Uma polémica e contraditória
entrevista de Noam Chomsky
"Quando estes políticos começam a falar sobre valores você
põe a mão no bolso para ter a certeza de que a carteira ainda
está ali"
por Regina Zappa
- Ao olhar para trás, para toda sua trajectória académica
e militância política, o sr. se sente satisfeito com o que
conseguiu? E o que acredita que conseguiu?
Muitas coisas aconteceram nos últimos 40 anos que foram
alcançadas por muitas pessoas diferentes que trabalharam juntas ou
paralelamente de maneiras diferentes, mas muitas vezes interagindo. Acho que o
resultado final foi bastante substancial. Os Estados Unidos são hoje um
país muito diferente do que eram há 30 anos. Poderia mencionar
coisas específicas que foram alcançadas. Mas não sei se
estou completamente satisfeito porque tudo que foi obtido foi parcial e ao
mesmo tempo houve muita regressão. Muitas coisas estão melhor do
que eram, mas não dá para se sentir completamente satisfeito.
O que está melhor?
Tomemos o pecado original da sociedade americana, o que aconteceu com a
população indígena. Em 1969, o principal estudo sobre
história diplomática americana feito por um historiados muito
bom, Thomas Bailey, descreve o que aconteceu depois da Revolução
americana. Os colonizadores se voltaram para a derrubada de árvores e
matança de índios, expandindo suas fronteiras naturais. Hoje,
mesmo no país de Jesse Helms, você não sai por aí
matando índios e árvores. Em 1969, minha filha estudava numa
escola de Lexington, uma cidade de profissionais de classe média. Ela
tinha um livro de História na oitava série e por curiosidade fui
dar uma olhadela para ver como eles tratavam a questão dos massacres de
índios. Para minha surpresa, o livro contava como os colonizadores
esperavam os homens saírem e entravam na aldeia, matando mulheres e
crianças. É muito positivo que essas coisas sejam contadas assim.
Hoje, não há nenhuma região do país onde se possa
enganar os alunos a respeito disso. O mesmo é verdade no caso da guerra
do Vietnam. Só em 1966 é que começou a haver
reuniões contra a guerra. Em 1965, não consegui que professores
de Harvard assinassem um documento suave que criticava a guerra.
Eles tinham medo?
Não, eles achavam que não havia problema em os EUA atacarem outro
país. Quando Kennedy começou a bombardear o Vietname do Sul
não houve protestos. Na realidade, se você perguntasse aos
professores de Harvard quando os EUA atacaram o Vietname do Sul eles não
saberiam do que você estava falando. Isto já não acontece.
Nos anos 80, quando Reagan tentou fazer o mesmo na América Central,
houve reacção aqui dentro. Agora, no caso de um conflito com um
inimigo mais fraco, não só tínhamos que derrotá-lo,
mas tínhamos que fazê-lo de forma rápida e firme porque o
governo não encontraria mais apoio popular interno. Portanto, não
podemos mais perpetrar longas guerras contra inimigos mais fracos, o que tem
sido a base da história americana. Portanto, essa é uma
mudança bastante radical em 300 anos de História, desde a
década de 60.
Então a comunidade académica mudou?
A comunidade académica não mudou muito. O que mudou foi a
opinião pública. Por exemplo, em relação à
guerra do Vietname, as opiniões dos sectores mais instruídos da
população e do público em geral divergiam totalmente. A
posição mais crítica desses sectores com elevado grau de
instrução, por exemplo, em Harvard, é que a guerra foi um
erro desastroso que começou a partir de boas intenções. O
público em geral não concorda. Pesquisas de opinião feitas
entre 1970 e 1990 indicam que cerca de 70% creditam que a guerra não foi
um erro, mas uma decisão fundamentalmente errada.
- O sr. fala muito em doutrinação e em como a sociedade
está sujeita a isso através de vários meios, inclusive os
meios de comunicação. Como explicaria, então, a
mudança de opinião do público em geral?
Doutrinação funciona melhor entre as pessoas mais
instruídas. As mudanças ocorreram, na sua maior parte,
através do activismo político. É difícil definir
como a cabeça das pessoas muda, mas uma série de questões
estavam brotando ao mesmo tempo. Por exemplo, a questão do feminismo.
Existe hoje uma atitude totalmente diferente daquela de 30 anos atrás.
- Como se encara o feminismo hoje?
Hoje já há uma aceitação dos direitos da mulher. A
ideia de que o mundo da mulher deve girar em torno do cuidado com a
família e das vontades do marido passou a ser vista como uma
posição sustentada por extremistas. Na década de 60, esta
seria a atitude considerada normal. Uma vez, uma outra filha minha que estava
na escola na mesma cidade que mencionei antes resolveu fazer curso de
técnicas industriais. Só os garotos podiam fazer e ela achou que
isto era errado. Então ela foi chamada pelo orientador que explicou que,
se ela fizesse o curso estaria tirando o lugar de um menino que poderia depois
estudar engenharia ou mecânica. Aí ela perguntou: e se eu quiser
me tornar uma engenheira aeronauta? O orientador não sabia que responder
porque isso nunca lhe tinha ocorrido. Hoje isso tudo é muito diferente.
Hoje somos um país muito mais civilizado. É isso num
espaço de 30 anos.
- Nas décadas de 60 e 70 o sr. nadava contra a corrente. Isso o empurrou
para as margens?
Certamente.
- Apesar disso, o sr. acredita que conseguiu influenciar a sociedade dominante?
Se você quer dizer os sectores articulados da sociedade, talvez
não. Mas se você se refere à sociedade em geral, não
apenas eu, mas muitos outros conseguiram. Eu passo agora boa parte do meu tempo
fazendo conferências para milhares de pessoas. Na década de 60, eu
falava para meia dúzia. Não fui eu quem mudou, mas o país.
Mas as coisas não mudaram em Harvard Square (onde fica a Universidade de
Harvard). Nunca sou convidado para falar na Escola Kennedy de Governo de
Harvard. As estações de rádio públicas de Boston e
as rádios nacionais públicas, consideradas como media liberal, ou
criticadas por isso, já disseram que sou o único liberal que
Harvard não publica [seus livros], mas, em relação ao
público em geral, não dá nem para começar a
responder aos convites para fazer palestras.
- Então, com excepção de Harvard...
Harvard Square é apenas simbólico.
- O sr. acha que há um EUA mais democrático? Existe democracia
verdadeira neste país?
Não. Há uma cultura mais democrática, mas há uma
sociedade organizada muito menos democrática. A democracia deteriorou-se
substancialmente nos EUA em termos do seu funcionamento e a
população está consciente disso. Mais de 80% da
população acha que o governo não funciona, que trabalha
para uma minoria e para interesses especiais.
- É isso que o sr. quer dizer com "funcionar"?
Há uma pergunta específica nas pesquisas Gallup que diz: a quem
você acha que o governo serve? Uma das respostas é: a interesses
especiais, não ao povo. Antes essa resposta representava 50%. Hoje
é 80%. Portanto, se o governo trabalha para poucos e para interesses
especiais, então não funciona para o povo. E isso é um
percentagem bem alta que responde. Eu suspeito que isso esteja ligado ao facto
das pessoas não votarem.
- Por que as pessoas ficam tão alienadas? Elas não acreditam em
votar para mudar a situação?
Se elas tiverem alguém em quem votar. Suponhamos que se tenha dois
republicanos moderados, ninguém se interessa. Mas há uma
diferença entre política pública e opinião
pública. Por exemplo, a discussão principal no ano passado era a
questão do equilíbrio orçamental. Só se
falava nisso nos media. Era a manchete de todos os jornais. Até
que o governo fechou no ano passado. Mas o público não se
interessou. E algum jornal disse que o público se opunha ao
equilíbrio do orçamento? Assim que os políticos tiveram
que se defrontar com o público a discussão acabou. Enquanto eles
falavam para o New York Times, o Wall Street Journal, o Boston Globe, a NPB
(National Public Broadcasting, a rádio pública) e os ricos eles
podiam dizer que a prioridade máxima era o equilíbrio
orçamental. Mas quando falam para o público, não
podem dizer a mesma coisa. Repare o que aconteceu na campanha. Quem foi o
primeiro candidato a desaparecer nas primárias no começo do ano?
Foi Phil Grant. Sua campanha tinha muitos recursos mas ele era diferente dos
outros candidatos: ele era o representante dos republicanos no Congresso. E ele
morreu instantaneamente. Há anos vinha-se lendo que estávamos
diante de uma avalancha conservadora, uma revolução, e seu
único deputado teve morte instantânea. Ele poderia prever isto se
lesse as pesquisas de opinião em vez dos jornais.
- O sr. acha que ao mudar o discurso e se voltar para as
preocupações verdadeiras das pessoas...
Ninguém acredita numa palavra. Eles continuam tentando equilibrar o
orçamento.
- Então as pessoas não acreditam?
Não acreditam em nada. A questão é que você
não pode entrar numa primária anunciando que vai cortar a verba
da saúde ou da educação. Aí eles começam a
falar sobre valores. Quando os políticos começam a falar sobre
valores você põe a mão no bolso para ter a certeza de que a
carteira ainda está ali. Mas eles falam sobre valores porque não
conseguem pensar em outra coisa para falar. Então eles continuam a
trabalhar nisso, no orçamento porque o mundo dos negócios e a
comunidade financeira estão interessados, mas a população
não. Então é seu papel, se você for um jornalista,
de suprimir tudo isso. Essas são coisas muito dramáticas.
- E quanto à diferença entre republicanos e democratas?
A diferença é que um quer equilibrar o orçamento em
sete anos e o outro em sete anos e meio.
- E o público em geral? Votar democrata é mais ideológico?
Não é ideológico. Se você olhar bem, são
questões como personalidade que contam na hora da escolha. Mas
não diferenças de política, ou melhor, há pequenas
diferenças de políticas, mas são subtis.
- Mas nada que faça grande diferença?
Não há ninguém que apareça e diga: queremos um
programa de criação de empregos e não equilibrar o
orçamento. Isso é o que o público quer, mas não
é o que o mundo dos negócios quer. E esse é o mundo dos
negócios. Mas esse é o tipo de coisa que não se é
permitido saber em Harvard Square. O mundo dos negócios quer equilibrar
o orçamento. E não é apenas o orçamento, é
cada posição. Há duas partes do orçamento, por
exemplo, cujos custos estão subindo e não sendo equilibrados. Uma
é o Pentágono e a outra é o sistema de segurança,
as prisões. Essas duas coisas estão subindo e os chamados
conservadores as estão empurrando para cima. O público quer isso?
Não. Mas não importa. Newt Gringrich quer e outros também.
E eles o querem por uma razão muito boa: eles entendem que o sistema do
Pentágono é a técnica pela qual o público financia
a indústria de alta tecnologia. Você força o público
a financiar a indústria de alta tecnologia através dos sistema do
Pentágono. Essa é sua principal função. Tome o
exemplo da NPR (rádio pública). Na campanha eleitoral de 1994,
quando Newt Gringrich era o grande herói e se preparava para ser eleito,
os republicanos caíram de pau nos democratas por causa da
política de welfare (bem-estar social). Pois bem. Tem um pequeno facto
escondido, do qual todo jornalista tinha conhecimento: Gringrich ganha mais
benefícios da Previdência em seu distrito que qualquer outro
candidato. Seu distrito recebe mais subsídios de bem estar
(welfare)
que qualquer outro distrito suburbano do país. Ninguém escreveu
sobre isso.
- Isso nunca foi publicado?
Não. Uma vez dei uma palestra na Carolina do Norte na época da
eleição. Pouco depois da palestra, perguntaram a um director da
emissora porque a rádio pública não divulgava isso. Ele
simplesmente disse que esse facto não era
cutting edge news
(notícia quente). E ele sabe que não se expõe o facto,
por exemplo, que o sistema do Pentágono é uma forma de transferir
os recursos públicos para os ricos.
- O sr. acha que a anunciada revolução republicana morreu na
praia?
Não havia nada para morrer. Em 1994, os republicanos tinham cerca de 20%
do eleitorado. Foi um aumento de 2% comparado a 1992, portanto, uma
mudança muito pequena. E essa pequena adesão foi proporcionada
quase que toda por estudantes saídos do curso secundário,
brancos, começando a trabalhar, que se afastaram do Partido Democrata.
Não porque eles adoravam os republicanos, mas porque odiavam os
democratas. E tinham uma boa razão para odiá-los: seus
salários eram péssimos. É a raiva do homem branco se
voltando contra os democratas. E por falar nisso, poucos democratas concorreram
à eleição baseados num programa ao estilo New Deal. Esses
se deram bem. Os novos democratas, os democratas do Clinton, que eram
basicamente republicanos, é que foram esmagados. Mas a mudança
foi muito pequena. Nunca houve uma revolução republicana. Outra
coisa interessante sobre as primárias é que ninguém falou
sobre o Contrato com a América. E por quê? Porque o público
odeia isso. Quando a eleição foi realizada, apenas cerca de um
quarto do público tinha ouvido falar disso. E quando perguntavam a essas
pessoas sobre sua posição, elas diziam ser totalmente contra.
É assim que funciona o sistema. Pode-se manter um afastamento
substancial entre opinião pública e política de governo.
Desde que você não diga às pessoas qual é a
política.
- Mas há muitos jornalistas que têm consciência disso.
Então eles são uns mentirosos fantásticos.
- Alguns tentam lutar contra essa tendência.
Muito poucos.
- Qual jornal deste país o sr. considera mais confiável?
Se eu tivesse que ler os jornais de apenas um país leria os jornais
deste país (EUA). Não que sejam mais confiáveis, mas eles
apresentam muita informação. O que eu disse antes estava na
imprensa de alguma maneira, só que ficou meio escondido. Se você
lê o Wall Street Journal, o New York Times, o Boston Globe, o Washington
Post, o Christian Science Monitor, você encontra uma boa quantidade de
informação confiável. A maior parte apresentada na forma
de histórias. A informação está lá mas
você tem que saber o que está procurando. E a não ser que
tenha o tempo e a energia... Para a maioria das pessoas isso é
irrelevante. Elas não têm o tempo, os recursos e o conhecimento.
- Elas apenas querem os factos?
Na verdade, elas nem querem os factos. Não estão interessadas nos
jornais. Obtêm sua informação da televisão. Elas
não têm tempo para a imprensa. É trabalho demais tentar
separar os pedacinhos de verdade de toda a desinformação
maciça. Mas está lá. Essa é parte da técnica
da propaganda.
- E isso é parte do que o sr. costuma chamar de
doutrinação?
É doutrinação quando você está falando dos
sectores mais instruídos da sociedade, e é mais
marginalização quando se trata dos sectores da sociedade com
menos instrução. Se você olhar o mapa dos media como
um todo, estamos então falando de um sector pequeno, das classes que
tomam as decisões, que têm educação
universitária. A maior parte do público vê televisão
ou se liga na indústria de diversão e o objectivo desses
media é marginalizar, transformar essa gente em consumidores
passivos.
- E qual é, na sua opinião, a verdadeira função dos
media?
Os media deveriam ser o que todos anunciam no discurso de formatura: o
alicerce da sociedade democrática, que desafia a autoridade e oferece ao
povo a oportunidade igual de aprender e participar. Tudo bem com o discurso,
só que as pessoas que estão discursando não sabem que elas
estão mentindo, na pior das hipóteses, ou sabem que estão
mentindo, mas acham que esta é a única maneira de funcionar. Se
você quer saber o que os media devem ser, leia a decisão da
Suprema Corte americana quando ela deu permissão ao New York Times para
publicar os Documentos do Pentágono [quer revelaram toda a
história suja por trás da Guerra do Vietname ou o artigo de
Anthony Lewis [jornalista americano] falando sobre liberdade de imprensa.
- O sr. acha muito difícil desenvolver um pensamento independente?
Difícil, mas não impossível.
- Mesmo com todo o preparo que uma pessoa pode ter ou é aí mesmo
que reside o perigo?
Uma boa dose de educação e socialização e
treinamento para a obediência ajudam. E se você tiver cursado boas
escolas, como eu cursei e você também, a sua história foi
sendo moldada para a obediência. Para a maioria da
população, a educação é uma forma de
colocá-la no seu nicho na sociedade e de fazer com que elas não
causem problema. De fazer essas pessoas prestarem atenção em
outra coisa esporte, moda, comédias, mas não nos perturbe.
Por exemplo, o fenómeno Bill Gates e seus planos para a Internet. Se as
pessoas estiverem sentadas na frente de seus computadores, apertando
botões para satisfazer formas artificialmente criativas, você
não precisa se preocupar.
- Por falar em Bill Gates, o sr. que é professor aqui no MIT
(Massachusetts Institute of Technology) e que caminha por esses corredores
respirando tecnologia, como vê a chamada revolução
tecnológica deste fim de século? Trata-se de um mal, um bem, tem
os dois componentes? Vai privilegiar aqueles que têm mais acesso à
informação?
É como qualquer outro tipo de tecnologia.
- Mas desta vez é chamada de revolução.
Certamente tem grandes efeitos. Como a revolução das
telecomunicações, que foi bem real e que levou a essa enorme
explosão do capital financeiro que está, entre outras coisas,
minando as opções democráticas. Actualmente há
cerca de 1 trilião de dólares girando por dia, sendo a maior
parte de capital especulativo passeando pelos mercados financeiros, procurando
as menores taxas internacionais e os menores salários e isso tem um
tremendo efeito social. Nos Estados Unidos também. No governo Reagan, o
Banco Central (Federal Reserve Board) estimou que cerca de metade do
declínio na taxa de crescimento do país foi atribuído
à especulação. Esse foi o efeito significativo da
revolução das telecomunicações. Está fazendo
este país se parecer mais com o Brasil: um pequeno sector de pessoas
extremamente ricas e um sector enorme de pessoas sofrendo miséria.
Criou-se um abismo maior. Esse é o maior efeito da
revolução das telecomunicações, apenas
através dos mercados financeiros. É claro que isso não foi
a única coisa que causou essa situação. Foi preciso
também desregulamentar o mercado, como Nixon fez. Mas este foi um efeito
gigantesco. Isto não é inerente às
telecomunicações, mas é provocado pela maneira como
funcionam as telecomunicações sob condições de
poder específicas. Sob outras condições de poder, a mesma
tecnologia poderia ter uma abordagem mais libertadora. A tecnologia em si
não traz um rótulo dizendo 'vou ajudar?' ou 'vou causar danos?'.
Depende das condições sociais sob as quais ela é usada. A
tecnologia da impressão poderia libertar as pessoas ou
aprisioná-las. A automação pode ser usada para eliminar
gerentes, ou para colocar a produção sob controle dos
trabalhadores mais especializados. No segundo caso, eles passam a ter maior
controle administrativo, o que é um aperfeiçoamento do poder e
não uma distorção.
- É muito comum dizer hoje que a Internet é um meio de
informação intrinsecamente democrático. O sr. concorda?
Um por cento da população mundial tem acesso à Internet.
Mesmo nos países ricos, são as pessoas relativamente
privilegiadas que têm acesso ou pessoas ligadas a
instituições. Mas quantas pessoas podem? Agora, quando você
olha a Internet é difícil dizer. A Internet em si tem todas as
possibilidades. Pode ser usada para inundar
(swamp)
as pessoas com propaganda, criando necessidades artificiais, anúncios.
Uma sociedade que gasta um trilião de dólares todo ano só
com marketing... Isso é basicamente engodo e manipulação.
Um trilião não é uma pouca coisa. É cerca de 7% do
PIB. E com a Internet disponível, uma grande parte disso vai passar para
esse veículo. Esse tipo de coisa vem acontecendo desde o inicio da
Revolução Industrial, mas tem aumentado recentemente. Você
quer controlar as pessoas e fazer com que elas acreditem que precisam de uma
coisa que elas se matam para conseguir ou gastam todo seu tempo perseguindo
aquele objectivo. Essa é uma maneira fantástica de controle. A
Internet pode ser usada para isso. E pode ser usada para fornecer
informação. Mas depende de quem esta manipulando.
- Depende então de quem está fornecendo a
informação?
É de quem tem acesso. Como toda tecnologia moderna, ela foi patrocinada
pelo governo, mas agora que está desenvolvida, ela foi entregue ao lucro
privado.
- E essa palavra moderna para relações internacionais que
é globalização? O que o sr. pensa da doutrina que prega a
abertura dos mercados, da economia...
Sim, excepto a sua própria. Você nunca abre a sua própria
economia. Você prega isso para os outros.
- Mas, por causa disso, não se fala mais em desenvolvimento. A palavra
parece que saiu de moda.
Quem não fala? O Consenso de Washington não fala. Mas a ONU fala.
Ela está pressionando para que seja realizada uma
convenção internacional sobre o direito ao desenvolvimento que
tem sido vetada pelos Estados Unidos. Não se fala no assunto em Harvard
Square, mas quando se sai desse tipo de lugar, se fala nisso o tempo todo. No
Brasil, as elites não falam nisso porque é a mesma coisa que
Harvard Square, mas vá ao interior do país que você
verá sobre o que se fala. Se você for à Índia
é a mesma coisa. As pessoas ricas ficam falando sobre as maravilhas do
neoliberalismo. Mas vê que o assunto é totalmente outro. Eles
falam sobre desenvolvimento. Portanto, depende da pessoa com quem você
está falando.
- Bem, as pessoas que influenciam ou que elaboram a política.
Claro. Eles estão numa posição de poder, tomando as
decisões, justamente porque eles servem ao poder ou têm poder.
Eles falam sobre essas coisas, mas isso não é o que todas as
pessoas pensam. Mesmo na ONU, a convenção sobre o direito ao
desenvolvimento é muito falada. É por isso que os Estados Unidos
vetaram. A ideia da convenção chegou à ONU e foi votada,
mas os EUA vetaram. Os EUA não assinam a maioria das
convenções, mas desta vez eles a bloquearam.
- Mas a tendência na maioria dos países é abrir a economia
e seguir os passos da globalização.
Isso é muito bom para os grupos de liderança. Por exemplo, veja o
México. Ele era a menina dos olhos das instituições
financeiras internacionais. Era um grande exito, um milagre económico
total, funcionava perfeitamente para quem deveria funcionar. Para a
população foi uma catástrofe. Foi óptimo para os
que desenharam o experimento, foi muito bom para investidores estrangeiros,
para bilionários. Então foi um grande exito para as pessoas que
idealizaram o projecto. Agora, eles têm que admitir que foi, na verdade,
uma catástrofe por causa do colapso do sistema. Se voltarmos na
História, toda experiência que observei, começando em 1793,
quando os britânicos impuseram sua colonização permanente
na Índia, que ia ser uma grande experiência em engenharia social.
Foi um desastre para o povo, mas um exito para o investidor britânico.
É assim que as experiências normalmente acabam: muito bem para os
idealizadores e uma tragédia para a população que
está testando o projecto.
- E o Brasil?
O Brasil é do mesmo jeito. O Brasil foi tomado pelos EUA em 1945 e foi
uma das áreas de testes de métodos científicos de
desenvolvimento do capitalismo americano. Os técnicos americanos tomaram
grandes decisões e se orgulharam muito do seu projecto. Eles se
orgulhavam inclusive de imporem uma ditadura neonazista. Esse teria sido um
passo maior para se chegar à liberdade em meados do século 20,
segundo disse o embaixador de Kennedy, em 1964. O Brasil era o queridinho
latino-americano da comunidade empresarial. Até 1989, continuava a ser
tratado como um exito fantástico para o capitalismo americano. De
repente, essa história desabou.
- Começou a desabar pouco antes de 64.
Sim, começava a tomar outro rumo, mas aí veio a ditadura militar
e voltou a ser o queridinho. E permaneceu assim até 1989, quando veio a
explosão da bolha económica
(economic flap)
.
- Aí perdeu-se o interesse?
É, porque os mesmos métodos que todos louvavam como capitalismo
americano, de repente viraram socialismo de Estado. Não deu mais certo.
Mas isso é apenas rotina. Enquanto isso, muita gente lucrou. Os ricos no
Brasil estão muito bem, estão entre os mais ricos do mundo, os
investidores estrangeiros estão muito bem e, enquanto isso, a
população está passando fome. O Brasil tem
estatísticas de qualidade de vida comparáveis às da
Albânia. Poderia ser um dos países mais ricos do mundo. Acho que
em má distribuição de renda é batido apenas pela
Guatemala. Mas a América Latina, de uma maneira geral, é a pior
região do mundo. Está repleta de milagres económicos e
experimentos que sempre funcionaram muito bem. O neoliberalismo, por exemplo,
que de novo não tem nada. Estes são exactamente os mesmos
métodos com os quais a Grã-Bretanha desindustrializou a
Índia e se enriqueceu. Com algumas adaptações, essa
política terá o mesmo efeito: a intenção é
essa e é isso que ela vai fazer. Enquanto isso, os países ricos
ficam mais ricos. Como digo, Newt Gingrich se assegura sempre de receber
bastante bem estar dos EUA para seu eleitorado rico. Os EUA se encaminharam
para abrir seu mercado e reduzir as tarifas em 1945, pela mesma razão
que os britânicos o fizeram em 1845. Mas os britânicos o fizeram
apenas depois de 150 anos de proteccionismo, quando eles já estavam
tão à frente de todo mundo que supuseram já ser seguro
abrir a economia. Mesmo então, eles exportavam 40% de seus produtos para
as colónias. Por volta de 1945, os EUA já eram quase totalmente
dominantes e achavam que abrir o mercado poderia ser vantajoso, então se
sentiram perfeitamente à vontade para reduzir as tarifas.
- Por que era vantajoso?
Em toda sua história, os EUA sempre foram, extremamente proteccionistas.
Mas em 1945, parecia uma boa jogada diminuir as tarifas. Ao mesmo tempo, eles
trataram de debilitar radicalmente o mercado livre ao instituir o sistema do
Pentágono, que é simplesmente um sistema que joga as verbas do
Estado na indústria de alta tecnologia. E isso é uma
violação radical do mercado livre. Então, tá.
Nós vamos reduzir as tarifas porque esse jogo nós já
ganhámos. E enquanto isso, vamos garantir que o público continue a
financiar vários sectores da indústria, porque não
queremos mercados livres. Bem, por volta da década de 70, os EUA
já não estavam indo tão bem no comércio,
então o que aconteceu? Reagan dobrou as tarifas. O governo Reagan foi
mais proteccionista que todos os outros governos do pós-guerra juntos.
Mas para os outros, continuava a retórica do mercado livre. Não
para nós. Eles também aumentaram o sector estatal da economia.
- Diante desse panorama, que deveria um país como o Brasil fazer?
O Brasil é um país grande, tem muitas opções. A
primeira coisa que o Brasil tem de fazer é controlar os seus ricos. Uma
das diferenças entre os países em desenvolvimento do Leste
asiático e os países da América Latina, é que
qualquer estrato das classes ricas está bastante sob controle. O Estado
é forte o suficiente não só para controlar o trabalho, mas
também o capital. Assim você não tem o capital voando para
Formosa ou para a Coreia do Sul. Na verdade, o Japão nem mesmo permitiu
a fuga de capitais até que sua economia estivesse bem forte. Na
América Latina, existe uma fuga de capitais imensa, que chega perto do
volume da dívida externa. Grande parte dessa dívida poderia ser
paga com esse fluxo de capitais. Outra coisa que não há no Leste
asiático e que há na América Latina é um enorme
défice comercial de importações de produtos
supérfluos. Na América Latina há uma enorme
importação de supérfluos por causa da profunda
divisão das sociedades e os ricos importam produtos como Mercedes Benz.
No Leste asiático isto não acontece. Lá existe uma
sociedade muito mais igualitária, onde as importações
são controladas com muito mais cuidado para suprir as necessidades dos
países. Só esses dois factos já fazem uma grande
diferença. Significa que os asiáticos não têm uma
dívida nem um défice avassaladores. E há outras coisas.
Como outros países, eles protegeram seus mercados, mas o fizeram com
eficiência. O fizeram de forma a criar a base para a
promoção das exportações. A América Latina
é muito mais aberta aos mercados internacionais e muitos dos problemas
são consequência desse facto. Por razões históricas
e outras, o Leste Asiático não é. Esses são
países, sobretudo Coreia do Sul e Formosa, que foram colónias
japonesas. Os japoneses tratavam suas colónias de forma muito diferente
da Europa. Eles eram brutais, mas desenvolviam suas economias. Então,
essas colónias se desenvolveram tão rapidamente quanto o
Japão, ou até mais rápido. O que certamente não
é verdadeiro em relação aos EUA com as Filipinas, ou a
Grã-Bretanha com a Índia, ou a Holanda com a Indonésia.
Eles arruinaram suas economias. O Haiti era um dos países mais ricos do
mundo antes dos europeus chegarem lá. O Japão desenvolveu suas
colónias e criou bases para o desenvolvimento social. É claro que
há todo tipo de diferenças específicas, mas elas mostram
que tipo de coisas países ricos como o Brasil podem fazer.
- Agora mudando radicalmente de assunto. Porque a esquerda nunca foi uma
força poderosa nos Estados Unidos?
Os EUA são um país bem interessante. Especialmente para uma
sociedade guiada pelo business. Os EUA foram uma sociedade criada, que
não cresceu de alguma coisa que já estava organicamente ali.
Então, até certo ponto era uma tábua rasa. A
população indígena foi dizimada, os colonos chegaram.
Não havia instituições tradicionais, então
prevaleceu o sistema feudal, com a Igreja, etc...E foi o único
país que foi desenhado de uma forma específica. A
Constituição foi moldada para ser de uma determinada forma. E foi
tudo armado para ficar essencialmente sob controle do processo de business.
Aí as coisas se desenvolveram. Os EUA têm uma história de
sindicalismo muito violenta. Nunca desenvolveu o contrato social que os
países europeus têm, que, até certo ponto, saiu de certas
instituições tradicionais que os Estados Unidos não
tinham. Aqui existia a ideologia capitalista e ela dizia que ninguém tem
direitos humanos, você só tem o direito de entrar no mercado de
trabalho. A Europa nunca instituiu isso por causa de toda uma série de
coisas complicadas. Aqui, o trabalho foi brutalmente reprimido. Centenas de
trabalhadores estavam sendo mortos nos EUA no começo do século.
Os trabalhadores americanos só tiveram direito de se organizar em 1935.
Esses direitos há muito existiam na Europa. Aqui era uma sociedade muito
rica, então era fácil convencer as pessoas a desistir dos
direitos em troca de bens. Na década de 20, os trabalhadores americanos
não tinham nem uma fracção dos direitos dos trabalhadores
europeus, mas tinham muito mais bens. É um país muito livre, mas
extremamente opressivo.
- O que aconteceu ao movimento sindical?
Logo depois do primeiro movimento de organização de direitos de
1935, começou uma enorme propaganda do business, que foi interrompida
durante a guerra e retomada logo depois, que incluía a indústria
de relações públicas, de diversão,
televisão, media, etc. Elas tinham basicamente dois
papéis: um era retractar o sindicalismo como sendo um demónio e o
outro botar as pessoas contra o governo federal. Porque o governo federal
é a única força suficientemente forte para enfrentar os
interesses das corporações, que querem eliminar tudo e repassar
tudo para os estados, onde pode haver controle. E isso envolve uma imensa
propaganda. Que você vê em todo lugar, dos media da elite
até os seriados de crimes na TV. Na TV, se você tem um seriado com
um agente do FBI e um policial local, o sujeito do FBI vai ser o mau e o
policial vai ser o bom. Tudo é muito bem planejado: destruir os
sindicatos e destruir qualquer ideia de que o governo pode ser um instrumento
que as pessoas podem usar em seu próprio benefício. Ele tem que
ser seu inimigo. O governo e os sindicatos são inimigos. As
corporações não existem - são só
aqueles sujeitos bonzinhos que estão aí para ajudar.
- E os sindicatos?
Não acho que os sindicatos, os líderes sindicais, possam
eximir-se de responsabilidade. Eles compraram essa ideia e fizeram mais ou
menos um acordo: vocês dão aos nossos trabalhadores
salários decentes e nós aceitamos seu sistema. Eles tem uma
horrível reputação internacional por enfraquecer o
movimento sindical em todo mundo, incluindo o Brasil. Depois da guerra, o
sindicalismo americano foi fundamental no enfraquecimento do movimento sindical
na Itália e na restauração do fascismo. E fizeram o mesmo
em todo lugar. Horrível. Aliás, o movimento sindical americano
nada tem a ver com os trabalhadores. O AFL-CIO, o sector do sindicalismo que
fez isso tudo, é uma instituição que funciona totalmente
com verbas do governo dos EUA. Estava sabotando sindicatos na América
Central --- esse é o seu trabalho. Tudo isso faz parte do cenário
e
está preso a uma moldura que tem a ver com ideologia. Então sim,
eles tem uma grande responsabilidade sobre os rumos do movimento e estão
pagando por isso. O governo Reagan, por exemplo, informou à comunidade
de business que não iria seguir as leis e deixou claro para as
corporações que elas podiam demitir trabalhadores e não
precisavam cumprir as leis. Essa é uma sociedade dirigida pelo business
e boa parte do business são instituições
totalitárias.
- Outra vez, mudando de assunto. O sr. acha que a Acção
Afirmativa acaba aprofundando as divergências entre as raças.
Será essa discriminação positiva um paliativo ou uma
política necessária? O facto de grupos preservarem suas culturas
divide a sociedade em compartimentos?
Como com a tecnologia, depende também de como é feito. A
Acção Afirmativa, se ela é usada para compensar os efeitos
perversos da discriminação do passado, no caso das mulheres e das
minorias, ela é uma coisa boa. Mas claro que ela será usada por
demagogos para insuflar o ódio racial e o ódio às
mulheres. Esse é seu trabalho e seu trabalho é controlar as
pessoas quando elas se odeiam e se temem. Isso tem que acontecer? Não.
Eu voltei recentemente da Índia onde eles têm um programa forte de
Acção Afirmativa que parece estar funcionando muito bem. E
é uma sociedade muito mais pobre. Eu acho que aqui funcionou muito bem,
mas agora está sendo usada como parte da técnica de controle
social. Desde 1980, a força de trabalho não especializada, que
constitui 70% da força de trabalho — a maioria de brancos vem
assistindo à redução de seus salários em quase 20%.
Eles tem muito com que se preocupar. Então se você os quer
controlar e se assegurar de que eles não vão cobrar das pessoas
responsáveis por isto, você insufla neles o medo e o ódio.
Você os faz odiaram outras pessoas. Culparem o programa de bem estar
social para os negros. Qualquer coisa, desde que não prestem
atenção ao que está a acontecer. Por isso há
muita propaganda que tenta argumentar contra a Acção Afirmativa
e, como toda propaganda, não é totalmente falsa.
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