O declínio do império americano
por Immanuel Wallerstein
[*]
A ascensão dos Estados Unidos à hegemonia global foi um processo
longo que começou de facto com a recessão mundial de 1873. A
partir daquela época, os Estados Unidos e a Alemanha começaram a
controlar uma fatia cada vez maior dos mercados globais, graças
sobretudo ao declínio contínuo da economia britânica.
Ambos os países haviam recentemente conquistado bases políticas
estáveis: os Estados Unidos com o fim da Guerra Civil e a Alemanha com
a unificação após a derrota da França na Guerra
Franco-Prussiana.
De 1873 a 1914, os Estados Unidos e a Alemanha tornaram-se os principais
produtores em sectores chaves: aço e depois automóveis nos
Estados Unidos; química industrial na Alemanha.
Os manuais de história registam que a Primeira Guerra Mundial eclodiu em
1914 e terminou em 1918, e que a Segunda Guerra Mundial durou de 1939 a 1945.
No entanto, seria mais razoável considerar as duas como uma única
e contínua "guerra de 30 anos" entre os Estados Unidos e a
Alemanha, com tréguas e conflitos locais espalhados entre elas.
A competição pela sucessão da hegemonia assumiu um teor
ideológico a partir de 1933, quando os nazis chegaram ao poder na
Alemanha e iniciaram sua tentativa de transcender o sistema global, não
procurando competir pela hegemonia dentro do sistema vigente e sim pela
construção de um império global. Lembre-se do slogan nazi
"ein tausendjähriges Reich" (um império de mil anos).
Por sua vez, os Estados Unidos assumiram o papel de defensores do liberalismo
centrista mundial -- recordem-se as "quatro liberdades" do
ex-presidente americano Franklin D. Roosevelt (liberdade de expressão,
de religião, de necessidades materiais e do medo) -- e entraram numa
aliança estratégica com a União Soviética,
possibilitando a derrota da Alemanha e seus aliados.
A Segunda Guerra Mundial resultou numa enorme destruição de
infra-estruturas e de populações por toda a Eurásia, do
Oceano Atlântico ao Pacífico, e poucos países escaparam
às mesmas. A única grande potência industrial do mundo a
sair intacta e até reforçada, numa perspectiva económica,
foram os Estados Unidos -- eles actuaram rapidamente para consolidar esta
posição.
Mas a aspiração à hegemonia teve de enfrentar alguns
obstáculos políticos práticos. Durante a guerra, as
potências aliadas concordaram em fundar as Nações Unidas e
esta foi formada basicamente pelos países que participaram da
coalizão contra as potências do Eixo. A característica
crucial da organização era o Conselho de Segurança, a
única estrutura que poderia autorizar o uso da força. Como a
Carta da ONU deu o direito de veto a cinco potências, incluindo os
Estados Unidos e a União Soviética, o Conselho de
Segurança tornou-se inoperacional. Assim, não foi a
fundação das Nações Unidas em Abril de 1945 que
determinou as limitações geopolíticas da segunda metade do
século 20 e sim a Conferência de Ialta, dois meses antes, entre
Roosevelt, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill e o
líder soviético José Stalin.
Os acordos formais de Ialta foram menos importantes do que os acordos informais
tácitos, que só são perceptíveis se se observar o
comportamento dos Estados Unidos e da União Soviética ao longo
dos anos seguintes. Quando a guerra terminou na Europa, em 8 de maio de 1945,
tropas soviéticas e ocidentais (isto é, americanas,
britânicas e francesas) situavam-se em determinados locais sobre o
terreno, basicamente acompanhando uma linha no centro da Europa, que passou a
ser chamada de Linha Oder-Neisse. Excepto por alguns pequenos acertos, elas
ali permaneceram. Em retrospectiva, Ialta significou um acordo entre ambos os
lados de que elas poderiam ali ficar e de que nenhum lado usaria a força
para expulsar o outro. Esse acordo tácito também se aplicava
à Ásia, como provam a ocupação do Japão
pelos Estados Unidos e a divisão da Coreia. Politicamente, portanto,
Ialta foi um acordo sobre o status quo em que a União Soviética
passou a controlar cerca de um terço do mundo e os Estados Unidos o
restante.
Washington também enfrentou desafios militares mais sérios. A
União Soviética tinha as maiores forças terrestres do
mundo, ao passo que o governo americano enfrentava pressão interna para
reduzir seu Exército, inclusive com a extinção do
serviço militar obrigatório.
Os Estados Unidos, portanto, decidiram afirmar seu poderio militar não
por meio de forças terrestres, mas por meio do monopólio das
armas nucleares (e uma força aérea capaz de
transportá-las). Esse monopólio teve curta dura: desapareceu em
1949, pois a União Soviética também desenvolveu armas
nucleares.
Desde então, os Estados Unidos ficaram reduzidos a tentar evitar a
proliferação mundial de armas nucleares (e armas químicas
e biológicas), uma iniciativa que não parece bem fadada no
século XXI.
Até 1991, os Estados Unidos e a União Soviética
coexistiram no "equilíbrio do terror" da Guerra Fria. Essa
situação foi testada cegamente apenas três vezes: no
bloqueio de Berlim, em 1948-49, na Guerra da Coreia, em 1950-53, e na crise dos
mísseis cubanos, em 1962. O resultado em cada caso foi a
restauração do status quo. Além disso, sempre que a
União Soviética enfrentou uma crise política em seus
regimes satélites -- Alemanha Oriental em 1953, Hungria em 1956,
Checoslováquia em 1968 e Polónia em 1981 --, os Estados Unidos
efectuaram pouco mais que exercícios de propaganda, permitindo que a
União Soviética agisse à sua vontade.
É claro que essa passividade não se estendia à área
económica. Os Estados Unidos aproveitaram o ambiente da Guerra Fria
para lançar iniciativas maciças de reconstrução
económica, primeiro na Europa Ocidental e depois no Japão (assim
como na Coreia do Sul e em Taiwan). O raciocínio era óbvio: de
que servia ter uma superioridade produtiva tão esmagadora se no resto do
mundo não houvesse procura efectiva?
Além disso, a reconstrução económica ajudava a
criar obrigações clientelistas por parte dos países que
recebiam a ajuda americana; esse sentido de obrigação promovia a
disposição para entrar em alianças militares e, mais
ainda, à subserviência política.
Finalmente, não se deve subestimar o componente ideológico e
cultural da hegemonia americana. O período imediatamente posterior a
1945 pode ter sido o auge histórico da popularidade da ideologia
comunista. É fácil esquecer hoje as enormes
votações obtidas por Partidos Comunistas em
eleições livres em países como Bélgica,
França, Itália, Checoslováquia e Finlândia, sem
falar no apoio que os Partidos Comunistas obtiveram na Ásia -- Vietname,
Índia, Japão -- e por toda a América Latina. E isso ainda
sem considerar áreas como China, Grécia e Irão, onde
não houve eleições livres ou estas foram restritas, mas
onde os Partidos Comunistas locais desfrutavam de um apoio generalizado. Em
reacção, os Estados Unidos mantiveram uma maciça ofensiva
ideológica anticomunista.
Em retrospectiva, essa iniciativa parece amplamente bem sucedida: Washington
desempenhou seu papel como líder do "mundo livre" de modo pelo
menos tão eficaz quanto a União Soviética desempenhava o
seu como líder do campo "progressista" e
"anti-imperialista".
O êxito dos Estados Unidos como potência hegemónica no
período do pós-guerra criou as condições para o
colapso hegemónico do país. Esse processo é bem descrito
por quatro eventos simbólicos: a Guerra do Vietname, as
revoluções de 1968, a queda do Muro de Berlim em 1989 e os
atentados terroristas de setembro de 2001. Cada evento ergueu-se sobre o
anterior, culminando na situação em que os Estados Unidos hoje se
encontram: uma superpotência solitária, que carece de verdadeiro
poder, um líder mundial que ninguém segue e poucos respeitam e um
país que flutua perigosamente em meio ao caos global que não pode
controlar.
O que foi a Guerra do Vietname? Foi sobretudo o esforço do povo
vietnamita para acabar com o domínio colonial e estabelecer o seu
próprio Estado. Os vietnamitas combateram os franceses, os japoneses e
os americanos e no final os vietnamitas venceram -- um grande feito, na
verdade. Do ponto de vista geopolítico, contudo, a guerra representou a
rejeição ao status quo de Ialta por populações
então rotuladas como Terceiro Mundo. O Vietname tornou-se um
símbolo muito poderoso, porque Washington foi suficientemente
estúpida para investir todo o seu poderio militar naquela luta e, mesmo
assim, os Estados Unidos perderam. É verdade que os Estados Unidos
não utilizaram armas nucleares (decisão que certos grupos
míopes de direita muito criticaram), mas a sua utilização
teria destruído os acordos de Ialta e poderia ter produzido um
holocausto nuclear, resultado que os Estados Unidos simplesmente não
poderiam arriscar.
Mas o Vietname não foi simplesmente uma derrota militar ou uma
maldição para o prestígio americano. A guerra desferiu um
grande golpe contra a capacidade de os Estados Unidos continuarem a ser a
potência económica dominante no mundo. O conflito saiu
extremamente caro e praticamente esgotou as reservas de ouro dos Estados
Unidos, que eram abundantes desde 1945.
Além disso, os Estados Unidos enfrentaram essas despesas exactamente
quando a Europa Ocidental e o Japão experimentavam grande crescimento
económico. Esse condicionamento pôs fim ao predomínio
americano na economia global.
Desde os fins da década de 60 os membros dessa tríade têm
sido praticamente equivalentes em termos económicos, cada um a
desempenhar-se melhor durante certos períodos, mas sem que nenhum se
distancie demasiado dos outros.
Quando as revoluções de 1968 irromperam por todo o mundo, o apoio
aos vietnamitas tornou-se um importante componente retórico. "Um,
dois, muitos Vietnames" e "Ho, Ho, Ho Chi Minh" foram entoados
em muitas ruas do mundo todo, inclusive nos Estados Unidos. Mas a
geração de 68 não condenava apenas a hegemonia americana.
Condenava a conivência soviética com os Estados Unidos, condenava
Ialta e usou ou adaptou a linguagem da Revolução Cultural
chinesa, que dividia o mundo em dois campos: as duas superpotências e o
resto do mundo.
A denúncia da conivência soviética levou logicamente
à denúncia das forças nacionais intimamente aliadas
à União Soviética, o que na maioria dos casos significava
os partidos comunistas tradicionais. Mas os revolucionários de 1968
também atacaram outros componentes da Velha Esquerda -- os movimentos de
libertação nacional no Terceiro Mundo, os movimentos
social-democratas na Europa e os democratas do New Deal nos Estados Unidos,
acusando-os também de conivência com aquilo que os
revolucionários chamavam genericamente de "imperialismo
americano".
O ataque à conivência soviética com Washington, mais o
ataque contra a Velha Esquerda, enfraqueceu ainda mais a legitimidade dos
acordos de Ialta sobre os quais os Estados Unidos haviam moldado a ordem
mundial. Ele também minava a posição do liberalismo
centrista como a única e legítima ideologia global. As
consequências políticas directas das revoluções
mundiais de 68 foram mínimas, mas as repercussões
geopolíticas e intelectuais foram enormes e irrevogáveis. O
liberalismo de centro caiu do trono que ocupara desde as
revoluções europeias de 1848 e que lhe permitira incluir tanto
conservadores quanto radicais. Tais ideologias retornaram e mais uma vez
representaram um verdadeiro leque de opções. Os conservadores
tornar-se-iam novamente conservadores, e os radicais, radicais. Os liberais de
centro não desapareceram, mas foram reduzidos. Nesse processo, a
posição ideológica oficial dos Estados Unidos
--antifascista, anticomunista, anticolonialista -- parecia frágil e
inconveniente para uma proporção cada vez maior das
populações mundiais.
O início da estagnação económica internacional na
década de 70 teve duas consequências importantes para o poderio
americano. Primeiro, a estagnação resultou no colapso do
"desenvolvimentismo", a ideia de que cada país poderia
avançar economicamente se o Estado tomasse medidas adequadas, que
constituía a principal reivindicação ideológica dos
movimentos da Velha Esquerda então no poder.
Esses regimes enfrentaram distúrbios internos sucessivos, com o
declínio doa padrões de vida, dívidas crescentes, a
dependência em relação às instituições
financeiras internacionais e a erosão de sua credibilidade. O que nos
anos 60 parecia ser uma bem sucedida descolonização do Terceiro
Mundo com o apoio dos Estados Unidos, minimizando rupturas e maximizando a
suave transferência de poder para regimes desenvolvimentistas, mas muito
pouco revolucionários, deu lugar à desintegração da
ordem, ao descontentamento turbulento e a temperamentos radicais não
canalizados.
Nos lugares em que os Estados Unidos tentaram intervir, fracassaram. Em 1983, o
presidente Ronald Reagan mandou tropas para o Líbano a fim de restaurar
a ordem. Na realidade as tropas foram praticamente expulsas dali. Ele
compensou invadindo Granada, um país sem tropas.
O presidente George Bush invadiu o Panamá, outro país sem tropas.
Mas, depois, interveio na Somália para restaurar a ordem, e os Estados
Unidos foram na verdade expulsos de um modo ignominioso. Como havia pouco que
o governo americano realmente pudesse fazer para inverter essa tendência
de declínio da hegemonia, ele preferiu simplesmente ignorá-la
tendência, uma política que prevaleceu desde a retirada do
Vietname até 11 de Setembro de 2001.
Uma hipótese para a impotência dos EUA
Enquanto isso, os verdadeiros conservadores começaram a assumir o
controle de países-chave e instituições internacionais. A
ofensiva neoliberal dos anos 80 foi marcada pelos regimes Thatcher e Reagan e
pelo surgimento do FMI como um actor-chave no cenário mundial. Antes
(ao longo de mais de um século), as forças conservadoras tentavam
auto-apresentar-se como liberais e sensatas. Agora, os liberais de centro eram
obrigados a argumentar que eram conservadores mais eficazes.
Os programas conservadores eram claros. No plano interno, os conservadores
tentavam implementar políticas que reduzissem o custo do trabalho,
minimizando as restrições ambientais aos produtores e cortando os
benefícios do bem-estar estatal
(welfare state)
. Os êxitos verdadeiros foram modestos, por isso os conservadores
passaram a actuar vigorosamente na arena internacional.
As reuniões do Fórum Económico Mundial em Davos
constituíram um campo de encontro para as elites e os media. O FMI
representava um clube para ministros das Finanças e banqueiros centrais.
E os Estados Unidos pressionaram pela criação da
Organização Mundial do Comércio, destinada a promover
fluxos comerciais livres através das fronteiras mundiais.
Quando os Estados Unidos não estavam a olhar, a União
Soviética desmoronou. Sim, Ronald Reagan chamara a União
Soviética de "império do mal" e usara a retórica
bombástica de pedir a destruição do Muro de Berlim, mas os
Estados Unidos realmente não pretendiam e certamente não foram
responsáveis pela queda da União Soviética. Na verdade, a
União Soviética e sua zona imperial no Leste Europeu desabou
devido à desilusão popular com a velha esquerda, em conjunto com
iniciativas do líder soviético Mikhail Gorbatchov para salvar seu
regime, liquidando Ialta e instituindo a liberalização interna
(perestroika mais glasnost). Gorbatchov conseguiu liquidar Ialta, mas
não salvar a União Soviética (embora quase o tenha
conseguido, deve-se dizer).
Os Estados Unidos ficaram surpresos e atónitos com o colapso
súbito, sem saber como enfrentar as consequências. O colapso do
comunismo significou na verdade o colapso do liberalismo, removendo a
única justificação ideológica que respaldava a
hegemonia americana, uma justificativa tacitamente apoiada pelo
adversário ideológico ostensivo do liberalismo. Essa perda de
legitimidade conduziu directamente à invasão do Kuwait pelo
Iraque, que o líder iraquiano Saddam Hussein jamais teria ousado se os
acordos de Ialta continuassem em vigor.
Em retrospectiva, as iniciativas americanas na Guerra do Golfo obtiveram
basicamente uma trégua na linha de partida. Mas uma potência
hegemónica pode-se satisfazer com um empate numa guerra com um poder
regional mediano? Saddam demonstrou que era possível entrar numa briga
com os Estados Unidos e sair inteiro. Ainda mais que a derrota no Vietname, o
desafio ousado de Saddam revolveu as entranhas da direita americana,
particularmente as dos chamados falcões, o que explica o fervor de seu
actual desejo de invadir o Iraque e destruir seu regime.
Entre a Guerra do Golfo e o 11 de setembro de 2001, as duas principais arenas
de conflito mundial foram os Balcãs e o Oriente Médio. Os
Estados Unidos desempenharam importante papel diplomático em ambas as
regiões. Olhando em retrospectiva, quão diferentes seriam os
resultados se os Estados Unidos tivessem assumido uma posição
totalmente isolacionista? Nos Balcãs, um Estado multinacional
economicamente bem sucedido (Jugoslávia) desmoronou, basicamente em suas
partes componentes. Durante dez anos, a maioria dos Estados resultantes iniciou
um processo de etnificação, experimentando uma violência
brutal, amplas violações de direitos humanos e guerras. A
intervenção externa, em que os Estados Unidos actuaram de modo
destacado, levou a uma trégua e pôs fim à violência
mais evidente, mas essa intervenção de modo nenhum reverteu a
etnificação, que hoje está consolidada e de certa forma
legitimada.
Esses conflitos teriam terminado de modo diferente sem o envolvimento
americano? A violência poderia ter continuado por mais tempo, mas os
resultados básicos provavelmente não teriam sido muito
diferentes. O quadro é ainda mais grave no Oriente Médio, onde o
envolvimento dos Estados Unidos foi mais profundo, e seus fracassos, mais
espectaculares. Nos Balcãs e no Oriente Médio igualmente, os
Estados Unidos deixaram de exercer seu poder hegemónico com
eficácia não por falta de vontade ou de esforço, mas por
falta de verdadeiro poder.
Então veio o 11 de Setembro, o choque e a reacção. Sob o
fogo dos legisladores americanos, a CIA hoje afirma que havia advertido o
governo Bush sobre possíveis ameaças. Mas, apesar do enfoque da
CIA sobre a Al Qaeda e a perícia da inteligência do
órgão, ela não pôde prever (e portanto evitar) a
execução dos ataques terroristas. Foi o que afirmou o director
da CIA, Robert Tenet. Esse depoimento dificilmente pode tranquilizar o governo
ou o povo americanos.
Seja o que for que os historiadores decidam, os atentados de 11 de Setembro de
2001 representaram um grande desafio ao poderio americano. Os
indivíduos responsáveis não representavam uma grande
potência militar. Eram membros de uma força não estatal,
com alto grau de determinação, algum dinheiro, um grupo de
seguidores dedicados e uma forte base em um Estado fraco. Em suma, não
eram nada militarmente. No entanto, tiveram êxito num ataque ousado ao
solo americano.
George W. Bush chegou ao poder criticando muito o trabalho do governo Clinton
nos assuntos externos. Bush e seus assessores não o admitiram, mas sem
dúvida estavam conscientes de que o caminho de Clinton fora o de todo
presidente americano desde Gerald Ford, incluindo os de Ronald Reagan e George
Bush pai. E tinha sido até o caminho do actual governo Bush antes do 11
de Setembro. Basta ver como Bush tratou o caso do avião americano
derrubado na China em Abril de 2001 para verificar que prudência era o
nome do jogo.
Depois dos atentados terroristas, Bush mudou de rumo, declarando guerra ao
terrorismo, garantindo ao povo americano que "o resultado é
certo" e informando ao mundo que "ou estão do nosso lado ou
estão contra nós".
Frustrados há muito, até mesmo pelos mais conservadores governos
americanos, os falcões finalmente passaram a dominar a cena
política americana. Sua posição é clara: os
Estados Unidos detêm um poderio militar esmagador e, embora
inúmeros líderes estrangeiros considerem insensato Washington
aplicar sua força militar, esses mesmos líderes não podem
fazer e não farão qualquer coisa se os Estados Unidos
simplesmente impuserem sua vontade ao resto do mundo. Os falcões
acreditam que os Estados Unidos devem agir como uma potência imperial por
dois motivos: primeiro, os Estados Unidos podem fazer isso; e, segundo, se
Washington não exercer sua força, os Estados Unidos
ficarão cada vez mais marginalizados.
Hoje essa posição dos falcões tem três
expressões: o ataque militar ao Afeganistão, o apoio de facto
à tentativa israelense de liquidar a Autoridade Palestina e a
invasão do Iraque, que estaria em fase de preparativos militares. Menos
de um ano depois dos atentados terroristas de Setembro de 2001, talvez seja
cedo demais para avaliar o resultado futuro dessas estratégias.
Até agora, esses esquemas levaram à derrubada dos taliban no
Afeganistão (sem o desmantelamento completo da Al Qaeda ou a captura de
sua liderança); enorme destruição na Palestina (sem tornar
"irrelevante" o líder palestino Iasser Arafat, como pretendia
o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon); e a forte oposição
dos aliados dos Estados Unidos na Europa e no Oriente Médio aos planos
de invasão do Iraque.
A leitura dos factos recentes pelos falcões enfatiza que a
oposição às acções americanas, embora
séria, continua principalmente verbal. Nem a Europa Ocidental nem a
Rússia, a China ou a Arábia Saudita parecem dispostas a romper
seriamente os laços com os Estados Unidos. Por outras palavras, os
falcões acreditam que Washington realmente conseguiu desenvencilhar-se.
Os falcões supõem que um resultado semelhante virá a
ocorrer quando os militares americanos realmente invadirem o Iraque e, depois,
quando os Estados Unidos exercerem sua autoridade em outras partes do mundo,
seja no Irão, na Coreia do Norte, na Colômbia ou talvez na
Indonésia.
Ironicamente, a leitura dos falcões tornou-se de modo geral a leitura da
esquerda internacional, que vem gritando contra as políticas americanas
principalmente por temer que as probabilidades de êxito dos EUA sejam
elevadas. Mas as interpretações dos falcões estão
erradas e apenas contribuirão para o declínio dos EUA,
transformando uma descida gradual numa queda muito mais rápida e
turbulenta. Especificamente, as abordagens dos falcões irão
fracassar por motivos militares, económicos e ideológicos.
Os militares continuam a ser, sem dúvida, a carta mais forte dos EUA;
na verdade, a única carta. Hoje os Estados Unidos possuem a mais
formidável máquina militar do mundo. E, a acreditar-se nos
anúncios de novas e incomparáveis tecnologias militares, a
vantagem americana sobre o resto do mundo é consideravelmente maior hoje
do que uma década atrás. Mas significará isso que os EUA
podem invadir o Iraque, conquistá-lo rapidamente e instalar um regime
amigo e estável? É improvável. Tenha-se em mente que,
das três guerras sérias que os EUA travaram desde 1945 (Coreia,
Vietname e Golfo), uma terminou em derrota e duas em retirada após
aquilo que poderia ser chamado de "empate" -- não é
exactamente um registro glorioso.
O Exército de Saddam não é o dos taliban e o controle
interno dos seus militares é muito mais firme. Uma invasão
americana envolveria necessariamente uma importante força terrestre, que
teria de abrir caminho até Bagdad e provavelmente sofreria baixas
significativas. Essa força também precisaria de bases como
pontos de partida para os combates e a Arábia Saudita deixou claro que
não ajudará nesse sentido. O Kuwait ou a Turquia
ajudarão? Talvez, se Washington utilizar todas as suas fichas.
Enquanto isso, pode-se esperar que Saddam utilize todas as armas à sua
disposição e é exactamente o que inquieta o governo
americano: que essas armas possam ser muito malignas. Os EUA podem torcer os
braços dos regimes da região, mas o sentimento popular vê
todo o assunto como o reflexo de um profundo viés anti-árabe nos
EUA. Esse conflito pode ser vencido? O estado-maior britânico já
informou ao primeiro-ministro Tony Blair que não acredita nisso.
E sempre há a questão das "segundas frentes". Depois
da Guerra do Golfo, as Forças Armadas americanas tentaram preparar-se
para a possibilidade de duas guerras regionais simultâneas. Depois de
algum tempo, o Pentágono abandonou silenciosamente a ideia, por ser
impraticável e dispendiosa. Mas quem pode ter certeza de que nenhum
potencial inimigo atacará quando os EUA estiverem atolados no Iraque?
Considere-se também a questão da tolerância popular
americana às não-vitórias. Os americanos oscilam entre um
fervor patriótico que apoia todos os presidentes em tempo de guerra e um
profundo sentimento isolacionista. Desde 1945, o patriotismo chocou-se com um
muro sempre que as baixas aumentaram. Por que a reacção seria
diferente hoje? E, mesmo que os falcões (quase todos civis) se sintam
impermeáveis à opinião pública, os generais
americanos, queimados pelo Vietname, não se sentem.
E a frente económica? Nos anos 80, inúmeros analistas americanos
ficaram histéricos quanto ao milagre económico japonês.
Eles acalmaram-se nos anos 90, diante das conhecidas dificuldades financeiras
do Japão. Mas, depois de exageradas declarações sobre o
avanço rápido do Japão, as autoridades americanas hoje
parecem tranquilas, confiantes em que o Japão está muito
atrás. Hoje em dia, Washington parece mais inclinada a mostrar aos
decisores das políticas japonesas o que eles estão a fazer errado.
Esse triunfalismo dificilmente parece garantido. Considere a seguinte
reportagem do
New York Times
de 20/Abril/2002: "Um laboratório japonês construiu o
computador mais rápido do mundo, uma máquina tão poderosa
que se equipara ao poder de processamento dos 20 mais rápidos
computadores americanos juntos e supera de longe o líder anterior, uma
máquina construída pela IBM. A conquista [...] "é a
evidência de que a corrida tecnológica, que a maioria dos
engenheiros americanos pensava vencer facilmente, está longe de
terminar".
A análise continua, comentando que há "prioridades
científicas e tecnológicas contrastantes" nos dois
países. A máquina japonesa foi construída para analisar
mudanças climáticas, mas as máquinas americanas são
desenhadas para simular armas.
Esse contraste representa a história mais antiga na história das
potências hegemónicas. O poder dominante concentra-se nos
militares (em seu detrimento); o candidato a sucessor concentra-se na economia.
A última opção sempre foi a mais vantajosa. Foi o que
aconteceu com os Estados Unidos. Por que não deveria acontecer
também com o Japão, talvez em aliança com a China?
Finalmente, há a esfera ideológica. Hoje, a economia americana
parece relativamente fraca, ainda mais considerando-se as exorbitantes despesas
militares associadas às estratégias dos falcões.
Além disso, Washington continua politicamente isolada; virtualmente
ninguém (excepto Israel) acha que a posição do
falcão faz sentido ou é digna de incentivo. Outros países
temem ou não estão dispostos a enfrentar Washington directamente,
mas até sua indecisão está a prejudicar os Estados Unidos.
Mas a reacção americana representa pouco mais que um arrogante
braço de força. A arrogância tem suas próprias
negativas. Usar as fichas significa deixar menos fichas para a próxima
vez, e a aquiescência a contragosto provoca um ressentimento crescente.
Durante os últimos 200 anos, os EUA conquistaram uma quantidade
considerável de crédito ideológico. Mas, hoje em dia, os
EUA estão a gastar esse crédito ainda mais depressa do que
gastaram seus excedentes em ouro nos anos 60. Os EUA enfrentam duas
possibilidades nos próximos dez anos: podem seguir o caminho dos
falcões, com consequências negativas para todos, mas especialmente
para o país. Ou, em alternativa, podem perceber que as
consequências negativas seriam demasiado grandes.
Simon Tisdall, do "Guardian", argumentou recentemente que, mesmo sem
considerar a opinião pública internacional, "os Estados
Unidos não são capazes de ter êxito numa guerra no Iraque
sozinhos sem incorrer em enormes danos, principalmente em termos de seus
interesses económicos e seu abastecimento energético. Bush
está reduzido a falar com dureza e a parecer ineficaz". E, se os
EUA invadirem o Iraque e forem obrigados a recuar, ele parecerá ainda
mais ineficaz.
As opções do presidente Bush parecem extremamente limitadas e
não há dúvida de que os EUA continuarão a declinar
como força decisiva nos assuntos mundiais na próxima
década. A verdadeira questão não é se a hegemonia
americana está a decair, mas se os EUA podem encontrar uma maneira de
declinar graciosamente, com danos mínimos para o mundo e para si
próprios.
__________________
[*]
Investigador na Universidade Yale. Publicou recentemente
The End of the World As We Know It: Social Science for the Twenty-First Century
, Mineápolis, University of Minnesota Press, 1999. Mais textos do autor
no
Fernand Braudel Center
, dirigido por Wallerstein.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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