, não pouco, as condições que se davam durante o modelo primário-exportador vigente na América Latina durante o século XIX (últimos dois terços) e no primeiro terço do século XX.
Nas condições atuais, o investimento que se efectua fora, em países como por exemplo o México, provoca um alto ritmo de crescimento das exportações mexicanas e, ao mesmo tempo, gera efeitos de arrastamento que são praticamente nulos. As exportações crescem a um bom ritmo (as importações ainda mais), mas o PIB permanece quase estagnado em termos per capita. Ou seja, os efeitos de arrastamento destes investimentos sobre a economia nacional interna do país receptor são quase nulos.[3] Mas aqui interessa-nos o impacto na economia interna dos Estados Unidos.
No caso estado-unidense, destaca-se o forte crescimento do investimento aplicado por suas grandes empresas no estrangeiro. Ao mesmo tempo, o enfraquecimento do investimento que se aplica no território estado-unidense: investe-se muito fora e muito pouco dentro do país. Em 1982 o investimento direto acumulado dos EUA no estrangeiro chegava a US$207,8 mil milhões. No ano de 2016 chegou a US$5332,2 mil milhões. Multiplicou-se 25,7 vezes, crescendo a uma taxa média anual de 10%. Entre 1982 e 1990, cresce a 9,5%. Entre 1990 e 2007 a 12,1% e entre 2007 e 2026 (período que cobre a grande crise de 2007-2009) cresce a 6,6%. A expansão é alta, crescendo a ritmos anuais muito elevados. Também se observa que no período 2007-2016 a expansão reduz-se bastante, quase à metade do período anterior. Nisto, pode-se supor que, devido à crise, os “factores de atração” debilitam-se fortemente. O que, certamente está ligado à recessão que afeta não só os EUA como também a Europa e o Japão. Os dados básicos são mostrados no Quadro 2.
Ano | Valor acumulado (US$ mil milhões) | Índice |
1982 | 207,8 | 100 |
1990 | 430,5 | 207 |
2000 | 1316,2 | 633 |
2007 | 2994,0 | 1441 |
2016 | 5332,2 | 2556 |
O aumento do investimento no estrangeiro pode ser melhor avaliado se o compararamos com a conduta do investimento no país. Isto é mostrado no quadro seguinte:
Rubrica | 2000 | 2014 | Tma (*) |
Investimento Fixo não residencial | 100 | 130,4 | 1,90% |
Investimento direto no estrangeiro | 100 | 373 | 9,90% |
A evidência é contundente. Cresce muitíssimo mais o investimento no estrangeiro do que no país. De facto, o investimento interno mostra claros sinais de estagnação. Nisto, convém sublinhar o factos mais decisivos.
Primeiro: cresce muito o invesimento das CMN dos EUA no estrangeiro. E enfraquece-se no território nacional.
Segundo: no exterior, gera-se uma rede ou cadeia de produção que impressiona pela sua fragmentação e extensão geográfica. Produzem-se diversas partes do produto final em regiões muito diversas, em cada uma das quais acrescenta-se certo montante de valor agregado. É o que se vem conhecendo como “cadeias globais de valor”.
Terceiro: numa alta percentagem, o produto final acaba por ser vendido aos próprios Estados Unidos.
Quarto: no fim deste círculo, os EUA começam a transformar-se num grande comprador (importador) de produtos finais e, ao mesmo tempo, vão perdendo a sua capacidade de produção nacional. Com a consquente e forte perda de ocupações industriais. Em alguns estudos estima-se que entre 2001 e 2011 a perda de empregos nos EUA causada pelo seu défice com a China chegou a 2,7 milhões.[4] Um cálculo recente cobre o período 2001-2015 e estima a perda de empregos em 3,4 milhões.[5] Quanto ao NAFTA, nos seus primeilros 20 anos de funcionamento a perda em relação ao México e ao Canadá é estimada em 850 mil empregos.[6]
Quinto: como contrapartida, emerge um forte défice na balança comercial dos EUA. Com o qual, o problema vital da realização do excedente agrava-se ainda mais.
Recordemos, para terminar esta enumeração, uma expressão clássica: “o que é bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos”. Alguns a criticavam pois a classe operária gringa tinha pouco a ver com tais benefícios. Pelo menos, beneficiava-se numa proporção bastante menor. Mas agora, a situação parece estar a mudar num sentido bastante mais radical: o que é bom para a grandes corporações multinacionais estado-unidenses deixou de ser bom para o capitalismo dos EUA.
III - Orígens dos lucros e parasitismo crescente.
O ordenamento por origem dos lucros pode ser examinado com diversos critérios de classificação. Exemplo: segundo os ramos de atividade económica. Estes ramos podem ser manejados conforme a classificação habitual do SCN, ou agrupá-los em sector primário, secundário e terciário. Também podem ser agrupados em ramos produtivos e ramos improdutivos. Ramos produtivos são aqueles em que o capital atravessa a fase da produção e, em consequência, gera um certo valor agregado e apodera-se de certa massa de mais-valia, a que é gerada na correspondente atividade produtiva. E os ramos improdutivos são os que não produzem mais-valia (tão pouco valor), mas apropriam-se dela. Como é designadamente, por exemplo, o capital circulante (banca, comércio, etc). Importa assinalar: a mais-valias apropriada pelos capitais circulantes é produzida pelos capitais produtivos. Ou seja, há transferências de valor (mais-valia) em relação aos segmentos produtivos da economia. Outra classificação grossa é a que distingue a origem geográfica dos lucros: no território nacional ou no estrangeiro. No que se segue utilizaremos as classificações mais pertinentes para examinar o problelma que nos preocupa.
Os lucros e a sua captação segundo os sectores.
Entre o ano de 1973 e o de 2014, os lucros totais (a preços correntes) ganhos no território dos EUA multiplicaram-se por 16. Os do capital não-financeiro por 15,1 e os do capital financeiro por 20,1 vezes. No mesmo período os lucros que provinham do resto do mundo multiplicaram-se por 28,1 vezes. Ou seja, em termos de lucros obtidos, o segmento mais dinâmico corresponde àqueles que se obtêm fora do território. A seguir vem o capital financeiro e, em último lugar, o sector de empresas não financeiras. Se considerarmos só o sector vital da indústria manufatureira, temos que no período seus lucros multiplicaram-se 7,92 vezes, um factor de expansão claramente inferior.[7]
Convém acrescentar: entre os anos 2000 e 2014, os lucros totais do sector corporativo que opera nos EUA multiplicaram-se (em preços correntes) 3,06 vezes. Os do sector não financeiro multiplicaram-se 3,14 vezes e os do sector financeiro multiplicaram-se 2,83 vezes. O desvio das tendências mais vastas produz-se a seguir à grande crise de 2007-09. Com isso, perdem peso tanto os lucros do sector financeiro (duramente golpeado na crise), como os que provêm do estrangeiro. Ou seja, dos sectores mais dinâmicos no espaço neoliberal. Depois da grande crise, por volta de 2013-15, observa-se certa recuperação da situação tradicional, mas parece demasiado cedo para saber com certeza se retorna ou não à situação prévia.[8] Para o período 1980-2014, os dados básicos são mostrados do quadro 3.
Sector/Ano | 1980 | 2014 | tma (*) |
1. Não financeiro | 169,9 (70,6%) | 1363,2 (61,8 %) | 6,3% |
2. Financeiro | 35,2 (14,6%) | 423,4 (19,2%) | 7,6% |
3. Total Nacional (3=1+2) | 205,2 (85,3%) | 1786,6 (81,0%) | 6,6% |
4. Estrangeiro | 35,5 (14,8%) | 418,2 (19,0%) | 7,5% |
5. Total (3 + 4) | 240,6 (100,0%) | 2204,9 (100,0%) | 6,7% |
6. Manufatura | 97,6 (40,6%) | 439,8 (19,9%) | 4,5% |
7. 6 / 2 | 2,77 | 1,04 | – |
As tendências tornam-se muito claras: i) os lucros do capital financeiro são os que se elevam mais rapidamente no período; ii) os lucros provenientes dos investimentos no estrangeiro que o país realiza crescem praticamente ao mesmo ritmo com que se expandem os de tipo financeiro. De facto, nos últimos anos o fluxo de capital para fora acentuou-se e, inclusive, há corporações que transferem seus escritórios matrizes para o estrangeiro. Fazem-no para evitar as taxas tributárias dos EUA que costumam ser mais altas do que a de outros países. E como sublinharam diversos economistas (e inclusive Donald Trump), esta transferência de capitais também tem um impacto negativo no emprego.
O caso da indústria manufatureira é gritante: tem uma forte queda no seu peso percentual: de quase 41% em 1980 para chegar a quase uns 20% em 2014. A descida é abrupta e mostra-nos um dos aspectos mais danosos do estilo neoliberal: sua “capacidade” para prejudicar os sectores produtivos.
Convém acrescentar: o investimento que se aplica no estrangeiro também começa a localizar-se em ramos improdutivos. A nível mundial, os EUA aplicam em 2015 uns 12,3% na indústria manufatureira e uns 20,0% nas Finanças e Comércio. Mais 52% em empresas detentoras e manejadoras de ativos financeiros (ou “holding companys”). Para a América Latina e o Caribe, aplica-se 6,1% na Mineração, 6,6% na Indústria, 28,7% em Finanças e Comércio e 53% em empresas holding.[9]
Quando a mais-valia é obtida sem haver participado na sua produção, fala-se de “parasitismo económico”. Isto é o característico de todos os capitais que se aplicam em sectores improdutivos. Não produzem valor nem portanto mais-valia, mas apropriam-se dela. Se não o fizessem, não seriam capitais. Uma segunda modalidade de parasitismo refere-se à apropriação de lucros que se produzem fora do país. E como temos visto, os dois traços encontram-se presentesno capitalismo estado-unidense. Presentes e em termos que vão crescendo cada vez mais. Poder-se-ia falar de “parasitismo ao quadrado”, o que reflete um processo de decomposição, económica e social, que se acentua e é a expressão da decadência histórica do próprio sistema capitalista.
Finalmente, um último apontamento: a forte presença das CMN no estrangeiro e o peso que nelas têm os lucros obtidos fora dos EUA, não é algo alheio à muito forte presença militar deste país em praticamente todo o mundo. Como costuma acontecer desde há muito, por vezes os capitais antecem as canhoneiras (hoje porta-aviões) e em outras são os canhões que antecedem os capitais. Além disso, se no económico começam a perder esferas de influência e de domínio, a resposta costuma implicar intervenções militares. Algo a que não é alheio o que hoje (2022) vemos na Ucrânia.
[1] V. I. Lenin, “El imperialismo, fase superior del capitalismo”, en Obras Escogidas, Tomo I, pág.741. Edit. Progreso, Moscú, 1978.