A modelação da História:
Materialismo histórico, electrónica e valor

pelo Institute for the Study of the Science of Society

O marxismo é antes de tudo a ciência da sociedade. Por meio do exame e da experimentação, aplicando a teoria através da prática e, a partir desta última, refinando a teoria, podemos determinar os passos e os atractores (tomando emprestado a linguagem da teoria da complexidade) que dão forma e direcção ao desenvolvimento e às mudanças sociais.

O materialismo histórico

A base desta “ciência da sociedade” é o materialismo histórico. O marxismo estabelece-se sobre os princípios filosóficos do materialismo – que o universo existe pela “sua própria natureza material”, independentemente da consciência. O universo não é a corporificação de um “espírito universal”, ou a construção de um observador subjectivo. O universo é objectivo, reconhecível e regido por leis. "A matéria não é um produto da consciência, mas a consciência é simplesmente o mais elevado produto da matéria. O materialismo histórico aplica os princípios da dialéctica (como as coisas mudam) e do materialismo à sociedade e à história – ou seja, a história não é uma colecção de casualidades ou de intervenções divinas em acontecimentos humanos, mas sim um processo regido por leis, e a ciência da sociedade é a determinação de tais leis de forma a poder utilizá-las no trabalho revolucionário.

Karl Marx determinou que a base do entendimento da sociedade está na compreensão de como as sociedades se organizam para satisfazer suas necessidades materiais. Esta organização social por sua vez é determinada pelas forças produtivas disponíveis – a tecnologia, o conhecimento e a organização – em um dado período. Cada avanço qualitativo da tecnologia define um período, ou um estágio da história humana. Esses períodos têm formas consequentes distintas nas relações sociais e produtivas. Marx reconheceu que as relativamente móveis (pois estão em constante desenvolvimento) forças produtivas correm à frente das relativamente estáticas relações de produção (o relacionamento de indivíduos ou grupos de pessoas entre si no processo de produção), estabelecendo a base para a transformação da sociedade:

Num determinado estágio de seu desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade entram em conflito com ... as relações de propriedade nas quais ela vinham operando até então. De formas de desenvolvimento das forças de produção, essas relações tornam-se seus grilhões. Principia então uma época de revolução social. Com a mudança das bases económicas toda a imensa superestrutura é transformada mais ou menos rapidamente. (Prefácio de Uma contribuição à crítica da economia política ).

Esta observação – de que as sociedades se organizam em função da tecnologia disponível e de que uma mudança qualitativa na tecnologia disponível prepara o palco para uma mudança qualitativa das relações sociais – talvez possa ser mais bem percebida examinando diferentes períodos da história humana, e verificando que ferramentas estavam disponíveis em diferentes períodos, e como as pessoas se organizaram em torno das mesmas a fim de satisfazer suas necessidades.

Em tempos pré-históricos, os povos viviam em tribos e sobreviviam caçando animais e colhendo vegetais comestíveis. As ferramentas eram primitivas – lanças e pedras, fogo e algumas peles curtidas etc. Não havia excedente – ou seja, as pessoas mal conseguiam obter aquilo que precisavam consumir. Não havia “propriedade” e a pouca “riqueza” existente era compartilhada entre o grupo.

Em algum momento, entre 10.000 AC e 5000 AC, nossos ancestrais descobriram importantes novas tecnologias, em particular a agricultura e a criação de gado, o que lhes permitiu criar um excedente, e com isto desenvolveu-se a propriedade e surgiu a divisão de classes – alguns possuíam ou controlavam os meios de produção (neste caso, basicamente terras, animais e implementos agrícolas). Outros tornaram-se escravos, quem nada possuía, e eram tratados como propriedade dos dominadores daqueles dias. A fonte básica de poder era a força muscular, humana ou animal. As formas de organização social sofreram algumas mudanças ao longo dos séculos, mas a agricultura e a força braçal permaneceram os alicerces da produção.

A partir do início do século 18 desenvolveram-se novas tecnologias, dentre as quais o motor a vapor foi talvez a mais importante. O motor a vapor e mais tarde o motor eléctrico forneceram uma nova força motiva à produção, e esta tornou-se possível numa escala totalmente diferente. Esse período da produção industrial foi caracterizado por fábricas em grande escala que empregavam centenas de trabalhadores sob o mesmo teto. (A fábrica da Ford de River Rouge, em Detroit, chegou a ter uns 60 mil trabalhadores no seu pico de produção). Juntamente com esta revolução tecnológica, surgiam novas classes. A nova classe capitalista promoveu as novas tecnologias e os novos modos de organizar a produção e produzir riqueza e combateu as classes que defendiam a antiga agricultura e o sistema de trabalho manual. Em simultâneo com a classe capitalista emergia outra nova classe, a classe operária, que nada possuía excepto a sua capacidade de trabalho. Expulsa do trabalho na terra e sem outros meios de sobrevivência, os trabalhadores eram forçados a vender sua capacidade de trabalho aos capitalistas. Estes, por sua vez, apropriavam-se do excedente que os operários produziam, e assim tornavam-se extremamente ricos e consolidavam o seu controle da sociedade.

Um capitalista apenas pode sobreviver esforçando-se por obter mais lucros que os seus concorrentes. Aquele que falha em extrair o máximo de lucro possível é expulso do negócio pelos seus competidores. Um dos modos principais de os capitalistas maximizarem os lucros é através do constante desenvolvimento e introdução de novas tecnologias a fim de produzir mais e cortar custos. No início dos anos 1930, cientistas e investigadores, em laboratórios, desenvolveram a electrónica, aproveitando o poder dos electrões de novas maneiras. A 2ª Guerra Mundial deu um grande impulso a esta ciência e às suas aplicações ao mundo real. As novas descobertas foram combinadas com outras tecnologias para inventar os computadores, máquinas que podiam ser programadas para executar diferentes espécies de tarefas. Essas máquinas tinham capacidade para registrar e reproduzir a actividade humana, na ausência dos seres humanos. Com a domesticação de animais e o controle do vento, da água e, mais tarde, da energia a vapor e eléctrica, o homem já não era mais necessário como fonte de força física. Com a invenção de novos sistemas de transmissão, peças e engrenagens e outros maquinarias especializadas, surgidos no início do século 19, os humanos tornaram-se desnecessários como manipuladores de materiais. Com o advento da electrónica, o último posto avançado dos humanos na produção – ou seja, o de supervisor ou monitor – começou a ser substituído.

Com a generalização do uso dos computadores e das demais consequências da revolução electrónica – como a biotecnologia e as telecomunicações digitais – estamos agora testemunhando a eliminação do ser humano dos meios de produção. Embora a tecnologia desenvolva-se com rapidez e o velho sistema industrial que empregava milhares de montadores em fábricas gigantes esteja ultrapassado, hoje as relações de propriedade ainda são basicamente as mesmas da década de 1930.

Para recapitular, a tecnologia está em desenvolvimento constante, mas as relações produtivas – as relações de propriedade – não as acompanham automaticamente. Em diferentes períodos da história tem havido revoluções para reconstruir as relações de propriedade de acordo com aquilo que as novas tecnologias tornam possível. Esta visão geral é um pouco diferente de outras interpretações marxistas, que dividem a história em vastos períodos baseados nas relações sociais: “o comunismo primitivo”, a sociedade escravocrata, o feudalismo, o capitalismo, o socialismo, etc. Estas são as formas que as sociedades foram adquirindo (assim como outras); nós, ao invés disso, olhamos para o conteúdo de cada período, o fundamento tecnológico em que cada uma dessas sociedades assenta. Assim, a sociedade escravocrata ou feudal correspondeu à produção baseada no trabalho braçal e tanto o capitalismo quanto o socialismo têm como base a produção industrial.

A electrónica como uma tecnologia revolucionária

Uma nova tecnologia revolucionária força as pessoas a mudarem a organização da sociedade. A agricultura tornou possível um excedente da produção, dando lugar a novas formas de organização que entraram em choque com o antigo sistema organizado, que tinha como núcleo a caça e a colecta. O surgimento da nova e revolucionária tecnologia dos motores a vapor libertou o produtor das vicissitudes do vento e da roda d'água e mobilizou profundamente mais forças poderosas da natureza. Os campeões da produção industrial, a classe emergente dos capitalistas industriais, não podiam promover os seus interesses sem destruir as velhas relações de propriedade construídas em torno do sistema manual e agrícola.

Será a electrónica uma tecnologia revolucionária? Ou seja, estaremos na mesma conjuntura histórica de 150 anos atrás com a revolução da agricultura para a indústria eletromecânica?

Analisando casos recentes, podemos ver que a electrónica está a estender-se por todo os espectro da produção com relativa rapidez: na industria manufactureira, na agricultura, em trabalhos braçais como a construção civil e a estiva, nos escritórios, no comércio a retalho, em serviços de trabalho vivo como o de porteiro, e até mesmo em trabalhos de alta tecnologia como a programação de computadores. Podemos ver de várias maneiras como a electrónica está a reduzir a necessidade do trabalho do homem ou a substitui-lo em suas funções – o robô substitui literalmente o soldador ou o porteiro; o computador torna os poucos trabalhadores remanescentes mais eficientes através da redução do desperdício e reduz necessidades de outros produtos (assim como a necessidade dos trabalhadores que fabricavam tais produtos); a ciência doma as energias da natureza, como o uso de bactérias para produzir plástico ou insulina, ou novos materiais para transformar a luz do sol em electricidade.

O que há de revolucionário na electrónica? Por revolucionário, queremos dizer que uma qualidade é substituída por outra, diferente. Uma qualidade é aquilo que torna alguma coisa distinta, tornando-a “aquilo que ela é”. Ao longo da maior parte da história, a produção foi baseada no trabalho humano. A electrónica torna a produção possível sem o trabalho humano – porque o conhecimento, as habilidades e os esforços das gerações anteriores de trabalhadores foram capturados e incorporados às novas tecnologias. Esta qualidade – a produção sem trabalho – é que torna a electrónica uma tecnologia revolucionária, ou seja, tecnologia de uma nova qualidade.

Em 1991, o San Francisco Examinar publicou um artigo (ironicamente, na secção de anúncios de empregos) com o seguinte título: “Será que a era dos robôs produz uma sociedade sem trabalho?” O artigo era sobre o trabalho de cientistas da Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh. A meio do artigo, o autor escreveu: “Os especialistas dizem que a entrada generalizada de robôs no local de trabalho poderia elevar os padrões de vida, ao contrário de qualquer das invenções verificadas durante a revolução industrial. Mas, se os robôs têm realmente a capacidade de substituir o trabalho humano, isso levanta questões críticas.”

Questões críticas: Valor na era da robótica

Como notado acima, para compreender a sociedade devemos examinar como as pessoas estão organizadas a fim de atender às suas necessidades. Desde o tempo de Marx até ao presente, o sistema económico dominante é o capitalismo. Marx passou 25 anos a estudá-lo e resultado é O Capital. Ele principiou o seu estudo com um exame da mercadoria. Uma mercadoria é algo produzido por uma pessoa para a troca. Ela tem dois aspectos – um valor de uso, ou seja, a qualidade da coisa que satisfaz uma necessidade ou um desejo; e um valor de troca ou mais geralmente, valor, uma quantidade de trabalho socialmente necessário, que é a base para troca de mercadorias de diferentes valores de uso. Marx argumentou que o trabalho do homem é a única fonte de valor e o valor é a base de toda a economia. Os capitalistas acumulam sua riqueza pela expropriação do excedente de valor, ou mais-valia (a diferença entre o valor da força de trabalho do operário, paga como salário, e o valor criado pelo operário durante a produção). O lucro é uma forma de mais-valia.

Como observado acima, os capitalistas competem entre si para maximizar seus lucros, e uma das principais maneiras de obter o lucro é fazer com que os operários produzam mais na mesma quantidade de tempo, através da introdução de tecnologias mais poderosas e produtivas. Em qualquer dado momento alguns capitalistas estão a produzir usando a tecnologia mais nova enquanto outros utilizam tecnologias mais antigas. Quando uma mercadoria chega ao mercado, ela é trocada não pelo seu valor individual, baseado no trabalho usado para produzi-la, mas no valor médio de todas as mercadorias do mesmo tipo de vários produtores, no seu valor social. Assim, os capitalistas que fabricam mercadorias com a tecnologia mais avançada e o mínimo de trabalho realizarão uma mais-valia extra, enquanto que aqueles que usam tecnologia atrasada e mais trabalho realizarão menos mais-valia.

Ao mesmo tempo, os operários são expulsos da produção porque eles não podem trabalhar de forma tão barata como os robôs. Como os trabalhadores dependem de salários para comprar as mercadorias dos capitalistas, quando são despedidos ou forçados a trabalhar por menos, ou lançados em trabalhos a tempo parcial ou em emprêgos temporários, são compelidos a níveis de pobreza cada vez mais profundos. Com a produção baseada na electrónica, cada vez mais trabalhadores ficam permanentemente desempregados. Num extremo da sociedade um punhado de capitalistas torna-se fabulosamente rico; e no outro extremo, uma massa crescente fica divorciada de quaisquer meios para assegurar um modo de vida. A sociedade polariza-se entre riqueza pobreza absoluta.

À medida que a revolução tecnológica progride, levando adiante uma revolução económica pois os capitalistas reorganizam a produção com base nas novas tecnologias, principia um processo paralelo de destruição do valor. O valor é destruído de muitas maneiras. O valor de uso da força de trabalho – a capacidade dos trabalhadores para trabalhar – é destruído porque o capitalista já não necessita do operário para continuar a produção. Ao mesmo tempo, os capitalistas começam a sentir dificuldades em fazer circular as suas mercadorias porque cada vez menos pessoas têm dinheiro para comprá-las. Quando as mercadorias não são vendidas, seu valor não é realizado e dessa forma desaparece. Quando surge um novo produto fabricado com robôs, ao lado de outro produto fabricado com trabalho vivo, o valor do produto antigo é rebaixado ao nível do valor do produto fabricado com robôs – seu valor é destruído. À medida que as formas de produção sem trabalho se generalizam, a infra-estrutura social que fora construída para sustentar a produção industrial é também destruída assim como o investimento social é retirado das comunidades de antigos trabalhadores. Os bairros deterioram-se, a educação é sub-financiada, os serviços de saúde são abandonados e assim por diante.

Com a disseminação da produção baseada na electrónica, a organização social baseada no valor – a participação do trabalho humano na produção – começa a desintegrar-se. Na electrónica repousa a base para a destruição do sistema do valor. Ao mesmo tempo, tal como no período em que se desenvolveu a produção industrial, novas forças sociais começam a emergir para promover as novas tecnologias – para reconstruir a sociedade bem como para levar as novas tecnologias ao uso óptimo. Isso só pode ser alcançado através da propriedade pública da tecnologia e dos outros meios de produzir os bens necessários. Ao mesmo tempo, com o fim do sistema salarial, um novo sistema de distribuição é exigido – um sistema baseado na circulação da riqueza da sociedade de acordo com as necessidades. A propriedade pública dos meios de produção, e a distribuição de riqueza sobre nenhuma outra base senão as necessidades, são os alicerces da economia comunista, a forma que permite o uso óptimo da produção baseada na electrónica.

Outros documentos disponíveis (em inglês):

Documento 1: Ciência e doutrina
Documento 2: O marxismo como corrente científica dentro do comunismo
Documento 3: Como e porque as coisas mudam
Documento 4: o texto acima
Documento 5: Revolucionários – O papel do indivíduo
Documento 6: Revolução – A linha de marcha
Documento 7: Aplicando a ciência da sociedade: O comércio de escravos africanos, o capitalismo e a ideologia da raça
Documento 8: Aplicando a ciência da sociedade: O mundo antes de 1492
Documento 9: Materialismo histórico: A Guerra Civil nos Estados Unidos

O original deste documento encontra-se em
http://www.scienceofsociety.org/inbox/res4.html
Tradução de Maria Helena D Eugenio.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info

14/Dez/02