O Estado bandido (Rogue state)
Durante 101 dias os Royal Marines estiveram engajados numa
operação ridícula como mercenários dos Estados
Unidos, cuja ilegalidade o qualifica como o principal Estado bandido do mundo.
Atirando em sombras, e ocasionalmente em membros de tribos, explodindo montes
de imundícies e exibindo armas "capturadas" para os media,
tudo isto tem sido parte do humilhante papel dos Marines no Afeganistão
um papel que lhes foi impingido pelo governo Blair, cuja
deferência e conivência com a gang de Bush tornou-o uma
paródia do cortesão imperial.
Gang não é um exagero. A palavra, no meu dicionário,
significa "um grupo de pessoas a actuarem em conjunto para fins criminais,
vergonhosos". Tal definição descreve acuradamente George W.
Bush e aqueles que escrevem seus discursos e fazem suas decisões e que,
desde a sua subida ao poder, têm minado as próprias bases do
direito internacional.
No Afeganistão, o seu registo é indiscutível. O
assassinato de 40 convidados numa festa de casamento não foi uma
"asneira" mas o resultado directo de uma política de atirar e
bombardear primeiro e perguntar depois, tal como anunciada por George W. Bush
nas semanas após o 11 de Setembro.
A capacidade da máquina militar americana para esmagar países
empobrecidos nunca esteve em causa mas condicionada, isto é, com
ausência de tropas americanas no terreno e sua substituição
por forças "aliadas", como os Royal Marines. (Durante o
apogeu do Império Britânico, foi atribuído um papel
semelhante aos cipaios indianos e a outras tropas coloniais, embora os
britânicos, ao contrário dos americanos, também estivessem
preparados para sacrificar os seus próprios soldados).
Desde Outubro último, líderes afegãos têm relatado
acerca de aviões americanos a destruírem aldeias "demasiado
pequenas para serem marcadas em qualquer mapa" com "mais de 300
pessoas assassinadas" numa noite. Numa família de 40 pessoas,
só um garoto e sua avó sobreviveram, relata Richard Lloyd Parry,
do
Independent
.
Afastados das câmaras da televisão "pelo menos 3.767 civis
foram mortos pelas bombas americanas entre 7 de Outubro e 10 de Dezembro de
2002 (...) uma média de 62 inocentes mortos por dia", segundo um
estudo efectuado pela Universidade de New Hampshire, nos EUA. Estima-se agora
que este número tenha atingido 5000 civis mortos: quase o dobro do
número de mortos no 11 de Setembro.
Não há evidência de que um único líder do
al-Qaeda tenha sido capturado ou, que se saiba, morto. Nem tão pouco o
líder dos Taliban. A mudança no Afeganistão é
mínima em comparação com o sanguinário feudalismo
que exerceu o poder durante a década de 1990, e antes de os Taliban
subirem ao poder.
Depois de todas as mudanças cosméticas em Cabul, a capital, a
mulheres ainda não ousam andar sem o véu. "Os Taliban
costumavam exibir o corpo dos enforcados durante quatro dias", disse
sarcasticamente o novo ministro da Justiça do regime instalado pelos
americanos. "Nós somente exibimos o corpo da vítima por um
curto espaço de tempo, digamos quinze minutos, após a
execução pública".
Descrever isto como um "triunfo do bem sobre o mal", como afirmou
Bush, com um eco de Blair, é como celebrar a superioridade da
máquina de guerra alemã em 1940 como uma
justificação do nazismo.
Não só os Marines mas também o público
britânico podem sentir-se ludibriados. Tanto Washington como Whitehall
sabiam há muito que a al-Qaeda estava acabada no Afeganistão.
Além do elemento de vingança, para satisfação
interna, os americanos começaram a reforçar o controle dos seus
senhores de guerra favoritos: pessoas responsáveis por milhares de
mortes no seu afligido país.
Em Outubro, os EUA planearam instalar um regime dominado por membros da tribo
Pashtun que, previram eles, abandonariam os Taliban. Mas a divisão nos
Taliban nunca aconteceu e os americanos desde então mudaram de curso e
tentaram juntar uma "coalizão" de senhores da guerra Tajiks e
Uzbeks. O actual "presidente interino", Hamid Karzai, embora um
Pashtun, não tem base de poder tribal ou militar. Ele é
simplesmente o homem dos EUA.
A presença dos Royal Marines, dirigindo a chamada "International
Security Assistance Force", é por muitas razões algo
directamente do século XIX. Sob o comando dos americanos, os Marines
foram instruídos no sentido de manterem os senhores da guerra favoritos
longe das gargantas uns dos outros até que a região pudesse ser
"estabilizada" para o petróleo americano e outros interesses
estratégicos.
O vasto potencial das fontes de energia na Ásia Central tornou-se
crítico para a profundamente perturbada economia americana, e para a
administração Bush, que é dominada pelos interesses da
indústria do petróleo, nomeadamente a própria
família Bush. Uma investigação do
Asia Times,
de Hong Kong, descobriu em Janeiro último que os EUA estavam a
desenvolver freneticamente "uma rede de múltiplos oleodutos no
Cáspio".
A desgraçada Enron Corporation, uma das maiores apoiantes da campanha de
Bush, efectuou um estudo de factibilidade de um oleoduto de US$ 2,5 mil
milhões a ser construído através do Mar Cáspio.
Altos responsáveis americanos, actuais e antigos, incluindo o
vice-presidente Cheney, "têm fechado grandes contratos directa ou
indirectamente em benefício das companhias petroleiras", diz o
Asia Times
.
Se houvesse um mapa das bases militares americanas instaladas na região
para combater "a guerra ao terrorismo" seria imediatamente evidente
que elas seguem quase exactamente a rota do projectado oleoduto para o Oceano
Índico.
Blair e o volúvel Geoffrey Hoon, naturalmente, não proporcionaram
nenhuma desta informação vital ao povo britânico, sem
mencionar os soldados britânicos que enviaram para actuar no jogo
imperial dos EUA. Felizmente, as tropas sofreram apenas gripe gástrica.
O povo afegão não tem sido tão feliz.
Qualquer dúvida acerca da sistemática forma homicida como os
militares americanos operam no Afeganistão é dissipada por uma
reportagem de Maio da imprensa americana acerca de crianças abatidas a
tiros em campos de trigo enquanto dormiam. Durante quatro horas,
helicópteros artilhados americanos saturaram os campos e uma aldeia com
balas e mísseis antes de aterrarem para vomitar tropas americanas que
atiraram nos sobreviventes e detiveram outros "suspeitos".
De facto, a área era conhecida por sua oposição aos
Taliban e o governador da província de Oruzgan confirmou que aquelas
pessoas assassinadas "eram pessoas comuns. Não havia al-Qaeda ou
Taliban ali".
Nos últimos meses, o Estado bandido americano rasgou o Tratado de
Quioto, que reduziria o aquecimento global e a probabilidade de desastre
ambiental. Ameaçou utilizar armas nucleares em "ataques
preventivos" (uma ameaça reflectida por Hoon). Tentou sabotar o
estabelecimento de um Tribunal Criminal Internacional, compreensivelmente,
porque os seus generais e principais políticos podem ser intimados como
réus.
Ele mais uma vez minou a autoridade das Nações Unidas ao permitir
que Israel bloqueasse um comité de investigação da ONU
acerca do assalto israelense ao campo de refugiados palestinos de Jenin, e
ordenou aos palestinos que se livrassem do seu líder eleito em favor de
um fantoche americano.
O Estado bandido americano ignorou a Cimeira Alimentar Mundial, na
Itália, e em conferências cimeiras no Canadá e na
Indonésia bloqueou ajuda autêntica, tal como água limpa e
electricidade, à maior parte dos povos necessitados da Terra. As
propostas para aumentar subsídios alimentares americanos em 80 por cento
destinam-se a assegurar o domínio dos EUA no mercado mundial de cereais.
("Quando nos levantamos a cada manhã da mesa do
pequeno-almoço", disse o executivo-chefe da
corporação Cargill, a maior companhia alimentar do mundo,
"muito daquilo que acabámos de comer cereais, pão,
café, açúcar e assim por diante passou pelas terras
da minha companhia". O objectivo da Cargill é duplicar de tamanho
a cada cinco a sete anos).
Há um desesperado limite
(edge)
para a maior parte das acções banditescas dos EUA. Os
fundamentalistas cristãos do "mercado livre" que mandam em
Washington estão preocupados. O défice em
transacções correntes americano está a registar um record
de US$ 34 mil milhões. As compras externas da enorme dívida
americana estão a cair rapidamente. O mercado de acções
americano está pesadamente super-valorizado, e o dólar é
incerto.
Como colocou um comentador, a "doutrina Bush" assemelha-se a
"uma última tentativa de ordenar o mundo totalmente em torno das
exigências do capital monopolista americano, antes que se percam as
esperanças de poder fazer isso".
Por outras palavras, este caminho pode muito bem ser o último lance dos
dados antes de a economia americana entrar num sério declínio
como indicava a dramática queda de ontem nos mercados de
acções.
Isto significa controlar os bens petrolíferos e de combustíveis
fósseis da Ásia Central. Isto significa atacar o Iraque,
instalar um substituto de Saddam Hussein e tomar o controle da segunda maior
fonte de petróleo do mundo. Isto significa cercar um novo desafiante
económico, a China, com bases, e intimidar os líderes dos seus
principais rivais económicos, a Europa, minando a NATO, e atear uma
guerra comercial.
Acabo de visitar os Estados Unidos, e é claro que muitas pessoas ali
estão preocupadas. E muitas não ousam dizer isso. Seus pontos
de vista são raramente relatados nos media principais americanos, os
quais são auto-censurados e controlados, talvez como nunca antes.
Em contraposição, o ar está espesso com visões de
pessoas como Charles Krauthammer, do Washington Post: "Unilateralismo
é a chave para o nosso êxito", escreveu ele, ao descrever o
mundo dos próximos cinquenta anos: um mundo sem protecção
de ataques nucleares ou danos ambientais para os cidadãos de qualquer
país excepto os Estados Unidos; um mundo onde "democracia"
nada significa se seus benefícios estiverem em divergência com
"interesses" americanos; um mundo em que expressar divergência
em relação a estes "interesses" marca uma pessoa como
terrorista e justifica vigilância e repressão.
Só há um caminho para resistir a tal potência bandida.
É falar alto e claro e é urgente. Se o nosso governo
não o faz, devemos faze-lo nós.
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[*]
Jornalista britânico. Autor de livros e de filmes. "The New Rulers
of the World",
acaba de ser publicado pela Verso. O documentário "Paying the Price:
Killing the Children of Iraq", foi difundido no ano passado pela televisão
britânica. Os filmes e escritos de Pilger podem ser vistos em
http://pilger.carlton.com/.
O original deste artigo encontra-se em
Mirror.co.uk
. Trad. J. Figueiredo.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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