A caminho do abismo:
a crise na economia dos EUA
Às 6 da manhã de 12 de Junho de 2002, quatro agentes do FBI
irromperam no apartamento do Soho de Samuel Waksal, ex-presidente do conselho
de administração da companhia de bio técnica ImClone
Systems Inc, e levaram-no algemado sob a acusação de
práticas especulativas. O seu pai e a sua filha haviam vendido cerca de
175.000 acções da ImClone escassos dias antes de a Food and Drug
Administration (organismo regulador) ter anunciado a rejeição do
Erbitux, remédio contra o cancro que a companhia se propunha
lançar, rejeição que conduziu a uma acentuada descida das
acções. (O próprio Waksal, no passado Setembro, apurara
US$ 57 milhões numa transacção de acções da
ImClone, e em 2001 realizara mais US$ 72 milhões das suas
opções de carteira). A 25 de Julho, John Rigas, o antigo director
da Adelphia Communications, foi preso, juntamente com os seus dois filhos, sob
a acusação de crimes envolvendo a empresa, nomeadamente por
usarem a companhia como "mealheiro pessoal da família",
gastando centenas de milhões de dólares em jactos particulares,
empréstimos pessoais, condomínios de luxo no Colorado,
México e na cidade de Nova York e na construção de
um campo de golfe de US$ 12,8 milhões. A 12 de Setembro, Dennis
Kozlowski, o antigo director da Tyco International descrito pela
Business Week
como sendo "provavelmente o mais aguerrido negociador da América
empresarial" foi detido sob a acusação de ter obtido
fraudulentamente mais de US$400 milhões ao vender acções
da Tyco enquanto sonegava a informação aos investidores.
Kozlowski servira-se dos fundos para comprar uma mansão na Florida,
sumptuosas propriedades em Boca Raton, Nantucket e New Hampshire, um
apartamento de US$ 7 milhões para a sua primeira mulher, diamantes de
Harry Winston e Tiffany's, e uma frota de velozes automóveis e Harley
Davidsons.
Em Agosto, o
Wall Street Journal
publicou uma lista de mais de duas dúzias de importantes empresas
sujeitas a investigação oficial, incluindo nomes tão
conhecidos como AOL Time Warner, Bristol Meyers, Dinegy, Enron, Global
Crossing, Kmart, Lucent Technologies, Merck, Qwest, Reliant Services, Rite Aid,
Universal Vivendi, WorldCom e Xerox. Os dois maiores bancos dos EUA, Citigroup
e J.P.Morgan Chase, estão igualmente a ser investigados, bem como a
Merrill Lynch. Entretanto, os "barões da bancarrota", como
lhes chama o
Finantial Times
dirigentes empresariais das maiores 25 companhias que faliram no ano
passado arrecadaram $3,3 mil milhões com a venda de
títulos e com compensações nos três anos que
precederam o afundamento das suas empresas.
PRÁTICAS DE RAPINA
Quando os escândalos empresariais começaram a fazer títulos
na comunicação, em princípios de 2002, o secretário
do Tesouro dos EUA Paul O'Neill atribuiu-os à imoralidade de um
"pequeno número" de malfeitores. Tudo indica que estava mal
informado. As práticas de rapina desses executivos e dessas firmas
sendo ou não técnicamente ilícitas
são típicas e endémicas da América empresarial.
Todavia, os recentes escândalos atestam não apenas o nível
de corrupção individual característico do capitalismo de
compadrio dos EUA mas também problemas do próprio sistema na
economia real. É porque a epidemia de fraudes evidencia a falta de
saúde das próprias empresas que a confiança dos
investidores e a Bolsa de Valores têm sido tão rudemente abaladas.
A manipulação fraudulenta da contabilidade empresarial que
actualmente emerge é consequência directa da expansão dos
finais da década de 90, propiciada por um aumento quase sem precedentes
na valorização dos títulos. A sua razão de ser tem
sido inteiramente clara: ocultar a realidade de um quadro de lucros
empresariais cada vez mais desesperado. Entre 1997 e 2000, precisamente quando
a pretensa expansão económica atingia o ápice, a taxa de
lucro no sector empresarial não-financeiro caía uns
dramáticos 20 por cento, inicialmente como consequência do excesso
de capacidade de produção internacional. Em circunstâncias
normais isto teria causado abrandamento na acumulação do capital
e no crescimento económico. Todavia, na realidade os valores bolsistas
subiram, particularmente no sector das tecnologias de informação
(TI), mesmo perante a queda de rendimento das empresas. Desta maneira as
companhias lograram aceder a novos fundos com uma facilidade sem precedentes,
quer emitindo acções a preços altamente inflacionados,
quer recorrendo ao crédito bancário garantido por esses
títulos sobrevalorizados. Na base desta bonança financeira, as
empresas americanas, especialmente nas indústrias de TI, incrementaram
largamente a sua acumulação de capital. O
boom
no investimento continuou, com crescente aumento de produção e
de produtividade. Mesmo os sóbrios e académicos economistas do
Council of Economic Advisers, para não falar na cúpula do
Federal Reserve, celebraram a nova sinergia de mudança
tecnológica conducente a uma era de progresso sem precedentes, e de
disponibilidade dos mercados financeiros .
O problema, evidentemente, é que em condições normais,
para justificar e suportar cotações em veloz subida, bem como o
rápido investimento, são necessários lucros em acentuada
ascensão. Em vez disso, enquanto o investimento acelerava e em face do
declínio dos rendimentos, o excesso de capacidade agravou-se e a queda
da rentabilidade alastrou-se desde a manufactura até às
principais indústrias de alta tecnologia principalmente às
telecomunicações. Confrontados com a evidente falta de
"alicerces", os dirigentes empresariais experimentaram uma
pressão crescente no sentido de manter os valores das
acções elevados a qualquer custo, para continuarem a aceder a
financiamentos baratos e aos fundos de investimento necessários para
competirem; o facto de dependerem fortemente das opções bolsistas
naturalmente precipitou a tentação. Uma após outra as
grandes empresas falsificaram a sua contabilidade a fim de inflar os ganhos a
curto prazo.
DA BOLHA À RECESSÃO
Mas a economia não pode desafiar eternamente a gravidade. A partir de
meados de 2000, a realidade da crise de lucros tornou-se aparente quando uma
interminável parada de empresas, incluindo quase todas as estrelas do
boom
, foram obrigadas a manifestar receitas cada vez mais reduzidas. Os
preços das acções entraram num declínio acentuado e
os investidores gradualmente despertaram para a realidade de que haviam sido
enganados. Nessa altura o mercado bolsista já não estimulava a
economia: ao contrário, ao dar-se o colapso dos títulos, as
empresas eram obrigadas a reduzir quer no endividamento quer na emissão
de acções, tornando mais difícil a
acumulação de capital. A massa gigantesca de equipamentos e de
instalações industriais supérfluas (legado da bolha
explosiva de maus investimentos) tornou-se evidente para todos. As empresas
foram deixadas com poucas razões para acumular novos meios de
produção, ou trabalho, mas com todos os motivos para iniciar
guerras de preços. A economia mergulhou em recessão.
Para restabelecer a ordem, a Reserva Federal desceu as taxas de juro para
níveis recorde, mas não houve resposta das empresas já
sobrecarregadas com meios de produção. O investimento continuou a
declinar, obrigando ao desemprêgo, reduzindo a procura e exercendo nova
pressão descendente sobre preços e lucros. O recurso ao
endividamento interno, que assumiu proporções de orgia, habilitou
o "todo-poderoso consumidor" a salvar temporariamente a
situação. Mas em consequência da excessiva
indulgência com o endividamento formou-se uma nova bolha
inflacionária, agora no mercado de habitação, a qual
provavelmente será de pouca dura. Justificando-se com o 11 de Setembro
(atentado contra as torres de Manhattan) e com a má
situação da economia já para não falar no
falhanço da política monetária Federal a
Administração Bush invocou a necessidade de estímulo e de
segurança para justificar um regresso à velha formula de Reagan:
aventura imperial, redução de impostos para os ricos e aumento
com os gastos militares. Mas a projectada eliminação do imposto
sobre dividendos não visa aumentar a procura, do mesmo modo que a guerra
contra o Iraque, e as consequentes despesas com armamento, não
supõem o aumento da segurança americana. O défice
aumentado que resultará destina-se, tal como no tempo de Reagan, a
obrigar a cortes nos gastos não militares, particularmente nos
serviços sociais para os menos favorecidos, o que actuará como
contra-partida de qualquer estímulo que suscite. Escassamente revigorada
pela política governamental, a economia arrasta-se em
direcção ao precipício.
Segundo a versão oficial contada não só nos
depoimentos de Alan Greenspan perante o Congresso mas também no Council
of Economic Advisers' Economic Report of the President 2001, o último da
Administração Clinton a Bolsa fomentou uma
revolução tecnológica nos anos 90, o que permitiu à
economia dos EUA, em contraste com os seus menos bem sucedidos rivais no
Japão e na Europa Ocidental, escapar a duas décadas de
estagnação. Nesta perspectiva, emergiu uma "nova
economia" focada na tecnologia de informação a qual, tendo
aumentado significativamente a possibilidade de crescimento da produtividade,
abriu o potencial para ganhos muito mais elevados. Na expectativa desses
lucros, o mercado de valores subiu para níveis extraordinários.
Naturalmente, diz a história, os financiadores responderam aos elevados
preços das acções das empresas emprestando-lhes dinheiro
ou comprando as suas acções. O crescente investimento permitiu a
acelerada aplicação de nova tecnologia económica e o
consequente aumento de produtividade, o que suscitou um potencial de lucros
ainda mais elevados, acções mais caras, melhores recursos
financeiros, aceleração no investimento e assim por diante
aquilo a que Greenspan chamou um "ciclo virtuoso", e que levou o
Council of Economic Advisers a proclamar o período entre 1995 e 2000 uma
extraordinária performance económica. Dado que o mercado bolsista
proporciona aos investidores informação sem paralelo quanto
às firmas e indústrias mais promissoras, assim reza a teoria,
estas deveriam expandir-se mais rapidamente e gerir o
boom
mais eficientemente. Em particular, ao oferecer dividendos astronómicos
às ofertas públicas iniciais das mais destacadas empresas de
alta-tecnologia, o mercado de valores consentiu que os capitalistas
especuladores obtivessem taxas de lucro inconcebíveis noutras
circunstâncias, e assim subscreverem a mudança tecnológica
mais rápida possível.
VERSÃO OFICIAL DESMENTIDA PELOS NÚMEROS
A realidade da expansão dos anos 90 tem pouco a ver com a versão
oficial. A tese de que houve um "extraordinário
boom
" é desmentida pelos próprios números do Governo. Em
termos das referências normais crescimento da
produção, capital acumulado, produtividade do trabalho e
salários, bem como o nível do desemprego a performance no
supostamente sensacional quinquénio entre 1955 e 2000 mal equipara os
níveis atingidos no período de 25 anos entre 1948 e 1973. O
crescimento da produtividade do trabalho, o mais importante indicador do
dinamismo da economia, foi inferior em 20 por cento. Tendo em conta todo o
ciclo de negócios da década de 1990 a 2000 e não apenas os
cinco bons anos do final do período, a taxa média anual de
crescimento do produto bruto per capita foram uns escassos 1,6 por cento, em
comparação com 2,2 por cento para o período de cem anos de
1889-1989. Mesmo em 2000, os salários horários reais para os
trabalhadores não-diferenciados eram ainda substancialmente inferiores,
e a taxa de pobreza superior, aos melhores valores de 1973.
Compreender o que moveu a economia nos anos 90 exige uma perspectiva
histórica mais extensa. A expansão económica nessa
década decorreu contra o cenário de "longo
declínio", a era de modesto crescimento da economia mundial
subsequente ao longo
boom
do após-guerra. Entre 1973 e 1995 o crescimento da
produção, investimento, produtividade e salários foi de um
terço a dois terços inferior ao registado no quarto de
século precedente, enquanto que os níveis de desemprego eram
várias vezes superiores (excepto nos EUA). A causa principal do
prolongado abrandamento foi o excesso de capacidade e de produção
no sector internacional de manufactura, conducente, por via da incessante
pressão sobre os preços, a lucros reduzidos e o fracasso
das sucessivas tentativas de empresas e governos para reagir com êxito
à situação. O problema manifestou-se na parte final dos
anos 60 em consequência da intensificação da
concorrência internacional, ela própria resultante da crescente
penetração no mercado mundial de produtores a baixo custo
sedeados no Japão e na Europa Ocidental. Nos anos 70, o excesso de
capacidade e de produção agravou-se quando as principais empresas
dos países capitalistas avançados concluíram que fazia
mais sentido responder aos seus problemas de competitividade e rentabilidade
através da intensificação do financiamento das suas
próprias linhas de produção (já excessivamente
subscritas) do que atribuir capitais a novas linhas, assim motivando a
reprodução do problema inicial. Entretanto, firmas baseadas nos
países em vias de desenvolvimento, especialmente no leste
asiático, constataram que podiam entrar com lucro em certas linhas, a
despeito do excesso de capacidade. Só doses cada vez maiores das medidas
preconizadas na doutrina de Keynes impediram o desencadear de uma crise
profunda, mas à custa de uma inflação galopante.
Nos princípios dos anos 80, sob a liderança de Thatcher e Reagan,
os EUA e outros estados capitalistas avançados introduziram elevadas
taxas de juro e um regime de forte austeridade para encorajar o abandono de
meios de produção custosos e de baixa rentabilidade que mantinham
baixas as taxas de lucro, e também para encorajar uma subida de
desemprego a fim de reduzir o crescimento salarial. Porém, o resultado
imediato foi a eclosão da crise das dívidas do Terceiro Mundo,
acompanhada pela ameaça de depressão nos EUA. Os
princípios de Keynes tiveram de ser reintroduzidos para que a economia
internacional continuasse a girar. Claramente os Estados capitalistas
avançados estavam relutantes em suportar uma depressão severa do
tipo das que, no passado, serviram para eliminar meios supérfluos de
produção e de trabalho e forneceram os alicerces para
mudanças radicais [mas também a base de comoções
sociais - SG]. Todavia, o preço da estabilidade económica foi um
aumento para níveis recorde das taxas de juro, o que, combinado com
taxas de lucro ainda reduzidas, refreou a acumulação de capital e
o crescimento económico, o qual permaneceu até ao fim da
década fortemente dependente dos deficits governamentais.
A despeito das aparências de sentido contrário, a longa
tendência de declínio não foi superada nos anos 90. Entre
1990 e 1995, as economias dos países capitalistas avançados
experimentaram o seu pior quinquénio do após-guerra. Tomando o
conjunto da década, a sua performance global foi, a despeito do
boom
americano, pouco melhor do que a dos anos 80, os quais, por sua vez, haviam
sido inferiores à década de 70, esta, também, muito pior
do que as de 60 e 50.
Foi contra este cenário de uma economia global em crescimento lento que
os EUA lançaram a sua recuperação económica. Entre
1985 e 1995 o sector de manufactura dos EUA procurou uma impressionante
recuperação da competitividade internacional para conseguir um
aumento de rentabilidade que, no conjunto da economia privada, elevou a taxa de
lucro acima do nível de 1973 pela primeira vez desde finais de 60. Em
1994, esta subida de lucros preparara o palco para a explosão de
investimento que seria a principal fonte do dinamismo da economia nos finais
dos anos 90; a expansão económica americana arrancara a
sério.
O ACORDO PLAZA DE 1985
Os meios através dos quais o sector manufactureiro dos EUA
alcançou a recuperação da rentabilidade foram tipicamente
destrutivos. O Plaza Accord, imposto em 1985 pelos Estados Unidos aos seus
principais associados e rivais, conduziu a uma queda de 40 a 60 por cento do
dólar face ao yen e ao marco alemão nos dez anos seguintes,
baixando dramaticamente o custo das mercadorias americanas em
comparação com os seus principais competidores. No decurso de
toda a década o patronato manteve o crescimento real dos salários
próximo do zero. A administração Reagan reduziu os
impostos empresariais. Até 1993, enquanto o investimento continuou a
estagnar, as companhias, para aumentar a produtividade, desfizeram-se em larga
escala de meios de produção e de trabalho caros e de baixa
rentabilidade.
Mas o facto de a recuperação da rentabilidade dos EUA ter sido
consequência principalmente do redimensionamento negativo das empresas e
do processo de defraudar trabalhadores, público em geral e rivais
estrangeiros revelou-se altamente problemático para as duas outras
maiores economias, a japonesa e a alemã. Na maior parte do
período em apreciação foi baixo, nos EUA, o crescimento
da procura, tendo estagnado tanto a procura de instalações e
equipamentos como a de bens de consumo. Também a procura do Governo
baixou a partir de 1993, já que a Administração Clinton
voltou-se para o equilíbrio orçamental, prescindindo da
histórica postura americana de segurar os défices para estimular
a economia global. Entretanto, as reduções nos custos relativos
através da contenção salarial, aumento de produtividade e
desvalorização do dólar permitiram aos EUA apropriarem-se
de alguma participação dos seus competidores japoneses e
alemães no mercado mundial.
Como resultado, nos primeiros anos de 90 a rentabilidade da manufactura
germânica e japonesa baixou acentuadamente, enquanto os EUA
constituíam as bases da sua expansão. Esta
situação, com analogia nos princípios da hidráulica
a recuperação de uma economia manufactureira teria como
contrapartida a crise doutra ao mudar a taxa de câmbio reflectiu
o abrandamento no crescimento do sistema e repetiu-se uma e outra vez. A
partir de 1991 as economias japonesa e alemã viveram as piores
recessões do após-guerra. Por alturas de 1995 ainda não se
sentia recuperação palpável no conjunto das economias
capitalistas avançadas. O longo declínio estava bem vivo e com
saúde. Na primavera de 1995 o yen subiu face ao dólar para 79; no
não distante ano de 1985 mantivera-se a 240. A economia manufactureira
japonesa, obrigada a absorver este enorme aumento no custo dos seus produtos no
mercado mundial, parecia à beira da paralisia. Tendo acabado de
enfrentar os desequilíbrios provocados pela grave crise financeira no
México que se reflectira em toda a América Latina, o Governo dos
EUA não podiam permitir o falhanço da economia japonesa. Uma
crise no Japão, no plano económico só ultrapassado pelos
EUA, constituiria uma ameaça à estabilidade internacional. O
país era também o principal credor da América, e uma
crise japonesa acarretaria provavelmente a venda ao desbarato dos
títulos dos EUA, forçando a subida das taxas de juro e travando a
recuperação americana nas vésperas das
eleições de 1996. Com o chamado "Plaza Accord
invertido" do Verão de 1995, o Governo dos EUA acordou com
japoneses e alemães a subida do dólar.
DO
BOOM
AO
CRASH
Este acordo constituiu um ponto de viragem na evolução da
economia mundial. Inverteu as tendências económicas da
década precedente e, de forma decisiva, preparou o caminho para os
principais desenvolvimentos do quinquénio seguinte: declínio da
rentabilidade americana, subida histórica no preço dos
títulos,
boom
da economia provocado pela actividade bolsista e o
crash
e recessão que se seguiram.
A primeira e mais importante consequência da revalorização
do dólar foi pôr um termo abrupto a uma década de
recuperação da rentabilidade da economia dos EUA. Entre 1997 e
2000 a taxa de lucro do sector manufactureiro caiu mais de 15 por cento,
privando a economia americana do que fora a sua principal fonte de dinamismo.
Este súbito aumento de pressão sobre a taxa de lucro constituiu
uma ameaça não só para os EUA mas para toda a economia
mundial. Para contrariar o longo declínio, e as reduções
de rentabilidade que estavam na sua origem, governos e empresas de todo o globo
tinham adoptado as mais rigorosas medidas de redução de custos.
Mas a inevitável consequência da sua ofensiva fora a
contracção do crescimento da procura total no sistema, o que
ameaçava agora de colocar em curto-circuito o projecto de
recuperação económica internacional. Os aumentos de
salários e das despesas com o sector social haviam sido cortados cada
vez mais acentuadamente nos anos 70 e 80. Na corrida à união
monetária, os governos europeus tinham imposto severas medidas de
austeridade, e a administração Clinton acompanhara a
tendência.
Num contexto de mercados internos cada vez mais afectados, o resto do mundo foi
obrigado a voltar-se para o mercado americano como meio de manter as suas
economias através das exportações. Porém, com a
estagnação do crescimento salarial nos EUA e com a procura
governamental em contracção rápida desde 1993, quando da
queda do défice Federal, a dependência do mercado dos EUA
traduziu-se numa crescente dependência do crescimento do investimento
americano o qual, conforme se esperava, resultaria em mais
importações de equipamentos e de bens de consumo, estes
últimos suscitados pela subida de emprego e de salários. Todavia,
com a nova tendência de declínio da taxa de rentabilidade
industrial derivada da subida do dólar, a capacidade dos EUA de servirem
como "mercado de último recurso" ficou ameaçada.
Mesmo assim, a partir de 1996 a expansão económica americana
ganhou um novo dinamismo, arrastando consigo o resto do mundo. O que cada vez
mais a moveu foi um mercado bolsista que ascendeu a alturas nunca vistas, a
despeito do enfraquecimento da rentabilidade industrial desde 1997. Entre
princípios dos anos 80 e 1995 a subida do preço dos
títulos não fora superior à subida dos lucros. A partir
daí, um fosso crescente cavar-se-ia entre os dois. Enquanto que o index
Wilshire 5000 aumentou 65 por cento entre 1997 e 2000, os lucros empresariais
(após impostos e juros) caíram 23 por cento.
A base da vertiginosa subida bolsista foi a importante abertura do
crédito a longo prazo. Inicialmente, isto foi consequência da
acção coordenada em 1955 pelas potências do G3 para fazer
subir o dólar, a qual suscitou uma crescente pressão negativa na
taxa de rentabilidade da indústria manufactureira dos EUA. Para fazerem
descer as suas próprias moedas em relação ao dólar,
os japoneses e outros governos do leste asiático
adquiriram títulos americanos, especialmente títulos do Tesouro,
em enormes quantidades. A consequente inundação fiduciária
nos mercados americanos acarretou uma acentuada descida nas taxas de juro a
longo prazo. Entretanto, procurando assegurar a estabilidade na esteira da
crise financeira mexicana, a Reserva Federal baixou as taxas de juro de curto
prazo. Os investidores aproveitaram para investir no mercado bolsista, fazendo
subir os valores. E com o dólar a subir, os preços dos
títulos automaticamente subiram de valor em termos internacionais, o que
atraiu mais investimento que, por seu turno, projectou o mercado para
níveis ainda mais elevados.
A "EXUBERÂNCIA IRRACIONAL"
O que causa perplexidade é que o processo não se tenha detido
aí, quando a disparidade entre o valor das acções e as
taxas de lucro começou a acentuar-se. Em fins de 1996, Greenspan
manifestava publicamente a sua preocupação com a
"exuberância irracional" dos preços das
acções. Todavia, em privado, ele estava claramente ainda mais
preocupado com o possível tropeçar da economia americana,
atendendo especialmente a que o crescimento económico começara de
forma hesitante face às reduções da taxa de juro e
à turbulência que na Primavera de 1997 abalava os mercados do
leste asiático. Neste contexto, como era sua convicção, o
"efeito de abastança" de um mercado de valores em subida
poderia desempenhar uma função de estímulo e de
estabilização, promovendo o crescimento do investimento e da
procura de bens de consumo o que compensaria os efeitos negativos do
défice governamental e da subida do dólar sobre as taxas de
lucro. Caso o preço dos seus títulos subisse, as empresas
acederiam a fundos para investimento, doutra forma não
exequíveis, quer emitindo acções sobrevalorizadas quer
recorrendo ao crédito bancário. Pelo mesmo critério, os
privados, com a abastança de valores bolsistas em subida, teriam menos
necessidade de realizar poupanças.
KEYNESIANISMO APLICADO À BOLSA
Ao empreender o primeiro ensaio americano daquilo que pode designar-se por
keynesianismo aplicado à Bolsa, Greenspan, em lugar de procurar
controlar a bolha , encorajou-a activamente. Não só saudou o
enorme aumento de liquidez resultante do influxo de moeda estrangeira e da sua
própria redução das taxas de juro, como se recusou a
aumentar o custo do crédito desde princípios de 1995 até
meados de 1999 (com excepção da subida isolada de um quarto de
ponto em começos de 1997) ou a subir a margem requerida nas
aquisições de acções para desencorajar a
especulação. Interveio energicamente facilitando o crédito
sempre que o mercado de títulos ameaçava desfalecer em
particular no Outono de 1998, no nadir da crise financeira mundial. Como
resultado, de 1995 até 1999, as disponibilidades monetárias
aumentaram seis vezes mais do que entre 1990 e 1994, abrindo o caminho a uma
gigantesca vaga de especulação.
As empresas americanas, em particular, precipitaram-se no aproveitamento do
dinheiro fácil que Greenspan colocava ao seu alcance. Entre 1995 e 2000
aumentaram o seu endividamento para níveis recorde quando tomado em
percentagem do produto bruto empresarial; não só para financiar
novas instalações e equipamento, mas também para cobrir os
encargos com a recuperação dos seus próprios valores
bolsistas. Desta maneira contornavam o aborrecido processo de criar valor
bolsista pela produção lucrativa de produtos e serviços, e
directamente impulsionavam os preços das acções para
benefício dos seus accionistas e dos executivos empresariais que eram
significativamente remunerados com opções do mercado. Entre 1995
e 2000 as empresas americanas foram os maiores compradores, em termos
líquidos, no mercado bolsista.
COMPORTAMENTO DE MANADA
Ainda assim, a disponibilidade de dinheiro fácil apenas dá uma
explicação incompleta da grande corrida aos títulos.
Afinal, o baixo custo do crédito não chega para levar as pessoas
a endividarem-se com o intuito de especularem; e todavia a
especulação praticada por mutualidades, seguradoras,
fundos de pensões e outras instituições do género
foi indispensável para a expansão da bolha. Para explicar
o porquê de o dinheiro continuar a afluir aos títulos empresariais
mesmo quando os lucros estagnaram, há que levar em conta a forma
peculiar do funcionamento financeiro, e a tendência dos operadores para
um comportamento análogo ao das manadas. A partir dos começos de
1996, com a forte subida dos valores bolsistas, os gestores de fundos ficaram
sujeitos a forte pressão no sentido da compra, mesmo quando duvidavam da
viabilidade a longo prazo dessas aquisições. Se assim não
procedessem, arriscavam-se a serem ultrapassados pela concorrência e a
perderem os seus empregos. Por outro lado, se, a longo prazo, os valores
comprados desvalorizassem, não poderiam ser responsabilizados, já
que tantos outros haviam tido o mesmo comportamento.
Em consequência da histórica subida sem precedentes do
preço das acções, as empresas lograram não terem de
enfrentar a desagradável realidade do declínio dos rendimentos e
assim manterem a longa expansão dos anos 90 até mesmo ao final da
década. A magnitude do efeito da abastança, celebrado e
promovido por Greenspan e outros, não teve precedentes.
Historicamente, as empresas norte-americanas têm sido em larga medida
auto-financiadas, cobrindo substancial parte dos seus investimentos com a
retenção de lucros. Contudo, nos fins dos anos 90, estavam a
endividar-se a níveis recorde (comparados com a produção)
para subsidiar o investimento, enquanto igualmente se financiavam
através da emissão de títulos numa escala nunca antes
registada.
Os investidores privados abastados também viram os seus papeis subirem
astronomicamente. Segundo um estudo recente da Reserva Federal, os 20 por cento
dos investidores privados mais abastados respondiam pela espectacular
redução da taxa de poupança do nível de 8 por cento
em 1993 para zero em 2000. Ao comportarem-se deste modo, também
contribuíram para o aumento da taxa de consumo verificada nesse
período, ajudando as empresas a materializar vertiginosas subidas nos
investimentos em instalações, equipamento e software. Nas
palavras de um especialista, esta foi a primeira expansão na
história subscrita pelo "consumo yuppie".
Graças ao efeito de abundância suscitado pela subida dos valores
bolsistas, especialmente na tecnologia da informação, a
expansão alcançou efectivamente uma vitalidade crescente. Os
investimentos aumentaram no resto da década à taxa de 9 por cento
ao ano, encabeçando o
boom
. Isto resultou num rápido crescimento da produção, num
desenvolvimento apreciável da produtividade, na baixa do desemprego e
até mesmo, em significativos aumentos salariais. Não menos
importante, o grande aumento da procura nos EUA resultante da
aceleração da expansão, aliado ao dólar ainda em
valorização, arrancaram a economia mundial da
estagnação dos princípios de 90, seguidamente
resgataram-na da crise financeira internacional de 1997-98 e por fim suscitaram
uma nova reviravolta de sinal positivo para a economia internacional em 1999 e
2000.
A realidade, contudo, é que uma subida bolsista provocada pela
especulação, longe de criar as mais promissoras perspectivas de
expansão como rezam as fábulas da Federal Reserve, do
Council of Economic Advisers ou ainda da teoria económica ortodoxa
estava sistematicamente a levar o investimento por caminhos errados,
pois não tinha por base taxas de rendimento crescentes. A rápida
subida dos gastos com instalações e novos equipamentos das
indústrias da nova economia verificou-se num quadro de declínio
da rentabilidade da manufactura; e esse declínio em breve alastrou
às áreas da tecnologia da informação e às
telecoms. Aumentou o crescimento da produtividade, mas sem conduzir a uma
subida da taxa de rentabilidade porque era consequência do mesmo
sobre-investimento que simultaneamente estava criando excesso de capacidade e
de produção. A consequente pressão negativa sobre os
preços beneficiou os consumidores no curto prazo; mas ao forçar a
descida de lucros limitou o investimento, o crescimento e o emprego a longo
prazo. Entre 1997 e 2000, enquanto a expansão atingia o máximo, a
taxa de lucro do conjunto do sector empresarial caiu um quinto.
O "ciclo virtuoso" proclamado por Greenspan não passou de um
exagero. O que moveu a economia na segunda metade da década foi um ciclo
vicioso que da subida dos preços dos títulos passou para a subida
do investimento, e face ao declínio da rentabilidade, desembocou no
excesso de capacidade crescente que reduziu ainda mais a rentabilidade. Foi
este desafio, cada vez mais acentuado, das leis do equilíbrio, quer pela
economia em expansão, quer pela efervescente actividade bolsista, que
abriu o caminho aos escândalos contabilísticos, ao
crash
da Bolsa e à nova recessão.
O processo económico assumiu expressão mais dramática no
sector das tecnologias da informação e, particularmente, nas
telecomunicações. O frenesi na área
high-tech
foi desencadeado na administração Clinton pelo
"Telecomunications Act" de 1996, que desregulamentou o mercado das
telecoms. Uma falange de novos operadores entrou no mercado, esperando
capitalizar com a crescente procura sem precedentes, gerada pela
interminável expansão da Internet. Apostando no que assumiam
seria a sua vantagem tecnológica, contavam conquistar mercado aos
gigantes do sector, tais como a AT&T, Sprint e Verizon. A sua estratégia
focava-se no mercado de valores e na finança. Expandindo-se a grande
velocidade através de fusões e de aquisições,
lograram obter a aprovação dos mercados de títulos
deslumbrando-os mais com o tamanho e o crescimento das
organizações do que com os lucros. Nesta base, pretendiam fazer
subir os preços das acções e assim conseguirem o
financiamento requerido para novo crescimento.
Em breve as novas companhias de telecomunicações instalavam
dezenas de milhões de quilómetros de fibra óptica nos EUA
e sob os oceanos, com a indispensável ajuda das principais
instituições financeiras americanas e principalmente dos
maiores consórcios bancários. Estes supermercados financeiros
emergiram de um processo de desregulamentação cada vez mais
acentuado, patrocinado pela administração Clinton e por uma
direcção do Partido Democrático decidida a explorar as
sempre maiores oportunidades de realização de fundos que
resultariam da sua adopção do programa neoliberal e, em
particular, da agenda dos grandes bancos. Sob a cuidadosa supervisão de
Robert Rubin, que tendo desempenhado funções executivas na
Goldman Sachs fora convertido em secretário do Tesouro, em 1993, as
frágeis barreiras entre bancos de investimento, banca comercial e
companhias de seguros barreiras originalmente erguidas pelo New Deal, em
resposta aos excessos (estilo anos 90) dos anos 20 foram obliteradas.
O climax registou-se em Abril de 1998 quando a Travelers Insurance,
proprietária do banco de investimento Salomon Smith Barney, se fundiu
com o banco comercial Citicorp para formar o Citigroup, desafiando directamente
o "Glass-Steagall Act", peça fulcral reguladora das
finanças e que fazia parte do pacote legislativo New Deal. Claramente
aqueles gigantes confiavam na aprovação governamental da
fusão e com bons motivos para tal: a Citicorp doara quatro
milhões de dólares em contribuições de campanha nos
ciclos eleitorais de 1996 e 1998. As industrias das finanças, seguros e
imobiliário despenderam mais de 200 milhões de dólares
para influenciar os políticos
(lobbying)
durante 1998 e doaram mais US$ 150 milhões no curso da campanha
eleitoral do mesmo ano. Fundamentalmente, o recém criado mega-banco
sabia que podia contar com Rubin, e o secretário do Tesouro não
desiludiu. Certificou-se de que o Congresso permitiria a fusão e foi
prontamente recompensado quando, cinco meses depois de deixar o seu posto na
administração Clinton, o nomearam presidente da comissão
executiva do Citigroup, agora a maior instituição financeira do
país.
Os monólitos bancários que resultaram do processo de
desregulamentação financeira estavam supremamente bem colocados
para recolher os proventos das subscrições das emissões de
acções, fazer circular as obrigações e organizar as
fusões e aquisições da recém desregulada
indústria das telecoms. Sendo assim, nada mais natural do que
encorajarem e viabilizarem a obcecação dessas
mesmas empresas com a expansão. No seu papel como bancos comerciais,
também lhes agradava emprestar aos seus clientes tanto quanto eles
quisessem (às vezes abaixo das taxas do mercado), desde que pudessem
assegurar, no seu papel de bancos de investimento, o negócio de
financiar essas companhias e de receber as correspondentes comissões.
Igualmente se prontificavam a invocar as mais recentes inovações
em "finança estruturada" para ajudar os seus clientes a
melhorarem a aparência dos balanços empresariais, assim
alimentando a subida dos preços dos títulos, facilitando a
capacidade de realizar fundos, e desenvolvendo a procura dos serviços
financeiros. No quinquénio depois de 1995, os principais dez bancos
organizaram, para as companhias de telecomunicações, 1670
fusões e aquisições avaliadas em 1,3 triliões de
dólares, delas recebendo US$ 13 mil milhões de
remunerações.
Para estes mesmos bancos, também, nada agradava mais do que aconselhar
os ostensivamente independentes "analistas do mercado" (muitas vezes
a seu soldo) sobre a forma de valorizarem as acções das empresas
dos seus clientes. Isto no caso improvável desses analistas se deixarem
impressionar pela realidade dos insuficientes proventos dessas empresas. Do
mesmo modo não excluíam o suborno directo dos seus clientes
empresariais, entregando aos principais executivos acções no
valor de milhões de dólares, muitas vezes de ofertas
públicas iniciais, a fim de garantirem o seu negócio financeiro
isto não é ilegal a menos que seja possível provar
que a entrega dos valores era uma condição explícita para
a contratação do serviço. Entretanto, as firmas mais
antigas e reputadas de contabilistas, cada vez mais a funcionarem como
consultoras de investimento das mesmas companhias cuja escrita era suposto
terem sob a sua auditoria, mantinham o jogo, fechando os olhos às
manigâncias financeiras dos seus clientes.
Salomon Smith Barney, o ramo de investimento bancário do Citigroup,
desempenhou o papel de vanguarda neste processo, orientado pelo seu analista de
comunicações, Jack Grubman, que levou os seus clientes a darem
milhares de milhões de dólares por fibras ópticas,
providenciou de maneira a que Solomon lhes conseguisse o dinheiro, em seguida
recomendou as suas acções ao público investidor nos
títulos. "O que costumava ser um conflito de interesses é
agora uma sinergia", proclamou para tranquilizar os leitores, num artigo
na
Business Week
, em 2000. Após a aprovação do Telecommunications Act,
Salomon ajudou 81 empresas do ramo a realizarem US$ 190 mil milhões em
títulos e empréstimos. Como compensação pelas suas
diligências, recebeu centenas de milhões em prémios de
subscrição e mais algumas dezenas de milhões por
consultoria em fusões e aquisições. Particularmente
privilegiadas foram as estrelas da lista A da Solomon WorldCom, Global
Crossing e Qwest. Para estas três companhias Salomon realizou US$ 24,7
mil milhões, US$ 5,4 mil milhões e US$ 5,6 mil milhões,
respectivamente, e delas recebeu como pagamento dos serviços, US$ 140,7
milhões, US$ 83,8 milhões e US$ 34,4 milhões. Embora fosse
ilegal, do ponto de vista técnico, preparar o caminho para estes
negócios, Salomon premiou o executivo envolvido na mais quente das
ofertas públicas iniciais, tendo cedido a Bernie Ebbers, presidente da
WorldCom, títulos que foram convertidos em mais de US$ 11 milhões
de dólares.
Este comportamento foi reproduzido por todos os principais bancos de
investimento e pelos seus analistas de comunicações. Os gestores
de fundos que se mantivessem afastados dos títulos das telecoms
arriscavam-se a perder terreno face aos seus competidores. Isso levou os
investidores institucionais a precipitarem-se na compra de
acções, projectando o valor destas para áreas nunca
registadas. Entretanto, manifestando o comportamento de rebanho que lhes
é notório, os bancos comerciais bombardearam a indústria
das telecomunicações com mais fundos do que seria sensato
investirem, forçando a expansão e garantindo o excesso de
capacidade. Uma vez mais a dinâmica descrita por Keynes alimentou o
processo inerentemente especulativo: para acentuar ao máximo os lucros
só restava aos financeiros basearem as suas decisões de
investimento nas perspectivas de rendimento bolsista a curto prazo, e
não na sua própria avaliação do valor
intrínseco a longo prazo desses recursos.
Na primavera de 2000, no auge da subida do mercado, a
capitalização bolsista das
telecoms
(o valor das suas acções) atingira uns assustadores 2,7
triliões de dólares, ou seja perto de quinze por cento do total
de todas as empresas americanas não financeiras isto apesar de
produzirem menos de três por cento do produto bruto nacional. Com
tão enormes garantias aparentes, as firmas de
telecoms
podiam endividar-se sem limites. Entre 1996 e 2000 receberam 800 mil
milhões de dólares em créditos bancários e emitiram
mais 450 mil milhões em títulos. Nesta base conseguiram aumentar
o investimento em termos reais (isto é, calculados em dólares de
1996), durante o mesmo período, à razão anual de mais de
15 por cento, e criar 331 mil empregos.
O problema, claro, é que graças à
desregulamentação dos mercados financeiros e de produtos, todos
estavam a agir do mesmo modo. Em 2000, não menos de seis companhias
americanas, em concorrência mútua, estavam a construir redes
nacionais de fibra óptica. Mais algumas centenas de empresas instalavam
redes locais e algumas competiam também nas ligações
submarinas. No conjunto, 39 milhões de milhas (62,75 milhões de
quilómetros) de linhas de fibra óptica cobriam então os
Estados Unidos, o bastante para dar 1566 voltas ao globo. O inevitável
resultado foi uma gigantesca inundação de meios: a taxa de
utilização das redes das
telecoms
oscila actualmente nuns desastrosamente baixos 2,5 a 3 por cento, a do cabo
submarino em escassos 13 por cento. Dificilmente se encontraria prova mais
evidente de que o mercado especialmente o mercado financeiro
não é bom juiz das condições prevalecentes. A
consequência foi um acumular de capital imobilizado que não
poderia deixar de pesar, num futuro previsível, sobre a taxa de
rendimento, tal como aconteceu com a acumulação de títulos
ferroviários durante o
boom
do século XIX.
Mesmo com a subida dos preços dos seus títulos e a escalada das
compras de novas instalações, equipamento e software, as
companhias de telecomunicações continuavam a não conseguir
realizar lucros. Tendo alcançado um máximo de 35,2 mil
milhões de dólares em 1996, o ano da
desregulamentação, os lucros empresariais (depois do pagamento
dos juros dos débitos das companhias) na indústria das
comunicações afundou-se para 6,1 mil milhões em 1999, e
seguidamente para menos 5,5 mil milhões em 2000, quando disparou o
pagamento dos juros dos seus gigantescos débitos.
CONTABILIDADE FRAUDULENTA
Contra este pano de fundo, constituído por rendimentos em
declínio e crescentes investimento e dívidas, tornou-se cada vez
mais intensa a pressão para manter o fluxo de financiamento, e surgiu
como irresistível a tentação de inflacionar os lucros
através de uma contabilidade fraudulenta. Aqui a "coudelaria"
de
telecoms
da Salomon surgiu na primeira linha. A Global Crossing e a Qwest
começaram a "trocar" negócios de forma rotineira, com
uma companhia contratando o arrendamento das suas próprias linhas
à outra, enquanto alugava linhas equivalentes para a sua própria
utilização, registando o produto da primeira
operação como rendimentos e classificando a segunda como
depreciação de instalações e equipamento, a
distribuir por uma série de anos. Com este expediente, ambas as empresas
inflacionaram os rendimentos de 2001 em pelo menos um mil milhão de
dólares, quantia provavelmente muito superior aos lucros por cada uma
registados. Ambas as companhias enfrentam agora investigações de
provável acção criminosa, embora só em Agosto de
2002 a
Securities and Exchange Comission
tenha explicitamente declarado ilegal esse comportamento, o que levanta
dúvidas sobre a eficácia da fiscalização
governamental.
O CASO WORLDCOM
Mas os crimes da
Global Crossing
e da
Qwest
não passam de pecadilhos quando comparados com as iniciativas da
WorldCom,
que bem pode dizer-se ter reescrito o livro da vigarice empresarial. Segundo
os dados mais recentes, a
WorldCom
declarou entre 1999 e 2001 nove mil milhões de dólares a mais
sobre os seus lucros. Em grande parte conseguiu isto com a simples
astúcia de tratar os gastos do dia-a-dia, por exemplo os ordenados, como
se fossem pagamentos de máquinas e utensílios (
capital goods
). Assim podiam registá-los como depreciação de
equipamentos e adiar o seu aparecimento como custos nos balanços da
companhia.
Interrogado, numa auditoria interna feita antes de a fraude se tornar
pública (desvendada no
Wall Street Journal
de 16 de Julho de 2002), sobre a justificação do tratamento
contabilístico das despesas, o controlador da
WorldCom
, David Myers, reconheceu que "contara que não teria de
explicar" a manobra. Por outro lado, argumentou que, caso os custos da
WorldCom
não tivessem sido reduzidos e os lucros aumentados, "mais valia a
companhia fechar as suas portas".
Da maior importância para as manobras de dissimulação desta
empresa são as próprias normas contabilísticas da Wall
Street, que praticamente legitimam todos os expedientes para inflacionar os
lucros
pro-forma
isto é, os que são transmitidos trimestralmente aos
accionistas e à comunidade financeira. Só mais tarde é que
as companhias são obrigadas a manifestar os seus rendimentos reais,
calculados de acordo com o estrito GAAP (Princípios
Contabilísticos de Aceitação Geral), à
Securities and Exchange Commission
(SEC). Desnecessário é dizer que este sistema de dupla
comunicação de resultados convida a abusos por exemplo,
mantendo exagerados os lucros a curto-prazo por um período bastante para
segurar os preços enquanto os que têm acesso à
informação interna alijam os seus títulos. Para dar uma
ideia da escala da falsificação de informação em
causa, um estudo recente da
SmartStockInvestor.com
revelou que, nos três primeiros trimestres de 2001, as cem companhias
Nasdac
comunicaram aos seus accionistas lucros
pro-forma
de 19 mil milhões de dólares, e à SEC perdas de 82 mil
milhões, calculadas segundo o GAAP. No mesmo período, o conjunto
da Microsoft, Intel, Cisco Systems, Oracle e Dell, declararam o triplo dos seus
verdadeiros lucros.
A razão pela qual os escândalos atingiram tão duramente a
bolsa de valores e a economia está no facto de eles confirmarem as
piores suspeitas dos investidores quanto à queda dos rendimentos
empresariais. O desvendar da fraude da WorldCom abalou os mercados porque
tornou evidente que o que parecia ser uma das mais bem sucedidas empresas do
ramo das
telecoms
não tivera lucros em 2000 nem em 2001 (e possivelmente tão-pouco
em 1998 ou 1999). Conforme um analista disse à Fortune, em Julho de
2002, a WorldCom "parecia possuir uma formula secreta para produzir
margens decentes que os rivais não conseguiam". Quando esta formula
foi entendida, escoou-se o ar que restava na bolha expansionista das
telecoms.
Todavia, não deve inferir-se que os gestores que estiveram na origem dos
grandes golpes das
telecoms
foram tão desastrados que se deixaram apanhar na carnificina financeira
resultante das suas manobras. Entre 1997 e 2001, elementos das
direcções empresariais, os "insiders", receberam cerca
de 18 mil milhões de dólares em acções, tendo
vendido mais de metade desse total em 2000, o ano em que o preço das
acções das
telecoms
atingiu o pico. Mas este é apenas um apuramento superficial da
gigantesca redistribuição de riqueza conseguida nos anos 90 pelos
dirigentes empresariais norte-americanos. Entre 1995 e 1999, o valor das
opções de valores bolsistas concedidas a executivos americanos
mais do que quadruplicou, de 26,5 mil milhões para 110 mil
milhões de dólares, ou seja, um quinto dos rendimentos
empresariais não-financeiros, livres de encargos. Em 1992, os executivos
possuíam dois por cento dos valores bolsistas das empresas dos EUA;
actualmente possuem doze por cento, o que figura entre os mais espectaculares
actos de expropriação da história do capitalismo.
O raciocínio económico subjacente à grande bolha de
expansão das
telecoms
foi a presunção de que a procura dos serviços da Internet
aumentaria exponencialmente, levando a uma procura correspondente de novas
redes de comunicação. O presumível desenvolvimento
maciço das telecomunicações foi a premissa do
desenvolvimento explosivo paralelo da manufactura de equipamentos e, por seu
turno, dos fabricantes de componentes. O estouro, quando surgiu, alastrou
assim das
dot.coms
, via telecoms, aos fornecedores de equipamentos e produtores de componentes.
A chamada bolha das
dot.coms
foi, à sua maneira, tão impressionante como a bolha das
telecoms
. A despeito do seu infinitesimal contributo para o Produto Bruto, o valor
bolsista das firmas da Internet chegou a 8 por cento do total para todas as
empresas americanas. A realidade é que a maioria dessas companhias
só tinha prejuízos, e as poucas com lucros faziam-no numa
relação preço-rendimento extremamente desfavorável.
Numa amostra de 242 empresas da Internet estudadas pela OCDE, apenas 37
apresentaram lucros no terceiro trimestre de 1999, com apenas duas delas
respondendo por 60 por cento do total. Para as 168 companhias das quais se
dispunha de dados pormenorizados, as perdas no terceiro trimestre ascenderam a
12,5 mil milhões mas isto não impediu que a sua
capitalização no mercado bolsista atingisse 621 mil
milhões. Na Primavera de 2000, na esteira de constantes
prejuízos, muitos destes operadores estavam simplesmente a ficar sem
dinheiro. Pouco depois registou-se o
crash
e o subsequente colapso da indústria.
O rebentamento da bolha expansionista da Internet foi o catalisador do desastre
das
telecoms
, o qual principiou no Verão de 2000 com uma aparentemente
interminável série de desastrosos relatórios de
prejuízos no sector
high-tech
. A caótica derrota da nova economia estava em marcha. Os lucros da
indústria das comunicações caíram 5,8 mil
milhões de dólares em 2001 e 11,9 mil milhões em 2002. Em
meados de 2002, as acções das
telecoms
haviam perdido 95 por cento do seu valor; cerca de 2,5 triliões de
dólares de capitalização do mercado esfumaram-se.
Actualmente o débito das empresas de telecomunicações
orça cerca de 525 mil milhões conjuntamente mais do que o
valor dos depreciados títulos em fins dos anos 80 e do custo da
intervenção de resgate da comissão "Savings and
Loan" (Caixas Económicas).
Porque as
telecoms
eram responsáveis por uma tão desproporcionada parcela de
capital acumulado, os ecos do seu colapso foram imensos. No ano 2000 a
indústria representava 12 por cento dos gastos com equipamento na
economia americana. Porém, o investimento das
telecoms
caíu 40 por cento nos dois anos seguintes. Desde Dezembro de 2000 foram
à bancarrota empresas de telecomunicações avaliadas
conjuntamente em 230 mil milhões e 60 por cento de todas as
falências empresariais vieram desse sector. No mesmo período a
indústria lançou no desemprego mais de meio milhão de
trabalhadores 50 por cento acima dos que contratara na espectacular
expansão entre 1996 e 2000. Em comparação, a
indústria automóvel levou duas décadas a reduzir o emprego
de 1,5 milhão para 732 mil trabalhadores.
O declínio das encomendas das
telecoms
atingiu duramente os seus fornecedores, incluindo empresas da primeira linha
do
boom
tecnológico como a Cisco Systems, a Lucent, Nortel e a Motorola, as
quais sofreram catastróficas descidas no preço das suas
acções e o agravamento das condições financeiras.
Por seu turno, os problemas destas repercutiram-se duramente nos seus
próprios fornecedores. Favoritos dos mercados de valores tais como a JDS
Uniphase e Sycamore caíram no rol dos esquecidos. A indústria dos
semi-condutores muito atingida pela acentuada descida na venda de
computadores e também pela situação das
telecoms
entrou no seu pior declínio desde princípios dos anos
oitenta. Numa palavra, a reacção em cadeia provocada pelo
crash
das
telecoms
foi responsável em cerca de uma quarta parte pelo declínio no
crescimento económico entre a primeira metade de 2000 e a primeira
metade de 2001; e assim, de maneira desproporcionada, pela queda da economia em
recessão no ano de 2001.
Os problemas das
telecoms
sobrepuseram-se a uma crise mais geral no sector da alta-tecnologia,
especialmente nos computadores e semi-condutores. Uma análise publicada
a 16 de Agosto de 2001 no
Wall Street Journal
revela aprofundidade da crise entre as 4200 companhias listadas no
índice do Mercado Nasdaq. As perdas dessas firmas nos doze meses
após 1 de Julho de 2000 ascenderam a 148,3 mil milhões por
outras palavras, um pouco mais do que os 145,3 mil milhões de lucros que
manifestaram no
boom
de 1995 a 2000. Tal como comentou um economista: "O que isto significa
é que, com o benefício de uma leitura
a posteriori
, os anos finais da década de 90 nunca aconteceram." A
própria crise do sector da alta tecnologia desenrolou-se no contexto de
uma economia alargada já ferida pelo excesso de capacidade na
manufactura internacional. Em começos de 2002, a taxa de lucro do sector
empresarial de manufactura descera 42 por cento em relação ao
máximo de 1997. A rentabilidade no sector empresarial
não-financeiro, tomada em conjunto, atingira o seu mais baixo
nível do após-guerra (com as excepções de 1980 e
1982).
Sob o impacto do colapso dos preços dos títulos e da crise de
rentabilidade, o crescimento da produção e do investimento
desceram mais rapidamente entre meados de 2000 e de 2001 do que em qualquer
outro período desde a Segunda Guerra Mundial. Isto é tanto mais
compreensível quanto, segundo o Council of Economic Advisers, o sector
da tecnologia da informação, que constituía apenas 8 por
cento do Produto Bruto Nacional, foi responsável por quase um
terço de todo o crescimento do Produto entre 1995 e 1999. Numa base
anual, o crescimento do Produto Bruto baixou de 5 por cento para 0,1 por cento
negativos. O crescimento do investimento não-residente caíu de 9
para menos 5 por cento. Em resposta, as empresas dos EUA têm reduzido
drasticamente os seus meios de produção e, em particular, a sua
força de trabalho no esforço de recuperar competitividade,
pressionando os seus rivais no mesmo sentido. Desde o primeiro trimestre de
2000, o emprego no sector de manufactura (medido em horas) foi reduzido por
uns espantosos 13,8 por cento. Como efeito de conjunto, regista-se uma poderosa
espiral descendente, na qual a pressão sobre os preços resultante
de excesso de capacidade tem conduzido à descida da rentabilidade, queda
do investimento, subida do desemprego e das falências e, finalmente, a
reduções na procura de bens, por seu turno geradoras de quedas de
preços e de rentabilidade, e assim sucessivamente.
ENTRADA NO CICLO DE DECLÍNIO
Com a entrada dos EUA no seu declínio cíclico, o resto do mundo
foi também arrastado. Sob o impacto da diminuição das
importações americanas, as economias do Japão, Europa e
leste asiático começaram a perder elan, o que causou nova descida
acentuada das exportações dos EUA e contribuiu para deprimir
ainda mais o crescimento. Este processo recessivo internacional que mutuamente
se reforça é mais preocupante devido ao ponto a que as economias
do resto do mundo, face a uma procura interna estagnante, se tornaram
dependentes das exportações, nas duas últimas
décadas, dependendo assim, também, de uma economia americana que,
consequentemente, só pode contar consigo própria para sair da
crise.
Desde Janeiro de 2001 a Reserva Federal baixou as taxas de juro por doze vezes,
atingindo as reduções uns impressionantes 5,25 por cento, para os
actuais 1,25 por cento, taxa que constitui um recorde desde o
após-guerra. Mas no que respeita às empresas, a medida não
tem suscitado a desejada reacção. O investimento em
instalações e equipamento, chave da saúde
económica, tem baixado em todos os trimestres desde o Outono de 2000,
alimentando a recessão.
Em contraste, os privados têm aproveitado o crédito barato e
aumentaram o seu endividamento a uma taxa ainda mais elevada do que durante o
boom
, especialmente através da renovação do financiamento das
hipotecas. Em resultado disto, os gastos dos consumidores continuaram a subir e
foram quase inteiramente responsáveis pela travagem da espiral
descendente da economia em 2001, restaurando a estabilidade, pelo menos
temporariamente. Washington tem esperança de que os gastos dos
consumidores se mantenham o tempo suficiente para que as empresas limitem o seu
excesso de capacidade. Mas a preocupação é que o excedente
de instalações e equipamento continue a contrariar novos
investimentos de capital e que os gastos dos consumidores venham a declinar
face ao crescente desemprego e aos insustentáveis níveis de
endividamento.
TRÊS DESEQUILÍBRIOS ENORMES
Embora a política federal de crédito fácil tenha produzido
uma aparência de ordem, ela também contribuiu para perpetuar
três enormes desequilíbrios resultantes da bolha expansionista,
assim ampliando a potencial magnitude do desastre. O primeiro é o
próprio
valor das acções
. Os preços dos títulos tem, obviamente, caído de forma
acentuada. Contudo, o seu declínio não logrou alinhar os seus
valores com os lucros, dado que estes caíram ainda mais. Em finais de
2001, o índice composto
S&P
descera cerca de 25 por cento do seu máximo de meados de 2000, mas a
relação preço-lucros das suas empresas subira, na
realidade, 25 por cento. Sem dúvida o crédito barato tem
contribuído para manter as acções excessivamente cotadas,
emprestando uma aparência favorável ao mundo dos negócios.
Porém uma "correcção" séria poderia agora
destruir a economia.
Em segundo lugar, no ano de 2002 os
défices comerciais e de conta-corrente dos EUA
bateram todos os recordes. Até há pouco, os compradores
estrangeiros mostravam-se mais do que desejosos de compensar esses
défices com grandes investimentos directos nos EUA e através da
compra de títulos e obrigações de empresas. Mas perante o
comportamento decepcionante da economia e da Bolsa americana, o resto do mundo
reduziu drasticamente as suas compras, tendo a aquisição de
títulos baixado 83 por cento em 2002, quando comparado com 2000. Em
consequência deste desencanto, aumentou a pressão sobre a moeda e
num ano o dólar baixou 16 por cento contra o euro. A continuarem estas
tendências, a Reserva Federal poderá em breve ser confrontada com
uma escolha penosa: ou deixar o dólar cair e arriscar-se a que os
investidores estrangeiros liquidem ao desbarato os bens americanos o que
poderá não só criar o caos nos mercados mas também
desencadear uma corrida contra o dólar ou subir as taxas de juro
arriscando-se a empurrar novamente a economia para uma depressão
profunda.
Por último, embora o endividamento empresarial tenha caído
acentuadamente nos últimos dois anos, o incremento do
endividamento interno
neste período levou a dívida privada a ultrapassar o seu recorde
verificado no auge do
boom
, mesmo perante o cenário de crescente desemprego. O que tornou isto
possível foi o enorme avanço nos preços da
habitação, ele próprio instigado não só
pelas baixas taxas de juro como pela significativa transferência de
fundos de mercados bolsistas pouco atractivos para o imobiliário. A
valorização do imobiliário habilitou os
proprietários a lidarem com os seus bens como se fossem valores
bolsistas: segundo um estudo recente da Goldman Sachs, no terceiro trimestre
de 2002 os americanos realizaram o surpreendente rendimento líquido de
320 mil milhões de dólares (numa base anual) a partir dos seus
imóveis. Porém, caso a bolha expansionista do imobiliário
rebentasse, ou mesmo deixasse de aumentar, os consumidores privados, tendo os
seus títulos imobiliários já fortemente desgastados,
teriam de reduzir o seu endividamento. Os gastos dos consumidores teriam
então de ser fortemente reduzidos, ameaçando o principal esteio
da recuperação.
Em Dezembro de 2002 a Reserva Federal reduziu o custo do endividamento por mais
meio ponto, o que equivale a uma admissão de que as enormes facilidades
de crédito dos dois anos anteriores foram insuficientes para
relançar a economia. Esta circunstância foi ainda tornada mais
evidente ao exprimir publicamente o receio de que, em consequência da
capacidade industrial excedentária e da subida do desemprego, os
aumentos de preços eram demasiado baixos e talvez em declínio,
gerando uma pressão negativa sobre os rendimentos. A queda de lucros no
segundo e terceiro trimestres de 2002 parece confirmar as
preocupações da Reserva Federal. As garantias subsequentemente
dadas por Greenspan e pelo Governador da Reserva, Ben Bernanke, de que a
deflação não passava de uma possibilidade remota e
em qualquer caso poderia ser facilmente controlada pelo aumento da
circulação fiduciária tiveram, naturalmente, um
efeito contrário ao pretendido.
Após mais de uma década durante a qual o equilíbrio
orçamental assumira um estatuto de quase fé religiosa, muitos
converteram-se à necessidade de uma maior dose de despesa
deficitária. A administração Bush pareceu concorrer nesse
sentido com um programa destinado a intensificar os estímulos já
crescentes. Porém, cedo se tornou evidente que, tal como a resposta de
Bush ao 11 de Setembro foi a guerra contra o Iraque que Cheney, Rumsfeld e
companhia planeavam há mais de uma década, a resposta de Bush
perante uma economia ameaçada foi a redução de impostos
para os ricos, primeiro item da sua agenda e da do Partido Republicano desde o
dia em que saiu do seu rancho, apoiada por aumentos nos gastos com armamento
para apoiar as controversas campanhas do Médio-Oriente. E tal como a
guerra no Iraque e correlativas despesas militares pouco prometem no sentido de
aumentar a segurança dos cidadãos americanos, os elementos
constitutivos do défice Bush pouco favorecem o estímulo da
economia. Resta o facto de que, graças ao 11 de Setembro e à
debilidade da economia, a administração Bush conseguiu
lançar uma repetição do programa de Ronald Reagan de uma
maneira que há escassos dois anos e meio seria inconcebível.
Os elementos chave do plano tributário de Bush envolvem antecipar para
2003 as reduções das taxas de impostos sobre os maiores
contribuintes que previamente haviam sido previstas para 2004 e 2006, assim
como a abolição dos impostos sobre dividendos. Uma vez que estas
reduções de impostos se confinam aos mais abastados e dado que,
segundo Edward Wolff, economista da Universidade de Nova York, no espectro do
rendimento os dez por cento mais altos possuem aproximadamente 85 por cento do
valor dos títulos e fundos mútuos sujeitos a taxas (destes, um
por cento é detentor de cerca de 49 por cento), é fácil
adivinhar quem são os beneficiados. Segundo a
Citizens for Tax Justice
, sedeada em Washington, os contribuintes do grupo dos dez por cento
receberão cerca de 60 por cento dos ganhos, enquanto que os do grupo de
um por cento terão ganhos médios de 30 mil dólares cada.
Como produzirão estas medidas o esperado estímulo? Segundo a
administração, a eliminação do imposto sobre
dividendos fará subir o valor dos títulos, levando os
beneficiários do plano a reinvestir o dinheiro que poupam na Bolsa de
Valores, conducente a uma subida do preço das acções
até dez por cento, segundo as previsões mais optimistas.
Inacreditavelmente ou quase, o caminho planeado para reanimar a economia
consiste em voltar a encher a bolha.
A outra trave mestra implícita no programa governamental de
estimulação da economia tem-se desenvolvido desde que Bush tomou
posse, especialmente a partir do 11 de Setembro. Com efeito, em 2001 e 2002 as
despesas militares cresceram, respectivamente, 6 e 10 por cento, ascendendo a
65 e 80 por cento, respectivamente, dos aumentos totais da despesa Federal
nesses anos. Dado que o orçamento militar dos EUA era já maior do
que o orçamento conjunto dos 25 países que se sucedem na ordem
destas despesas, e atendendo também a que representa 26 vezes o gasto
correspondente do conjunto de sete países tradicionalmente identificados
pelo Pentágono como os seus mais prováveis adversários
(Cuba, Irão, Líbia, Coreia do Norte, Sudão e
Síria), não se torna fácil encarar estes aumentos como
indispensáveis para a segurança nacional. A actual força
militar do Iraque, alvo imediato dos Estados Unidos, é segundo todos os
cálculos talvez um terço do que era em 1991. Não obstante,
as despesas militares estão sem dúvida a proporcionar o mais
directo estímulo da administração à economia, como
atesta o facto de que no período de um ano subsequente ao 11 de Setembro
os títulos dos nove maiores fornecedores de material de defesa terem
registado um desempenho superior em 30 por cento relativamente aos S&P500.
Desde princípios de 2000, o défice orçamental Federal,
tomado como percentagem do Produto Bruto, aumentou acentuadamente para 1,8 por
cento, em relação a um excedente de 2,3 por cento, e certamente
irá mais longe. Porém, num cenário de empresas atascadas
em instalações e equipamento, de privados endividados até
às orelhas e perto da insolvência, o recurso ao défice
é provavelmente insuficiente para proporcionar mais do que um moderado
impulso ao crescimento. E contudo é improvável que a
administração Bush esteja muito preocupada com esta
situação. A abolição do imposto sobre dividendos e
a redução de taxas para os maiores contribuintes não teria
efeito antes de 2004. Para cúmulo, estas medidas reduziriam fortemente
as receitas dos governos estaduais, cujo orçamento já é
limitado, contrariando o estímulo Federal ao obrigar muitos deles a
limitarem as despesas. Porta-vozes da administração bem como
dirigentes repúblicanos do Congresso já fizeram saber que,
à semelhança de Reagan, tencionam controlar o défice que
estão a criar refreando os gastos não militares. Sublinhando esta
postura, já inviabilizaram uma proposta no sentido de alargar o seguro
de desemprego nos casos dos trabalhadores cujos benefícios já se
esgotaram, e insistem em que um maior número de pessoas sejam retiradas
dos serviços de assistência, isto apesar da decrescente
disponibilidade de empregos. Medidas que aumentariam imediatamente, de forma
significativa, o poder de compra dos trabalhadores tais como
reduções nas taxas sobre as folhas de vencimentos,
subsídios que permitissem aos estados manterem o nível de
despesas com a saúde e serviços sociais, ou bónus directos
aos trabalhadores são anátema para esta
Administração. Tal como os planos do Governo Bush para a
segurança nacional incidem na projecção do poderio militar
americano no Médio Oriente e mesmo para além dele, o seu programa
de estímulo da economia incide na transferência da riqueza dos
pobres para os já abastados. Bush e os seus conselheiros contam,
evidentemente, que a economia se endireitará por si própria.
Persiste o facto de que os analistas da Wall Street revelavam em fins de
Janeiro que provavelmente a economia se retraíra no último
trimestre de 2002: ou a recessão estava a agravar-se ou começara
a temida queda dupla. Pela primeira vez as sondagens à opinião
pública registam menos de 50 por cento de aprovações
à maneira como a administração gere as questões da
economia e que o apoio à guerra no Iraque baixou. Para a economia dos
EUA e para a administração Bush, o caminho aberto afigura-se
acidentado.
[*]
Director do Centro de Teoria Social e História Comparada da UCLA,
autor de
The Boom and the Bubble,
publicado em Junho de 2002. Sítio do autor em
http://www.history.ucla.edu/brenner/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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