Eu estava a ler tarde da noite, aqui em Washington, um novo livro sobre os horrores da vida na prisão de Guantánamo Bay — uma das contribuições de George W. Bush e Dick Cheney para a vida após o 11 de setembro. Ontem de manhã, acordei e soube que Cheney, o vice-presidente mais marcante da história recente dos Estados Unidos, tinha finalmente batido as botas. Durante muito tempo, escrevi artigos críticos sobre Cheney para a revista The New Yorker, com a ajuda de pessoas dentro do sistema que acreditavam que havia maneiras melhores de responder aos ataques de 11 de setembro do que criar outros horrores.
No mínimo, Cheney foi igual de Bush e é amplamente considerado como talvez o vice-presidente mais eficaz da história. Os historiadores julgarão isso um dia. Por enquanto, posso dar as minhas impressões como testemunha que teve uma certa visão do funcionamento interno do seu gabinete, embora nunca o tenha conhecido nem falado com ele. Cruzámo-nos uma década ou mais depois do 11 de setembro, mas Cheney ignorou ostensivamente a mão que lhe estendi e passou por mim. Sabíamos que ele tinha um coração fraco, mas graças a um novo tratamento, ele viveu mais uma década do que o previsto, continuando a caçar e a pescar no Wyoming. Ele dizia aos seus amigos que o seu novo coração com bomba eletrónica funcionava perfeitamente, exceto que sempre que entrava na cozinha acionava a cafeteira.
Pouco depois do 11 de setembro, soube por um alto funcionário — um agente veterano brilhante, bem informado sobre o Médio Oriente — que os talibãs, então liderados pelo mulá Omar, tinham informado a Casa Branca, através da CIA, que não consideravam Osama bin Laden, o líder da Al-Qaeda, um convidado intocável após os ataques. Os Estados Unidos poderiam, portanto, vingar-se dele e desistir de uma operação planeada contra os talibãs e contra Bin Laden, que logo se tornaria impossível de localizar. Bush e Cheney ignoraram essa oferta, e a guerra começou. Bin Laden só seria encontrado e assassinado quase uma década depois, quando uma unidade da Navy SEAL recebeu a ordem de matá-lo à vista do presidente Barack Obama, cujo uso de assassinatos seletivos de supostos terroristas no exterior nunca foi totalmente explorado pela mídia.
O meu trabalho como jornalista durante a Guerra do Vietname, no final da década de 1960, levou-me primeiro ao New Yorker, depois ao New York Times, antes de regressar ao New Yorker, cujo editor-chefe na altura do 11 de setembro, David Remnick, me disse – depois de o segundo avião ter colidido com o World Trade Center – que eu passaria os próximos anos da minha carreira investigando aquilo que se tornaria a guerra dos Estados Unidos contra o terrorismo.
Desde o início, ficou claro que Cheney seria a figura-chave dessa guerra, e fiz tudo o que um jornalista de um semanário poderia fazer para penetrar lentamente nos círculos internos. Ao longo dos anos, consegui obter informações do gabinete do vice-presidente, daqueles cuja lealdade à Constituição e o senso de proporção política e militar — e da verdade — prevaleciam sobre tudo o resto.
Com as suas aparições precoces nos programas de domingo de manhã e as suas declarações francas sobre a necessidade de avançar para o que chamava de "lado negro", Cheney expandiu as operações da CIA, da NSA e da inteligência militar, nos EUA e no estrangeiro, rasgando os limites constitucionais. O Congresso, a imprensa e o público cederam e aprovaram essas violações, cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir. Não era a minha área, segundo Remnick e outros da New Yorker. A minha missão era descobrir o que Cheney estava a fazer. O que finalmente me permitiu entrar no lugar não foram os meus primeiros artigos sobre os erros militares dos EUA, mas as mentiras repetidas sobre eles pelo secretário de Defesa Donald Rumsfeld (que, à sua maneira, desempenha um papel pouco lisonjeiro no recente documentário sobre a minha carreira, Cover-Up (Encombrimento) de Laura Poitras e Mark Obenhaus), da conselheira de segurança nacional Condoleezza Rice e do general Tommy Franks, comandante do US Central Command, que liderava as operações militares da coligação no Afeganistão e no Iraque.
Os dados mais secretos das guerras do Afeganistão e do Iraque diziam respeito à autorização cada vez mais ampla dada às forças especiais americanas e às tropas clandestinas para assassinar livremente alvos suspeitos. Cheney e Rumsfeld estavam diretamente envolvidos nessas ações ilegais, como relatei várias vezes na revista New Yorker. A tensão dentro da comunidade de inteligência sobre o que era legal ou não chegou a tal ponto que, em 2007, um ex-alto funcionário da CIA, recém-aposentado, me disse:
"O problema era saber o que constituía uma aprovação. Os meus rapazes discutiam constantemente sobre isso. Por que deveríamos arriscar os nossos homens? Se querem que eu mate o Joe Smith, digam isso claramente.
"Se eu fosse o vice-presidente ou o presidente, diria: "Este tipo, o Smith, é perigoso, e é do interesse dos EUA matá-lo." Mas eles não dizem isso. Em vez disso, George [Tenet] — o diretor da CIA antes e depois de 11 de setembro até meados de 2004 — vai à Casa Branca e dizem-lhe: "Vocês são profissionais. Sabem como isso é importante. Sabemos que vão obter as informações necessárias." George voltava e dizia-nos: 'Façam o que têm de fazer' "
As repetidas mentiras da administração sobre as informações que eu publicava na revista provocaram telefonemas para o meu telefone pessoal de pessoas de dentro que sabiam a verdade. Aqueles que têm integridade, amam o seu país e apoiam o exército dos EUA são frequentemente os mesmos que não suportam as mentiras oficiais.
Esta manhã, perguntei a uma dessas pessoas, hoje aposentada há muito tempo, o que ela achava de Cheney, e ela respondeu: "Ele era mais inteligente e pragmático do que qualquer presidente que serviu. Ele moldava discretamente a política externa nos bastidores e deixava poucos vestígios. Ele só se expressava publicamente para defender as decisões do seu chefe". A seguir alertou-me: "É impossível enquadrá-lo num clichê."
[NT] Ele começou a sua longa carreira em 1969, com Nixon. Richard Bruce, também conhecido como Dick Cheney, foi sucessivamente chefe de gabinete da Casa Branca durante a administração Ford, de 1975 a 1977, secretário da Defesa durante a administração H. W. Bush, de 1989 a 1993, representante federal pelo Wyoming, de 1979 a 1989, CEO da multinacional petrolífera Halliburton e, finalmente, vice-presidente dos EUA entre 2001 e 2009, na administração de George W. Bush, exercendo de facto o poder e ditando as suas instruções a Bush. No contexto da segunda guerra do Golfo, apoiou a invasão do Iraque, as escutas telefónicas e o uso da tortura. Escapou milagrosamente a um atentado suicida talibã em 2007, a quatro pontes de safena e a um transplante de coração. A 3 de novembro, juntou-se finalmente no inferno a Donald Rumsfeld (2021), Henry Kissinger (2023) e ao resto do bando, escapando como eles à justiça dos homens. O grande jornalista Seymour Hersh dedicou-lhe este testemunho. As mentiras e as violações da Constituição do antigo vice-presidente levaram muitos daqueles que o rodeavam a dizer a verdade.