Double dip, a saída em W torto

O alfabeto da recessão A perversão deste modo de produção, agora globalizado, torna-se ainda mais evidente quando a conjuntura se torna recessiva. Verifica-se então que a recessão também se globaliza e, em simultâneo, que se sincroniza. As bancarrotas de milhares de milhões de dólares já verificadas nos EUA, e as muitas outras que ainda estão por vir, têm repercussões pelo mundo afora.

As autoridades americanas estão impotentes para fazer o que quer seja de útil. Já não há espaço para novas reduções da taxa de juros, e as reduções anteriores que se fizeram não reactivaram a economia americana. Estão-se assim a confirmar todas as análises efectuadas este ano pela Monthly Review, reproduzidas por resistir.info (ver A nova face do capitalismo: Crescimento lento, excesso de capital e uma montanha de dívida ). Há poucos meses atrás falava-se em saídas para a crise. Discutia-se se ela seria em U ou, segundo os mais optimistas, em V. Hoje já ninguém fala disso. Fala-se sim da saída em L, ou seja, de uma não saída. Pior, fala-se do "double dip" , o segundo mergulho que se segue a um breve e momentaneo ascenço. resistir.info propõe que tal "saída" seja denominada saída em W torto, pois a cava direita da letra está a um nível inferior.

A super-produção e super-capacidade de produção na economia real americana leva à brutal esterilização de capital que agora se verifica. Ela traz pesadas consequências para todo o mundo. Os reflexos desta crise no plano monetário e financeiro atingem igualmente não só a sociedade americana como toda a população mundial. Os mais duramente atingidos serão os mais dependentes do mercado americano

A senilidade deste modo de produção, como dizia Samir Amin, é um facto. Mas entre a senilidade e a consciência da senilidade, vai uma grande distância. Para milhões de pessoas em todo o mundo o aprofundar da crise — seja ela de duplo, triplo, ou quádruplo mergulho — contribuirá para o esclarecimento e para a tomada de consciência. E a tomada de consciência, em termos históricos, sempre teve consequências.

O artigo abaixo reproduzido é da lavra de um analista financeiro de Nova York, ligado a um banco de Wall Street. Ele apresenta uma certa objectividade, ainda que enferme de uma visão parcial e quantitativista das coisas. Entretanto, vale a pena examiná-lo.

resistir.info


A globalização do duplo mergulho

por Stephen Roach [*]

Com a globalização, surge um ciclo de negócios mundial com flutuações cada vez mais sincronizadas. Ligações transfronteiriças no comércio, capital e informação atam juntos, como nunca acontecera antes, países e regiões aparentemente autónomos. Os sinais dessa convergência cíclica são inconfundíveis.

Foi certamente o que se verificou no último Outono, na sequência do choque induzido pelo terrorismo nos EUA. E pode bem ser o caso de hoje, com as probabilidades de um duplo mergulho nos EUA a aumentarem. Quais são as probabilidades de que um duplo mergulho (double dip) dos EUA possa transformar-se num duplo mergulho mundial?

A resposta, é claro, repousa decisivamente na extensão em que a economia global está sob a dependência da economia dos EUA. A esse respeito, verifica-se que o mundo hoje centrado nos EUA não proporciona um panorama tranquilizador. Pelos nossos cálculos, o crescimento da economia americana representou 40% do aumento cumulativo do PIB mundial a partir de 1995. Isto é essencialmente o dobro da participação americana de 21% na economia global (com base no esquema da paridade do poder de compra, PPC, do FMI). Este facto reflecte um surpreendente desequilíbrio na composição do crescimento global. Nos últimos cinco anos concluídos em meados de 2000, o crescimento da procura interna real foi em média de 5% ao ano nos EUA – mais que duplicando os anémicos ganhos de 2% atingidos em outros lugares do mundo. Goste-se ou não, os EUA tornaram-se os consumidores de primeira e última instância. E é precisamente isso que agora constitui um problema para o mundo como um todo. Ignorado a possibilidade da emergência imediata de uma nova fonte de crescimento – em jargão de economista, uma revitalização expontânea da procura não-EUA – uma perda de dinamismo do crescimento americano pode demonstrar-se excessivamente perigosa para a economia global mais vasta.

Os impactos serão certamente desiguais ao redor do mundo. Os parceiros americanos da NAFTA (Área de Livre Comércio da América do Norte) – Canadá e México – serão atingidos duramente. Em 2001, as exportações do Canadá para os EUA foram responsáveis por pelo menos 34% do seu PIB total; no México, essa proporção foi de 24%. O próximo nessa contagem é a região asiática, excluindo o Japão. Para o conjunto dessa região, as exportações para os EUA foram responsáveis por pelo menos 9% de seu PIB. Hong-Kong (29%), Singapura (27%), e Malásia (23%) estão no topo da lista das vulnerabilidades. A China e a Índia, entretanto, são excepções importantes no outro extremo da escala, pois as exportações para os EUA representam apenas 4,5% do PIB chinês e por apenas 2,1% do da Índia. Como estas são as duas maiores economias da região – representando dois terços do PIB baseado na PPC da área – a China e a Índia poderiam absorver razoavelmente o choque de um duplo mergulho americano nos seus agregados regionais. Mas com o resto da Ásia, excepto o Japão, muito mais dependente do ciclo de procura dos EUA, é difícil imaginar que um duplo mergulho americano não os prejudicasse.

Nos demais lugares do mundo, o impacto directo de um duplo mergulho americano seria mais nuançado. Para a Eurolandia, a taxa de exposição agregada aos EUA é de 2,6%, com altas na Irlanda (13%) e Bélgica (5%), compensadas por baixas na Espanha (1%), Itália (2%), França (2%), e Alemanha (3%). O Japão também está no extremo inferior na tabela de exposição aos EUA. Em 2001, suas exportações com destino aos EUA representaram uns meros 3,5% do seu PIB. Essas medições do impacto directo podem ser enganosas, entretanto. Mesmo que algumas regiões do mundo não estejam directamente expostas aos EUA, elas podem estar ligadas a outras regiões que sejam muito dependentes das condições da procura nos EUA. Consequentemente, na medida em que a Ásia fosse prejudicada pelos EUA, a Euroland também sofreria – apenas de um modo mais indirecto. Isto foi, de facto, o que sucedeu na queda global do comércio (global trade crunch) de 2001.

E é aí que surge o lado escuro da globalização. O 'problema' é que a globalização elevou a importância do ciclo comercial como motor do crescimento do PIB mundial. O comércio global – que atingiu um recorde de 25% do PIB mundial em 2000 – agora desempenha um papel mais importante do que nunca ao transmitir rapidamente impulsos económicos por todo o mundo. Assim, quando o ciclo de negócios cai, o PIB mundial segue logo atrás. Este é precisamente o risco no clima de hoje, visto que começamos a cortar as nossas previsões mundiais quanto ao comércio mundial a um ritmo rápido e frenético. Nossas últimas estimativas apontam para um anémico aumento de 1,9% no volume de comércio mundial em 2002. Isto é drasticamente inferior ao crescimento de 3,2% que fora estimado em Março último e representa uma subida muito insatisfatória após um raro declínio absoluto em 2001 (-0,2%). Além disso, nós apenas começamos a rebaixar as nossas previsões comerciais para 2003 – com nossa actual estimativa de um aumento de 7,3% muito inferior à estimativa feita em Março de um ganho de 8,6%.

Tudo isto pinta um quadro de um mundo muito centrado nos EUA que seria pressionado a evitar um suave remendo cíclico se a economia americana experimentasse uma recessão de duplo mergulho. Sinais antecipados de tal resposta global por simpatia já estão no ar. A Europa está a enfraquecer primeiro, com a Alemanha – de longe a maior economia da região – a abrir o caminho. Mas a confiança nos negócios deteriorou-se para todos na Euroland, e em Junho a taxa de desemprego na zona Euro atingiu a maior alta em dois anos: 8,4%.. Além do mais, um Euro mais forte, combinado com uma actividade global em perda de velocidade, significa problemas mais à frente para o potencial de exportação da região. A reflectir essas tendências, já reduzimos nossa previsão para o crescimento do PIB da Euroland para apenas 1,1% em 2001 (de 1,4%) e para 2,8% em 2003 (de 3,2%). A Ásia também está a demonstrar sinais de queda. As exportações taiwanesas estiveram abaixo das expectativas em Julho, com um declínio sequencial de 0,9% em relação a Junho. Também em Junho a produção industrial do sector manufactureiro da Malásia caiu 9% em relação ao mês anterior. Além do mais, há indicações recentes de um pico de actividade industrial na Coreia e de um enfraquecimento da procura doméstica em Singapura e em Hong Kong. Estes são sinais inconfundíveis, a meu ver, de uma notável sincronização de um ciclo de negócios centrado nos EUA.

O debate acerca do duplo mergulho está longe, é claro, de estar superado. Enquanto a maior parte dos analistas estão afanosamente a rever em baixa os seus números relativos ao segundo semestre de 2002, poucos têm admitido a possibilidade de uma reincidência total – um declínio real do PIB. De minha parte, continuo a atribuir uma probabilidade de 60-65% nesse resultado para os EUA no segundo semestre deste ano. E o fluxo de dados continua a parecer cada vez mais ameaçador – os sinais mais recentes são uma acumulação de stocks entre os grossistas maior do que o esperado, seguido de vendas mais fracas do que o esperado entre os retalhistas no mês de Julho. Trata-se de sinais clássicos que precedem os perigos cíclicos. Neste contexto, minha opinião é de que ainda temos muito trabalho pela frente com o rebaixamento das nossas previsões dos negócios mundiais. Se isto for correcto, a maior parte dos actores na economia global centrada nos EUA provavelmente vai estar no mesmo barco. Se os EUA derem um duplo mergulho, suspeito que o resto do mundo iria segui-lo rapidamente.

[*] Analista do Morgan Stanley. O original deste artigo encontra-se em
http://www.morganstanley.com/GEFdata/digests/20020809-fri.html#anchor0 .
Tradução de Marisa Choguill. Revisão de resistir.info.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

15/Ago/02