A caminho do abismo:
a crise na economia dos EUA


por Robert Brenner [*]

Capa do último livro de Brenner. Às 6 da manhã de 12 de Junho de 2002, quatro agentes do FBI irromperam no apartamento do Soho de Samuel Waksal, ex-presidente do conselho de administração da companhia de bio técnica ImClone Systems Inc, e levaram-no algemado sob a acusação de práticas especulativas. O seu pai e a sua filha haviam vendido cerca de 175.000 acções da ImClone escassos dias antes de a Food and Drug Administration (organismo regulador) ter anunciado a rejeição do Erbitux, remédio contra o cancro que a companhia se propunha lançar, rejeição que conduziu a uma acentuada descida das acções. (O próprio Waksal, no passado Setembro, apurara US$ 57 milhões numa transacção de acções da ImClone, e em 2001 realizara mais US$ 72 milhões das suas opções de carteira). A 25 de Julho, John Rigas, o antigo director da Adelphia Communications, foi preso, juntamente com os seus dois filhos, sob a acusação de crimes envolvendo a empresa, nomeadamente por usarem a companhia como "mealheiro pessoal da família", gastando centenas de milhões de dólares em jactos particulares, empréstimos pessoais, condomínios de luxo no Colorado, México e na cidade de Nova York – e na construção de um campo de golfe de US$ 12,8 milhões. A 12 de Setembro, Dennis Kozlowski, o antigo director da Tyco International – descrito pela Business Week como sendo "provavelmente o mais aguerrido negociador da América empresarial" – foi detido sob a acusação de ter obtido fraudulentamente mais de US$400 milhões ao vender acções da Tyco enquanto sonegava a informação aos investidores. Kozlowski servira-se dos fundos para comprar uma mansão na Florida, sumptuosas propriedades em Boca Raton, Nantucket e New Hampshire, um apartamento de US$ 7 milhões para a sua primeira mulher, diamantes de Harry Winston e Tiffany's, e uma frota de velozes automóveis e Harley Davidsons.

Em Agosto, o Wall Street Journal publicou uma lista de mais de duas dúzias de importantes empresas sujeitas a investigação oficial, incluindo nomes tão conhecidos como AOL Time Warner, Bristol Meyers, Dinegy, Enron, Global Crossing, Kmart, Lucent Technologies, Merck, Qwest, Reliant Services, Rite Aid, Universal Vivendi, WorldCom e Xerox. Os dois maiores bancos dos EUA, Citigroup e J.P.Morgan Chase, estão igualmente a ser investigados, bem como a Merrill Lynch. Entretanto, os "barões da bancarrota", como lhes chama o Finantial Times – dirigentes empresariais das maiores 25 companhias que faliram no ano passado – arrecadaram $3,3 mil milhões com a venda de títulos e com compensações nos três anos que precederam o afundamento das suas empresas.

PRÁTICAS DE RAPINA

Quando os escândalos empresariais começaram a fazer títulos na comunicação, em princípios de 2002, o secretário do Tesouro dos EUA Paul O'Neill atribuiu-os à imoralidade de um "pequeno número" de malfeitores. Tudo indica que estava mal informado. As práticas de rapina desses executivos e dessas firmas – sendo ou não técnicamente ilícitas – são típicas e endémicas da América empresarial. Todavia, os recentes escândalos atestam não apenas o nível de corrupção individual característico do capitalismo de compadrio dos EUA mas também problemas do próprio sistema na economia real. É porque a epidemia de fraudes evidencia a falta de saúde das próprias empresas que a confiança dos investidores e a Bolsa de Valores têm sido tão rudemente abaladas.

A manipulação fraudulenta da contabilidade empresarial que actualmente emerge é consequência directa da expansão dos finais da década de 90, propiciada por um aumento quase sem precedentes na valorização dos títulos. A sua razão de ser tem sido inteiramente clara: ocultar a realidade de um quadro de lucros empresariais cada vez mais desesperado. Entre 1997 e 2000, precisamente quando a pretensa expansão económica atingia o ápice, a taxa de lucro no sector empresarial não-financeiro caía uns dramáticos 20 por cento, inicialmente como consequência do excesso de capacidade de produção internacional. Em circunstâncias normais isto teria causado abrandamento na acumulação do capital e no crescimento económico. Todavia, na realidade os valores bolsistas subiram, particularmente no sector das tecnologias de informação (TI), mesmo perante a queda de rendimento das empresas. Desta maneira as companhias lograram aceder a novos fundos com uma facilidade sem precedentes, quer emitindo acções a preços altamente inflacionados, quer recorrendo ao crédito bancário garantido por esses títulos sobrevalorizados. Na base desta bonança financeira, as empresas americanas, especialmente nas indústrias de TI, incrementaram largamente a sua acumulação de capital. O boom no investimento continuou, com crescente aumento de produção e de produtividade. Mesmo os sóbrios e académicos economistas do Council of Economic Advisers, para não falar na cúpula do Federal Reserve, celebraram a nova sinergia de mudança tecnológica conducente a uma era de progresso sem precedentes, e de disponibilidade dos mercados financeiros .

O problema, evidentemente, é que em condições normais, para justificar e suportar cotações em veloz subida, bem como o rápido investimento, são necessários lucros em acentuada ascensão. Em vez disso, enquanto o investimento acelerava e em face do declínio dos rendimentos, o excesso de capacidade agravou-se e a queda da rentabilidade alastrou-se desde a manufactura até às principais indústrias de alta tecnologia – principalmente às telecomunicações. Confrontados com a evidente falta de "alicerces", os dirigentes empresariais experimentaram uma pressão crescente no sentido de manter os valores das acções elevados a qualquer custo, para continuarem a aceder a financiamentos baratos e aos fundos de investimento necessários para competirem; o facto de dependerem fortemente das opções bolsistas naturalmente precipitou a tentação. Uma após outra as grandes empresas falsificaram a sua contabilidade a fim de inflar os ganhos a curto prazo.

DA BOLHA À RECESSÃO

Mas a economia não pode desafiar eternamente a gravidade. A partir de meados de 2000, a realidade da crise de lucros tornou-se aparente quando uma interminável parada de empresas, incluindo quase todas as estrelas do boom , foram obrigadas a manifestar receitas cada vez mais reduzidas. Os preços das acções entraram num declínio acentuado e os investidores gradualmente despertaram para a realidade de que haviam sido enganados. Nessa altura o mercado bolsista já não estimulava a economia: ao contrário, ao dar-se o colapso dos títulos, as empresas eram obrigadas a reduzir quer no endividamento quer na emissão de acções, tornando mais difícil a acumulação de capital. A massa gigantesca de equipamentos e de instalações industriais supérfluas (legado da bolha explosiva de maus investimentos) tornou-se evidente para todos. As empresas foram deixadas com poucas razões para acumular novos meios de produção, ou trabalho, mas com todos os motivos para iniciar guerras de preços. A economia mergulhou em recessão.

Para restabelecer a ordem, a Reserva Federal desceu as taxas de juro para níveis recorde, mas não houve resposta das empresas já sobrecarregadas com meios de produção. O investimento continuou a declinar, obrigando ao desemprêgo, reduzindo a procura e exercendo nova pressão descendente sobre preços e lucros. O recurso ao endividamento interno, que assumiu proporções de orgia, habilitou o "todo-poderoso consumidor" a salvar temporariamente a situação. Mas em consequência da excessiva indulgência com o endividamento formou-se uma nova bolha inflacionária, agora no mercado de habitação, a qual provavelmente será de pouca dura. Justificando-se com o 11 de Setembro (atentado contra as torres de Manhattan) e com a má situação da economia – já para não falar no falhanço da política monetária Federal – a Administração Bush invocou a necessidade de estímulo e de segurança para justificar um regresso à velha formula de Reagan: aventura imperial, redução de impostos para os ricos e aumento com os gastos militares. Mas a projectada eliminação do imposto sobre dividendos não visa aumentar a procura, do mesmo modo que a guerra contra o Iraque, e as consequentes despesas com armamento, não supõem o aumento da segurança americana. O défice aumentado que resultará destina-se, tal como no tempo de Reagan, a obrigar a cortes nos gastos não militares, particularmente nos serviços sociais para os menos favorecidos, o que actuará como contra-partida de qualquer estímulo que suscite. Escassamente revigorada pela política governamental, a economia arrasta-se em direcção ao precipício.

Segundo a versão oficial – contada não só nos depoimentos de Alan Greenspan perante o Congresso mas também no Council of Economic Advisers' Economic Report of the President 2001, o último da Administração Clinton – a Bolsa fomentou uma revolução tecnológica nos anos 90, o que permitiu à economia dos EUA, em contraste com os seus menos bem sucedidos rivais no Japão e na Europa Ocidental, escapar a duas décadas de estagnação. Nesta perspectiva, emergiu uma "nova economia" focada na tecnologia de informação a qual, tendo aumentado significativamente a possibilidade de crescimento da produtividade, abriu o potencial para ganhos muito mais elevados. Na expectativa desses lucros, o mercado de valores subiu para níveis extraordinários.

Naturalmente, diz a história, os financiadores responderam aos elevados preços das acções das empresas emprestando-lhes dinheiro ou comprando as suas acções. O crescente investimento permitiu a acelerada aplicação de nova tecnologia económica e o consequente aumento de produtividade, o que suscitou um potencial de lucros ainda mais elevados, acções mais caras, melhores recursos financeiros, aceleração no investimento e assim por diante – aquilo a que Greenspan chamou um "ciclo virtuoso", e que levou o Council of Economic Advisers a proclamar o período entre 1995 e 2000 uma extraordinária performance económica. Dado que o mercado bolsista proporciona aos investidores informação sem paralelo quanto às firmas e indústrias mais promissoras, assim reza a teoria, estas deveriam expandir-se mais rapidamente e gerir o boom mais eficientemente. Em particular, ao oferecer dividendos astronómicos às ofertas públicas iniciais das mais destacadas empresas de alta-tecnologia, o mercado de valores consentiu que os capitalistas especuladores obtivessem taxas de lucro inconcebíveis noutras circunstâncias, e assim subscreverem a mudança tecnológica mais rápida possível.

VERSÃO OFICIAL DESMENTIDA PELOS NÚMEROS

A realidade da expansão dos anos 90 tem pouco a ver com a versão oficial. A tese de que houve um "extraordinário boom " é desmentida pelos próprios números do Governo. Em termos das referências normais – crescimento da produção, capital acumulado, produtividade do trabalho e salários, bem como o nível do desemprego – a performance no supostamente sensacional quinquénio entre 1955 e 2000 mal equipara os níveis atingidos no período de 25 anos entre 1948 e 1973. O crescimento da produtividade do trabalho, o mais importante indicador do dinamismo da economia, foi inferior em 20 por cento. Tendo em conta todo o ciclo de negócios da década de 1990 a 2000 e não apenas os cinco bons anos do final do período, a taxa média anual de crescimento do produto bruto per capita foram uns escassos 1,6 por cento, em comparação com 2,2 por cento para o período de cem anos de 1889-1989. Mesmo em 2000, os salários horários reais para os trabalhadores não-diferenciados eram ainda substancialmente inferiores, e a taxa de pobreza superior, aos melhores valores de 1973.

Compreender o que moveu a economia nos anos 90 exige uma perspectiva histórica mais extensa. A expansão económica nessa década decorreu contra o cenário de "longo declínio", a era de modesto crescimento da economia mundial subsequente ao longo boom do após-guerra. Entre 1973 e 1995 o crescimento da produção, investimento, produtividade e salários foi de um terço a dois terços inferior ao registado no quarto de século precedente, enquanto que os níveis de desemprego eram várias vezes superiores (excepto nos EUA). A causa principal do prolongado abrandamento foi o excesso de capacidade e de produção no sector internacional de manufactura, conducente, por via da incessante pressão sobre os preços, a lucros reduzidos – e o fracasso das sucessivas tentativas de empresas e governos para reagir com êxito à situação. O problema manifestou-se na parte final dos anos 60 em consequência da intensificação da concorrência internacional, ela própria resultante da crescente penetração no mercado mundial de produtores a baixo custo sedeados no Japão e na Europa Ocidental. Nos anos 70, o excesso de capacidade e de produção agravou-se quando as principais empresas dos países capitalistas avançados concluíram que fazia mais sentido responder aos seus problemas de competitividade e rentabilidade através da intensificação do financiamento das suas próprias linhas de produção (já excessivamente subscritas) do que atribuir capitais a novas linhas, assim motivando a reprodução do problema inicial. Entretanto, firmas baseadas nos países em vias de desenvolvimento, especialmente no leste asiático, constataram que podiam entrar com lucro em certas linhas, a despeito do excesso de capacidade. Só doses cada vez maiores das medidas preconizadas na doutrina de Keynes impediram o desencadear de uma crise profunda, mas à custa de uma inflação galopante.

Nos princípios dos anos 80, sob a liderança de Thatcher e Reagan, os EUA e outros estados capitalistas avançados introduziram elevadas taxas de juro e um regime de forte austeridade para encorajar o abandono de meios de produção custosos e de baixa rentabilidade que mantinham baixas as taxas de lucro, e também para encorajar uma subida de desemprego a fim de reduzir o crescimento salarial. Porém, o resultado imediato foi a eclosão da crise das dívidas do Terceiro Mundo, acompanhada pela ameaça de depressão nos EUA. Os princípios de Keynes tiveram de ser reintroduzidos para que a economia internacional continuasse a girar. Claramente os Estados capitalistas avançados estavam relutantes em suportar uma depressão severa do tipo das que, no passado, serviram para eliminar meios supérfluos de produção e de trabalho e forneceram os alicerces para mudanças radicais [mas também a base de comoções sociais - SG]. Todavia, o preço da estabilidade económica foi um aumento para níveis recorde das taxas de juro, o que, combinado com taxas de lucro ainda reduzidas, refreou a acumulação de capital e o crescimento económico, o qual permaneceu até ao fim da década fortemente dependente dos deficits governamentais.

A despeito das aparências de sentido contrário, a longa tendência de declínio não foi superada nos anos 90. Entre 1990 e 1995, as economias dos países capitalistas avançados experimentaram o seu pior quinquénio do após-guerra. Tomando o conjunto da década, a sua performance global foi, a despeito do boom americano, pouco melhor do que a dos anos 80, os quais, por sua vez, haviam sido inferiores à década de 70, esta, também, muito pior do que as de 60 e 50.

Foi contra este cenário de uma economia global em crescimento lento que os EUA lançaram a sua recuperação económica. Entre 1985 e 1995 o sector de manufactura dos EUA procurou uma impressionante recuperação da competitividade internacional para conseguir um aumento de rentabilidade que, no conjunto da economia privada, elevou a taxa de lucro acima do nível de 1973 pela primeira vez desde finais de 60. Em 1994, esta subida de lucros preparara o palco para a explosão de investimento que seria a principal fonte do dinamismo da economia nos finais dos anos 90; a expansão económica americana arrancara a sério.

O ACORDO PLAZA DE 1985

Os meios através dos quais o sector manufactureiro dos EUA alcançou a recuperação da rentabilidade foram tipicamente destrutivos. O Plaza Accord, imposto em 1985 pelos Estados Unidos aos seus principais associados e rivais, conduziu a uma queda de 40 a 60 por cento do dólar face ao yen e ao marco alemão nos dez anos seguintes, baixando dramaticamente o custo das mercadorias americanas em comparação com os seus principais competidores. No decurso de toda a década o patronato manteve o crescimento real dos salários próximo do zero. A administração Reagan reduziu os impostos empresariais. Até 1993, enquanto o investimento continuou a estagnar, as companhias, para aumentar a produtividade, desfizeram-se em larga escala de meios de produção e de trabalho caros e de baixa rentabilidade.

Mas o facto de a recuperação da rentabilidade dos EUA ter sido consequência principalmente do redimensionamento negativo das empresas e do processo de defraudar trabalhadores, público em geral e rivais estrangeiros revelou-se altamente problemático para as duas outras maiores economias, a japonesa e a alemã. Na maior parte do período em apreciação foi baixo, nos EUA, o crescimento da procura, tendo estagnado tanto a procura de instalações e equipamentos como a de bens de consumo. Também a procura do Governo baixou a partir de 1993, já que a Administração Clinton voltou-se para o equilíbrio orçamental, prescindindo da histórica postura americana de segurar os défices para estimular a economia global. Entretanto, as reduções nos custos relativos através da contenção salarial, aumento de produtividade e desvalorização do dólar permitiram aos EUA apropriarem-se de alguma participação dos seus competidores japoneses e alemães no mercado mundial.

Como resultado, nos primeiros anos de 90 a rentabilidade da manufactura germânica e japonesa baixou acentuadamente, enquanto os EUA constituíam as bases da sua expansão. Esta situação, com analogia nos princípios da hidráulica – a recuperação de uma economia manufactureira teria como contrapartida a crise doutra ao mudar a taxa de câmbio – reflectiu o abrandamento no crescimento do sistema e repetiu-se uma e outra vez. A partir de 1991 as economias japonesa e alemã viveram as piores recessões do após-guerra. Por alturas de 1995 ainda não se sentia recuperação palpável no conjunto das economias capitalistas avançadas. O longo declínio estava bem vivo e com saúde. Na primavera de 1995 o yen subiu face ao dólar para 79; no não distante ano de 1985 mantivera-se a 240. A economia manufactureira japonesa, obrigada a absorver este enorme aumento no custo dos seus produtos no mercado mundial, parecia à beira da paralisia. Tendo acabado de enfrentar os desequilíbrios provocados pela grave crise financeira no México que se reflectira em toda a América Latina, o Governo dos EUA não podiam permitir o falhanço da economia japonesa. Uma crise no Japão, no plano económico só ultrapassado pelos EUA, constituiria uma ameaça à estabilidade internacional. O país era também o principal credor da América, e uma crise japonesa acarretaria provavelmente a venda ao desbarato dos títulos dos EUA, forçando a subida das taxas de juro e travando a recuperação americana nas vésperas das eleições de 1996. Com o chamado "Plaza Accord invertido" do Verão de 1995, o Governo dos EUA acordou com japoneses e alemães a subida do dólar.

DO BOOM AO CRASH

Este acordo constituiu um ponto de viragem na evolução da economia mundial. Inverteu as tendências económicas da década precedente e, de forma decisiva, preparou o caminho para os principais desenvolvimentos do quinquénio seguinte: declínio da rentabilidade americana, subida histórica no preço dos títulos, boom da economia provocado pela actividade bolsista – e o crash e recessão que se seguiram.

A primeira e mais importante consequência da revalorização do dólar foi pôr um termo abrupto a uma década de recuperação da rentabilidade da economia dos EUA. Entre 1997 e 2000 a taxa de lucro do sector manufactureiro caiu mais de 15 por cento, privando a economia americana do que fora a sua principal fonte de dinamismo. Este súbito aumento de pressão sobre a taxa de lucro constituiu uma ameaça não só para os EUA mas para toda a economia mundial. Para contrariar o longo declínio, e as reduções de rentabilidade que estavam na sua origem, governos e empresas de todo o globo tinham adoptado as mais rigorosas medidas de redução de custos. Mas a inevitável consequência da sua ofensiva fora a contracção do crescimento da procura total no sistema, o que ameaçava agora de colocar em curto-circuito o projecto de recuperação económica internacional. Os aumentos de salários e das despesas com o sector social haviam sido cortados cada vez mais acentuadamente nos anos 70 e 80. Na corrida à união monetária, os governos europeus tinham imposto severas medidas de austeridade, e a administração Clinton acompanhara a tendência.

Num contexto de mercados internos cada vez mais afectados, o resto do mundo foi obrigado a voltar-se para o mercado americano como meio de manter as suas economias através das exportações. Porém, com a estagnação do crescimento salarial nos EUA e com a procura governamental em contracção rápida desde 1993, quando da queda do défice Federal, a dependência do mercado dos EUA traduziu-se numa crescente dependência do crescimento do investimento americano – o qual, conforme se esperava, resultaria em mais importações de equipamentos e de bens de consumo, estes últimos suscitados pela subida de emprego e de salários. Todavia, com a nova tendência de declínio da taxa de rentabilidade industrial derivada da subida do dólar, a capacidade dos EUA de servirem como "mercado de último recurso" ficou ameaçada.

Mesmo assim, a partir de 1996 a expansão económica americana ganhou um novo dinamismo, arrastando consigo o resto do mundo. O que cada vez mais a moveu foi um mercado bolsista que ascendeu a alturas nunca vistas, a despeito do enfraquecimento da rentabilidade industrial desde 1997. Entre princípios dos anos 80 e 1995 a subida do preço dos títulos não fora superior à subida dos lucros. A partir daí, um fosso crescente cavar-se-ia entre os dois. Enquanto que o index Wilshire 5000 aumentou 65 por cento entre 1997 e 2000, os lucros empresariais (após impostos e juros) caíram 23 por cento.

A base da vertiginosa subida bolsista foi a importante abertura do crédito a longo prazo. Inicialmente, isto foi consequência da acção coordenada em 1955 pelas potências do G3 para fazer subir o dólar, a qual suscitou uma crescente pressão negativa na taxa de rentabilidade da indústria manufactureira dos EUA. Para fazerem descer as suas próprias moedas em relação ao dólar, os japoneses – e outros governos do leste asiático – adquiriram títulos americanos, especialmente títulos do Tesouro, em enormes quantidades. A consequente inundação fiduciária nos mercados americanos acarretou uma acentuada descida nas taxas de juro a longo prazo. Entretanto, procurando assegurar a estabilidade na esteira da crise financeira mexicana, a Reserva Federal baixou as taxas de juro de curto prazo. Os investidores aproveitaram para investir no mercado bolsista, fazendo subir os valores. E com o dólar a subir, os preços dos títulos automaticamente subiram de valor em termos internacionais, o que atraiu mais investimento que, por seu turno, projectou o mercado para níveis ainda mais elevados.

A "EXUBERÂNCIA IRRACIONAL"

O que causa perplexidade é que o processo não se tenha detido aí, quando a disparidade entre o valor das acções e as taxas de lucro começou a acentuar-se. Em fins de 1996, Greenspan manifestava publicamente a sua preocupação com a "exuberância irracional" dos preços das acções. Todavia, em privado, ele estava claramente ainda mais preocupado com o possível tropeçar da economia americana, atendendo especialmente a que o crescimento económico começara de forma hesitante face às reduções da taxa de juro e à turbulência que na Primavera de 1997 abalava os mercados do leste asiático. Neste contexto, como era sua convicção, o "efeito de abastança" de um mercado de valores em subida poderia desempenhar uma função de estímulo e de estabilização, promovendo o crescimento do investimento e da procura de bens de consumo o que compensaria os efeitos negativos do défice governamental e da subida do dólar sobre as taxas de lucro. Caso o preço dos seus títulos subisse, as empresas acederiam a fundos para investimento, doutra forma não exequíveis, quer emitindo acções sobrevalorizadas quer recorrendo ao crédito bancário. Pelo mesmo critério, os privados, com a abastança de valores bolsistas em subida, teriam menos necessidade de realizar poupanças.

KEYNESIANISMO APLICADO À BOLSA

Ao empreender o primeiro ensaio americano daquilo que pode designar-se por keynesianismo aplicado à Bolsa, Greenspan, em lugar de procurar controlar a bolha , encorajou-a activamente. Não só saudou o enorme aumento de liquidez resultante do influxo de moeda estrangeira e da sua própria redução das taxas de juro, como se recusou a aumentar o custo do crédito desde princípios de 1995 até meados de 1999 (com excepção da subida isolada de um quarto de ponto em começos de 1997) ou a subir a margem requerida nas aquisições de acções para desencorajar a especulação. Interveio energicamente facilitando o crédito sempre que o mercado de títulos ameaçava desfalecer – em particular no Outono de 1998, no nadir da crise financeira mundial. Como resultado, de 1995 até 1999, as disponibilidades monetárias aumentaram seis vezes mais do que entre 1990 e 1994, abrindo o caminho a uma gigantesca vaga de especulação.

As empresas americanas, em particular, precipitaram-se no aproveitamento do dinheiro fácil que Greenspan colocava ao seu alcance. Entre 1995 e 2000 aumentaram o seu endividamento para níveis recorde quando tomado em percentagem do produto bruto empresarial; não só para financiar novas instalações e equipamento, mas também para cobrir os encargos com a recuperação dos seus próprios valores bolsistas. Desta maneira contornavam o aborrecido processo de criar valor bolsista pela produção lucrativa de produtos e serviços, e directamente impulsionavam os preços das acções para benefício dos seus accionistas e dos executivos empresariais que eram significativamente remunerados com opções do mercado. Entre 1995 e 2000 as empresas americanas foram os maiores compradores, em termos líquidos, no mercado bolsista.

COMPORTAMENTO DE MANADA

Ainda assim, a disponibilidade de dinheiro fácil apenas dá uma explicação incompleta da grande corrida aos títulos. Afinal, o baixo custo do crédito não chega para levar as pessoas a endividarem-se com o intuito de especularem; e todavia a especulação – praticada por mutualidades, seguradoras, fundos de pensões e outras instituições do género – foi indispensável para a expansão da bolha. Para explicar o porquê de o dinheiro continuar a afluir aos títulos empresariais mesmo quando os lucros estagnaram, há que levar em conta a forma peculiar do funcionamento financeiro, e a tendência dos operadores para um comportamento análogo ao das manadas. A partir dos começos de 1996, com a forte subida dos valores bolsistas, os gestores de fundos ficaram sujeitos a forte pressão no sentido da compra, mesmo quando duvidavam da viabilidade a longo prazo dessas aquisições. Se assim não procedessem, arriscavam-se a serem ultrapassados pela concorrência e a perderem os seus empregos. Por outro lado, se, a longo prazo, os valores comprados desvalorizassem, não poderiam ser responsabilizados, já que tantos outros haviam tido o mesmo comportamento.

Em consequência da histórica subida sem precedentes do preço das acções, as empresas lograram não terem de enfrentar a desagradável realidade do declínio dos rendimentos e assim manterem a longa expansão dos anos 90 até mesmo ao final da década. A magnitude do efeito da abastança, celebrado – e promovido – por Greenspan e outros, não teve precedentes. Historicamente, as empresas norte-americanas têm sido em larga medida auto-financiadas, cobrindo substancial parte dos seus investimentos com a retenção de lucros. Contudo, nos fins dos anos 90, estavam a endividar-se a níveis recorde (comparados com a produção) para subsidiar o investimento, enquanto igualmente se financiavam através da emissão de títulos numa escala nunca antes registada.

Os investidores privados abastados também viram os seus papeis subirem astronomicamente. Segundo um estudo recente da Reserva Federal, os 20 por cento dos investidores privados mais abastados respondiam pela espectacular redução da taxa de poupança do nível de 8 por cento em 1993 para zero em 2000. Ao comportarem-se deste modo, também contribuíram para o aumento da taxa de consumo verificada nesse período, ajudando as empresas a materializar vertiginosas subidas nos investimentos em instalações, equipamento e software. Nas palavras de um especialista, esta foi a primeira expansão na história subscrita pelo "consumo yuppie".

Graças ao efeito de abundância suscitado pela subida dos valores bolsistas, especialmente na tecnologia da informação, a expansão alcançou efectivamente uma vitalidade crescente. Os investimentos aumentaram no resto da década à taxa de 9 por cento ao ano, encabeçando o boom . Isto resultou num rápido crescimento da produção, num desenvolvimento apreciável da produtividade, na baixa do desemprego e até mesmo, em significativos aumentos salariais. Não menos importante, o grande aumento da procura nos EUA resultante da aceleração da expansão, aliado ao dólar ainda em valorização, arrancaram a economia mundial da estagnação dos princípios de 90, seguidamente resgataram-na da crise financeira internacional de 1997-98 e por fim suscitaram uma nova reviravolta de sinal positivo para a economia internacional em 1999 e 2000.

A realidade, contudo, é que uma subida bolsista provocada pela especulação, longe de criar as mais promissoras perspectivas de expansão – como rezam as fábulas da Federal Reserve, do Council of Economic Advisers ou ainda da teoria económica ortodoxa – estava sistematicamente a levar o investimento por caminhos errados, pois não tinha por base taxas de rendimento crescentes. A rápida subida dos gastos com instalações e novos equipamentos das indústrias da nova economia verificou-se num quadro de declínio da rentabilidade da manufactura; e esse declínio em breve alastrou às áreas da tecnologia da informação e às telecoms. Aumentou o crescimento da produtividade, mas sem conduzir a uma subida da taxa de rentabilidade porque era consequência do mesmo sobre-investimento que simultaneamente estava criando excesso de capacidade e de produção. A consequente pressão negativa sobre os preços beneficiou os consumidores no curto prazo; mas ao forçar a descida de lucros limitou o investimento, o crescimento e o emprego a longo prazo. Entre 1997 e 2000, enquanto a expansão atingia o máximo, a taxa de lucro do conjunto do sector empresarial caiu um quinto.

O "ciclo virtuoso" proclamado por Greenspan não passou de um exagero. O que moveu a economia na segunda metade da década foi um ciclo vicioso que da subida dos preços dos títulos passou para a subida do investimento, e face ao declínio da rentabilidade, desembocou no excesso de capacidade crescente que reduziu ainda mais a rentabilidade. Foi este desafio, cada vez mais acentuado, das leis do equilíbrio, quer pela economia em expansão, quer pela efervescente actividade bolsista, que abriu o caminho aos escândalos contabilísticos, ao crash da Bolsa e à nova recessão.

O processo económico assumiu expressão mais dramática no sector das tecnologias da informação e, particularmente, nas telecomunicações. O frenesi na área high-tech foi desencadeado na administração Clinton pelo "Telecomunications Act" de 1996, que desregulamentou o mercado das telecoms. Uma falange de novos operadores entrou no mercado, esperando capitalizar com a crescente procura sem precedentes, gerada pela interminável expansão da Internet. Apostando no que assumiam seria a sua vantagem tecnológica, contavam conquistar mercado aos gigantes do sector, tais como a AT&T, Sprint e Verizon. A sua estratégia focava-se no mercado de valores e na finança. Expandindo-se a grande velocidade através de fusões e de aquisições, lograram obter a aprovação dos mercados de títulos – deslumbrando-os mais com o tamanho e o crescimento das organizações do que com os lucros. Nesta base, pretendiam fazer subir os preços das acções e assim conseguirem o financiamento requerido para novo crescimento.

Em breve as novas companhias de telecomunicações instalavam dezenas de milhões de quilómetros de fibra óptica nos EUA e sob os oceanos, com a indispensável ajuda das principais instituições financeiras americanas – e principalmente dos maiores consórcios bancários. Estes supermercados financeiros emergiram de um processo de desregulamentação cada vez mais acentuado, patrocinado pela administração Clinton e por uma direcção do Partido Democrático decidida a explorar as sempre maiores oportunidades de realização de fundos que resultariam da sua adopção do programa neoliberal e, em particular, da agenda dos grandes bancos. Sob a cuidadosa supervisão de Robert Rubin, que tendo desempenhado funções executivas na Goldman Sachs fora convertido em secretário do Tesouro, em 1993, as frágeis barreiras entre bancos de investimento, banca comercial e companhias de seguros – barreiras originalmente erguidas pelo New Deal, em resposta aos excessos (estilo anos 90) dos anos 20 – foram obliteradas.

O climax registou-se em Abril de 1998 quando a Travelers Insurance, proprietária do banco de investimento Salomon Smith Barney, se fundiu com o banco comercial Citicorp para formar o Citigroup, desafiando directamente o "Glass-Steagall Act", peça fulcral reguladora das finanças e que fazia parte do pacote legislativo New Deal. Claramente aqueles gigantes confiavam na aprovação governamental da fusão – e com bons motivos para tal: a Citicorp doara quatro milhões de dólares em contribuições de campanha nos ciclos eleitorais de 1996 e 1998. As industrias das finanças, seguros e imobiliário despenderam mais de 200 milhões de dólares para influenciar os políticos (lobbying) durante 1998 e doaram mais US$ 150 milhões no curso da campanha eleitoral do mesmo ano. Fundamentalmente, o recém criado mega-banco sabia que podia contar com Rubin, e o secretário do Tesouro não desiludiu. Certificou-se de que o Congresso permitiria a fusão e foi prontamente recompensado quando, cinco meses depois de deixar o seu posto na administração Clinton, o nomearam presidente da comissão executiva do Citigroup, agora a maior instituição financeira do país.

Os monólitos bancários que resultaram do processo de desregulamentação financeira estavam supremamente bem colocados para recolher os proventos das subscrições das emissões de acções, fazer circular as obrigações e organizar as fusões e aquisições da recém desregulada indústria das telecoms. Sendo assim, nada mais natural do que encorajarem – e viabilizarem – a obcecação dessas mesmas empresas com a expansão. No seu papel como bancos comerciais, também lhes agradava emprestar aos seus clientes tanto quanto eles quisessem (às vezes abaixo das taxas do mercado), desde que pudessem assegurar, no seu papel de bancos de investimento, o negócio de financiar essas companhias e de receber as correspondentes comissões. Igualmente se prontificavam a invocar as mais recentes inovações em "finança estruturada" para ajudar os seus clientes a melhorarem a aparência dos balanços empresariais, assim alimentando a subida dos preços dos títulos, facilitando a capacidade de realizar fundos, e desenvolvendo a procura dos serviços financeiros. No quinquénio depois de 1995, os principais dez bancos organizaram, para as companhias de telecomunicações, 1670 fusões e aquisições avaliadas em 1,3 triliões de dólares, delas recebendo US$ 13 mil milhões de remunerações.

Para estes mesmos bancos, também, nada agradava mais do que aconselhar os ostensivamente independentes "analistas do mercado" (muitas vezes a seu soldo) sobre a forma de valorizarem as acções das empresas dos seus clientes. Isto no caso improvável desses analistas se deixarem impressionar pela realidade dos insuficientes proventos dessas empresas. Do mesmo modo não excluíam o suborno directo dos seus clientes empresariais, entregando aos principais executivos acções no valor de milhões de dólares, muitas vezes de ofertas públicas iniciais, a fim de garantirem o seu negócio financeiro – isto não é ilegal a menos que seja possível provar que a entrega dos valores era uma condição explícita para a contratação do serviço. Entretanto, as firmas mais antigas e reputadas de contabilistas, cada vez mais a funcionarem como consultoras de investimento das mesmas companhias cuja escrita era suposto terem sob a sua auditoria, mantinham o jogo, fechando os olhos às manigâncias financeiras dos seus clientes.

Salomon Smith Barney, o ramo de investimento bancário do Citigroup, desempenhou o papel de vanguarda neste processo, orientado pelo seu analista de comunicações, Jack Grubman, que levou os seus clientes a darem milhares de milhões de dólares por fibras ópticas, providenciou de maneira a que Solomon lhes conseguisse o dinheiro, em seguida recomendou as suas acções ao público investidor nos títulos. "O que costumava ser um conflito de interesses é agora uma sinergia", proclamou para tranquilizar os leitores, num artigo na Business Week , em 2000. Após a aprovação do Telecommunications Act, Salomon ajudou 81 empresas do ramo a realizarem US$ 190 mil milhões em títulos e empréstimos. Como compensação pelas suas diligências, recebeu centenas de milhões em prémios de subscrição e mais algumas dezenas de milhões por consultoria em fusões e aquisições. Particularmente privilegiadas foram as estrelas da lista A da Solomon – WorldCom, Global Crossing e Qwest. Para estas três companhias Salomon realizou US$ 24,7 mil milhões, US$ 5,4 mil milhões e US$ 5,6 mil milhões, respectivamente, e delas recebeu como pagamento dos serviços, US$ 140,7 milhões, US$ 83,8 milhões e US$ 34,4 milhões. Embora fosse ilegal, do ponto de vista técnico, preparar o caminho para estes negócios, Salomon premiou o executivo envolvido na mais quente das ofertas públicas iniciais, tendo cedido a Bernie Ebbers, presidente da WorldCom, títulos que foram convertidos em mais de US$ 11 milhões de dólares.

Este comportamento foi reproduzido por todos os principais bancos de investimento e pelos seus analistas de comunicações. Os gestores de fundos que se mantivessem afastados dos títulos das telecoms arriscavam-se a perder terreno face aos seus competidores. Isso levou os investidores institucionais a precipitarem-se na compra de acções, projectando o valor destas para áreas nunca registadas. Entretanto, manifestando o comportamento de rebanho que lhes é notório, os bancos comerciais bombardearam a indústria das telecomunicações com mais fundos do que seria sensato investirem, forçando a expansão e garantindo o excesso de capacidade. Uma vez mais a dinâmica descrita por Keynes alimentou o processo inerentemente especulativo: para acentuar ao máximo os lucros só restava aos financeiros basearem as suas decisões de investimento nas perspectivas de rendimento bolsista a curto prazo, e não na sua própria avaliação do valor intrínseco a longo prazo desses recursos.

Na primavera de 2000, no auge da subida do mercado, a capitalização bolsista das telecoms (o valor das suas acções) atingira uns assustadores 2,7 triliões de dólares, ou seja perto de quinze por cento do total de todas as empresas americanas não financeiras – isto apesar de produzirem menos de três por cento do produto bruto nacional. Com tão enormes garantias aparentes, as firmas de telecoms podiam endividar-se sem limites. Entre 1996 e 2000 receberam 800 mil milhões de dólares em créditos bancários e emitiram mais 450 mil milhões em títulos. Nesta base conseguiram aumentar o investimento em termos reais (isto é, calculados em dólares de 1996), durante o mesmo período, à razão anual de mais de 15 por cento, e criar 331 mil empregos.

O problema, claro, é que graças à desregulamentação dos mercados financeiros e de produtos, todos estavam a agir do mesmo modo. Em 2000, não menos de seis companhias americanas, em concorrência mútua, estavam a construir redes nacionais de fibra óptica. Mais algumas centenas de empresas instalavam redes locais e algumas competiam também nas ligações submarinas. No conjunto, 39 milhões de milhas (62,75 milhões de quilómetros) de linhas de fibra óptica cobriam então os Estados Unidos, o bastante para dar 1566 voltas ao globo. O inevitável resultado foi uma gigantesca inundação de meios: a taxa de utilização das redes das telecoms oscila actualmente nuns desastrosamente baixos 2,5 a 3 por cento, a do cabo submarino em escassos 13 por cento. Dificilmente se encontraria prova mais evidente de que o mercado – especialmente o mercado financeiro – não é bom juiz das condições prevalecentes. A consequência foi um acumular de capital imobilizado que não poderia deixar de pesar, num futuro previsível, sobre a taxa de rendimento, tal como aconteceu com a acumulação de títulos ferroviários durante o boom do século XIX.

Mesmo com a subida dos preços dos seus títulos e a escalada das compras de novas instalações, equipamento e software, as companhias de telecomunicações continuavam a não conseguir realizar lucros. Tendo alcançado um máximo de 35,2 mil milhões de dólares em 1996, o ano da desregulamentação, os lucros empresariais (depois do pagamento dos juros dos débitos das companhias) na indústria das comunicações afundou-se para 6,1 mil milhões em 1999, e seguidamente para menos 5,5 mil milhões em 2000, quando disparou o pagamento dos juros dos seus gigantescos débitos.

CONTABILIDADE FRAUDULENTA

Contra este pano de fundo, constituído por rendimentos em declínio e crescentes investimento e dívidas, tornou-se cada vez mais intensa a pressão para manter o fluxo de financiamento, e surgiu como irresistível a tentação de inflacionar os lucros através de uma contabilidade fraudulenta. Aqui a "coudelaria" de telecoms da Salomon surgiu na primeira linha. A Global Crossing e a Qwest começaram a "trocar" negócios de forma rotineira, com uma companhia contratando o arrendamento das suas próprias linhas à outra, enquanto alugava linhas equivalentes para a sua própria utilização, registando o produto da primeira operação como rendimentos e classificando a segunda como depreciação de instalações e equipamento, a distribuir por uma série de anos. Com este expediente, ambas as empresas inflacionaram os rendimentos de 2001 em pelo menos um mil milhão de dólares, quantia provavelmente muito superior aos lucros por cada uma registados. Ambas as companhias enfrentam agora investigações de provável acção criminosa, embora só em Agosto de 2002 a Securities and Exchange Comission tenha explicitamente declarado ilegal esse comportamento, o que levanta dúvidas sobre a eficácia da fiscalização governamental.

O CASO WORLDCOM

Mas os crimes da Global Crossing e da Qwest não passam de pecadilhos quando comparados com as iniciativas da WorldCom, que bem pode dizer-se ter reescrito o livro da vigarice empresarial. Segundo os dados mais recentes, a WorldCom declarou entre 1999 e 2001 nove mil milhões de dólares a mais sobre os seus lucros. Em grande parte conseguiu isto com a simples astúcia de tratar os gastos do dia-a-dia, por exemplo os ordenados, como se fossem pagamentos de máquinas e utensílios ( capital goods ). Assim podiam registá-los como depreciação de equipamentos e adiar o seu aparecimento como custos nos balanços da companhia.

Interrogado, numa auditoria interna feita antes de a fraude se tornar pública (desvendada no Wall Street Journal de 16 de Julho de 2002), sobre a justificação do tratamento contabilístico das despesas, o controlador da WorldCom , David Myers, reconheceu que "contara que não teria de explicar" a manobra. Por outro lado, argumentou que, caso os custos da WorldCom não tivessem sido reduzidos e os lucros aumentados, "mais valia a companhia fechar as suas portas".

Da maior importância para as manobras de dissimulação desta empresa são as próprias normas contabilísticas da Wall Street, que praticamente legitimam todos os expedientes para inflacionar os lucros pro-forma – isto é, os que são transmitidos trimestralmente aos accionistas e à comunidade financeira. Só mais tarde é que as companhias são obrigadas a manifestar os seus rendimentos reais, calculados de acordo com o estrito GAAP (Princípios Contabilísticos de Aceitação Geral), à Securities and Exchange Commission (SEC). Desnecessário é dizer que este sistema de dupla comunicação de resultados convida a abusos – por exemplo, mantendo exagerados os lucros a curto-prazo por um período bastante para segurar os preços enquanto os que têm acesso à informação interna alijam os seus títulos. Para dar uma ideia da escala da falsificação de informação em causa, um estudo recente da SmartStockInvestor.com revelou que, nos três primeiros trimestres de 2001, as cem companhias Nasdac comunicaram aos seus accionistas lucros pro-forma de 19 mil milhões de dólares, e à SEC perdas de 82 mil milhões, calculadas segundo o GAAP. No mesmo período, o conjunto da Microsoft, Intel, Cisco Systems, Oracle e Dell, declararam o triplo dos seus verdadeiros lucros.

A razão pela qual os escândalos atingiram tão duramente a bolsa de valores e a economia está no facto de eles confirmarem as piores suspeitas dos investidores quanto à queda dos rendimentos empresariais. O desvendar da fraude da WorldCom abalou os mercados porque tornou evidente que o que parecia ser uma das mais bem sucedidas empresas do ramo das telecoms não tivera lucros em 2000 nem em 2001 (e possivelmente tão-pouco em 1998 ou 1999). Conforme um analista disse à Fortune, em Julho de 2002, a WorldCom "parecia possuir uma formula secreta para produzir margens decentes que os rivais não conseguiam". Quando esta formula foi entendida, escoou-se o ar que restava na bolha expansionista das telecoms.

Todavia, não deve inferir-se que os gestores que estiveram na origem dos grandes golpes das telecoms foram tão desastrados que se deixaram apanhar na carnificina financeira resultante das suas manobras. Entre 1997 e 2001, elementos das direcções empresariais, os "insiders", receberam cerca de 18 mil milhões de dólares em acções, tendo vendido mais de metade desse total em 2000, o ano em que o preço das acções das telecoms atingiu o pico. Mas este é apenas um apuramento superficial da gigantesca redistribuição de riqueza conseguida nos anos 90 pelos dirigentes empresariais norte-americanos. Entre 1995 e 1999, o valor das opções de valores bolsistas concedidas a executivos americanos mais do que quadruplicou, de 26,5 mil milhões para 110 mil milhões de dólares, ou seja, um quinto dos rendimentos empresariais não-financeiros, livres de encargos. Em 1992, os executivos possuíam dois por cento dos valores bolsistas das empresas dos EUA; actualmente possuem doze por cento, o que figura entre os mais espectaculares actos de expropriação da história do capitalismo.

O raciocínio económico subjacente à grande bolha de expansão das telecoms foi a presunção de que a procura dos serviços da Internet aumentaria exponencialmente, levando a uma procura correspondente de novas redes de comunicação. O presumível desenvolvimento maciço das telecomunicações foi a premissa do desenvolvimento explosivo paralelo da manufactura de equipamentos e, por seu turno, dos fabricantes de componentes. O estouro, quando surgiu, alastrou assim das dot.coms , via telecoms, aos fornecedores de equipamentos e produtores de componentes.

A chamada bolha das dot.coms foi, à sua maneira, tão impressionante como a bolha das telecoms . A despeito do seu infinitesimal contributo para o Produto Bruto, o valor bolsista das firmas da Internet chegou a 8 por cento do total para todas as empresas americanas. A realidade é que a maioria dessas companhias só tinha prejuízos, e as poucas com lucros faziam-no numa relação preço-rendimento extremamente desfavorável. Numa amostra de 242 empresas da Internet estudadas pela OCDE, apenas 37 apresentaram lucros no terceiro trimestre de 1999, com apenas duas delas respondendo por 60 por cento do total. Para as 168 companhias das quais se dispunha de dados pormenorizados, as perdas no terceiro trimestre ascenderam a 12,5 mil milhões – mas isto não impediu que a sua capitalização no mercado bolsista atingisse 621 mil milhões. Na Primavera de 2000, na esteira de constantes prejuízos, muitos destes operadores estavam simplesmente a ficar sem dinheiro. Pouco depois registou-se o crash e o subsequente colapso da indústria.

O rebentamento da bolha expansionista da Internet foi o catalisador do desastre das telecoms , o qual principiou no Verão de 2000 com uma aparentemente interminável série de desastrosos relatórios de prejuízos no sector high-tech . A caótica derrota da nova economia estava em marcha. Os lucros da indústria das comunicações caíram 5,8 mil milhões de dólares em 2001 e 11,9 mil milhões em 2002. Em meados de 2002, as acções das telecoms haviam perdido 95 por cento do seu valor; cerca de 2,5 triliões de dólares de capitalização do mercado esfumaram-se. Actualmente o débito das empresas de telecomunicações orça cerca de 525 mil milhões – conjuntamente mais do que o valor dos depreciados títulos em fins dos anos 80 e do custo da intervenção de resgate da comissão "Savings and Loan" (Caixas Económicas).

Porque as telecoms eram responsáveis por uma tão desproporcionada parcela de capital acumulado, os ecos do seu colapso foram imensos. No ano 2000 a indústria representava 12 por cento dos gastos com equipamento na economia americana. Porém, o investimento das telecoms caíu 40 por cento nos dois anos seguintes. Desde Dezembro de 2000 foram à bancarrota empresas de telecomunicações avaliadas conjuntamente em 230 mil milhões e 60 por cento de todas as falências empresariais vieram desse sector. No mesmo período a indústria lançou no desemprego mais de meio milhão de trabalhadores – 50 por cento acima dos que contratara na espectacular expansão entre 1996 e 2000. Em comparação, a indústria automóvel levou duas décadas a reduzir o emprego de 1,5 milhão para 732 mil trabalhadores.

O declínio das encomendas das telecoms atingiu duramente os seus fornecedores, incluindo empresas da primeira linha do boom tecnológico como a Cisco Systems, a Lucent, Nortel e a Motorola, as quais sofreram catastróficas descidas no preço das suas acções e o agravamento das condições financeiras. Por seu turno, os problemas destas repercutiram-se duramente nos seus próprios fornecedores. Favoritos dos mercados de valores tais como a JDS Uniphase e Sycamore caíram no rol dos esquecidos. A indústria dos semi-condutores – muito atingida pela acentuada descida na venda de computadores e também pela situação das telecoms – entrou no seu pior declínio desde princípios dos anos oitenta. Numa palavra, a reacção em cadeia provocada pelo crash das telecoms foi responsável em cerca de uma quarta parte pelo declínio no crescimento económico entre a primeira metade de 2000 e a primeira metade de 2001; e assim, de maneira desproporcionada, pela queda da economia em recessão no ano de 2001.

Os problemas das telecoms sobrepuseram-se a uma crise mais geral no sector da alta-tecnologia, especialmente nos computadores e semi-condutores. Uma análise publicada a 16 de Agosto de 2001 no Wall Street Journal revela aprofundidade da crise entre as 4200 companhias listadas no índice do Mercado Nasdaq. As perdas dessas firmas nos doze meses após 1 de Julho de 2000 ascenderam a 148,3 mil milhões – por outras palavras, um pouco mais do que os 145,3 mil milhões de lucros que manifestaram no boom de 1995 a 2000. Tal como comentou um economista: "O que isto significa é que, com o benefício de uma leitura a posteriori , os anos finais da década de 90 nunca aconteceram." A própria crise do sector da alta tecnologia desenrolou-se no contexto de uma economia alargada já ferida pelo excesso de capacidade na manufactura internacional. Em começos de 2002, a taxa de lucro do sector empresarial de manufactura descera 42 por cento em relação ao máximo de 1997. A rentabilidade no sector empresarial não-financeiro, tomada em conjunto, atingira o seu mais baixo nível do após-guerra (com as excepções de 1980 e 1982).

Sob o impacto do colapso dos preços dos títulos e da crise de rentabilidade, o crescimento da produção e do investimento desceram mais rapidamente entre meados de 2000 e de 2001 do que em qualquer outro período desde a Segunda Guerra Mundial. Isto é tanto mais compreensível quanto, segundo o Council of Economic Advisers, o sector da tecnologia da informação, que constituía apenas 8 por cento do Produto Bruto Nacional, foi responsável por quase um terço de todo o crescimento do Produto entre 1995 e 1999. Numa base anual, o crescimento do Produto Bruto baixou de 5 por cento para 0,1 por cento negativos. O crescimento do investimento não-residente caíu de 9 para menos 5 por cento. Em resposta, as empresas dos EUA têm reduzido drasticamente os seus meios de produção e, em particular, a sua força de trabalho no esforço de recuperar competitividade, pressionando os seus rivais no mesmo sentido. Desde o primeiro trimestre de 2000, o emprego no sector de manufactura (medido em horas) foi reduzido por uns espantosos 13,8 por cento. Como efeito de conjunto, regista-se uma poderosa espiral descendente, na qual a pressão sobre os preços resultante de excesso de capacidade tem conduzido à descida da rentabilidade, queda do investimento, subida do desemprego e das falências e, finalmente, a reduções na procura de bens, por seu turno geradoras de quedas de preços e de rentabilidade, e assim sucessivamente.

ENTRADA NO CICLO DE DECLÍNIO

Com a entrada dos EUA no seu declínio cíclico, o resto do mundo foi também arrastado. Sob o impacto da diminuição das importações americanas, as economias do Japão, Europa e leste asiático começaram a perder elan, o que causou nova descida acentuada das exportações dos EUA e contribuiu para deprimir ainda mais o crescimento. Este processo recessivo internacional que mutuamente se reforça é mais preocupante devido ao ponto a que as economias do resto do mundo, face a uma procura interna estagnante, se tornaram dependentes das exportações, nas duas últimas décadas, dependendo assim, também, de uma economia americana que, consequentemente, só pode contar consigo própria para sair da crise.

Desde Janeiro de 2001 a Reserva Federal baixou as taxas de juro por doze vezes, atingindo as reduções uns impressionantes 5,25 por cento, para os actuais 1,25 por cento, taxa que constitui um recorde desde o após-guerra. Mas no que respeita às empresas, a medida não tem suscitado a desejada reacção. O investimento em instalações e equipamento, chave da saúde económica, tem baixado em todos os trimestres desde o Outono de 2000, alimentando a recessão.

Em contraste, os privados têm aproveitado o crédito barato e aumentaram o seu endividamento a uma taxa ainda mais elevada do que durante o boom , especialmente através da renovação do financiamento das hipotecas. Em resultado disto, os gastos dos consumidores continuaram a subir e foram quase inteiramente responsáveis pela travagem da espiral descendente da economia em 2001, restaurando a estabilidade, pelo menos temporariamente. Washington tem esperança de que os gastos dos consumidores se mantenham o tempo suficiente para que as empresas limitem o seu excesso de capacidade. Mas a preocupação é que o excedente de instalações e equipamento continue a contrariar novos investimentos de capital e que os gastos dos consumidores venham a declinar face ao crescente desemprego e aos insustentáveis níveis de endividamento.

TRÊS DESEQUILÍBRIOS ENORMES

Embora a política federal de crédito fácil tenha produzido uma aparência de ordem, ela também contribuiu para perpetuar três enormes desequilíbrios resultantes da bolha expansionista, assim ampliando a potencial magnitude do desastre. O primeiro é o próprio valor das acções . Os preços dos títulos tem, obviamente, caído de forma acentuada. Contudo, o seu declínio não logrou alinhar os seus valores com os lucros, dado que estes caíram ainda mais. Em finais de 2001, o índice composto S&P descera cerca de 25 por cento do seu máximo de meados de 2000, mas a relação preço-lucros das suas empresas subira, na realidade, 25 por cento. Sem dúvida o crédito barato tem contribuído para manter as acções excessivamente cotadas, emprestando uma aparência favorável ao mundo dos negócios. Porém uma "correcção" séria poderia agora destruir a economia.

Em segundo lugar, no ano de 2002 os défices comerciais e de conta-corrente dos EUA bateram todos os recordes. Até há pouco, os compradores estrangeiros mostravam-se mais do que desejosos de compensar esses défices com grandes investimentos directos nos EUA e através da compra de títulos e obrigações de empresas. Mas perante o comportamento decepcionante da economia e da Bolsa americana, o resto do mundo reduziu drasticamente as suas compras, tendo a aquisição de títulos baixado 83 por cento em 2002, quando comparado com 2000. Em consequência deste desencanto, aumentou a pressão sobre a moeda e num ano o dólar baixou 16 por cento contra o euro. A continuarem estas tendências, a Reserva Federal poderá em breve ser confrontada com uma escolha penosa: ou deixar o dólar cair e arriscar-se a que os investidores estrangeiros liquidem ao desbarato os bens americanos – o que poderá não só criar o caos nos mercados mas também desencadear uma corrida contra o dólar – ou subir as taxas de juro arriscando-se a empurrar novamente a economia para uma depressão profunda.

Por último, embora o endividamento empresarial tenha caído acentuadamente nos últimos dois anos, o incremento do endividamento interno neste período levou a dívida privada a ultrapassar o seu recorde verificado no auge do boom , mesmo perante o cenário de crescente desemprego. O que tornou isto possível foi o enorme avanço nos preços da habitação, ele próprio instigado não só pelas baixas taxas de juro como pela significativa transferência de fundos de mercados bolsistas pouco atractivos para o imobiliário. A valorização do imobiliário habilitou os proprietários a lidarem com os seus bens como se fossem valores bolsistas: segundo um estudo recente da Goldman Sachs, no terceiro trimestre de 2002 os americanos realizaram o surpreendente rendimento líquido de 320 mil milhões de dólares (numa base anual) a partir dos seus imóveis. Porém, caso a bolha expansionista do imobiliário rebentasse, ou mesmo deixasse de aumentar, os consumidores privados, tendo os seus títulos imobiliários já fortemente desgastados, teriam de reduzir o seu endividamento. Os gastos dos consumidores teriam então de ser fortemente reduzidos, ameaçando o principal esteio da recuperação.

Em Dezembro de 2002 a Reserva Federal reduziu o custo do endividamento por mais meio ponto, o que equivale a uma admissão de que as enormes facilidades de crédito dos dois anos anteriores foram insuficientes para relançar a economia. Esta circunstância foi ainda tornada mais evidente ao exprimir publicamente o receio de que, em consequência da capacidade industrial excedentária e da subida do desemprego, os aumentos de preços eram demasiado baixos e talvez em declínio, gerando uma pressão negativa sobre os rendimentos. A queda de lucros no segundo e terceiro trimestres de 2002 parece confirmar as preocupações da Reserva Federal. As garantias subsequentemente dadas por Greenspan e pelo Governador da Reserva, Ben Bernanke, de que a deflação não passava de uma possibilidade remota – e em qualquer caso poderia ser facilmente controlada pelo aumento da circulação fiduciária – tiveram, naturalmente, um efeito contrário ao pretendido.

Após mais de uma década durante a qual o equilíbrio orçamental assumira um estatuto de quase fé religiosa, muitos converteram-se à necessidade de uma maior dose de despesa deficitária. A administração Bush pareceu concorrer nesse sentido com um programa destinado a intensificar os estímulos já crescentes. Porém, cedo se tornou evidente que, tal como a resposta de Bush ao 11 de Setembro foi a guerra contra o Iraque que Cheney, Rumsfeld e companhia planeavam há mais de uma década, a resposta de Bush perante uma economia ameaçada foi a redução de impostos para os ricos, primeiro item da sua agenda e da do Partido Republicano desde o dia em que saiu do seu rancho, apoiada por aumentos nos gastos com armamento para apoiar as controversas campanhas do Médio-Oriente. E tal como a guerra no Iraque e correlativas despesas militares pouco prometem no sentido de aumentar a segurança dos cidadãos americanos, os elementos constitutivos do défice Bush pouco favorecem o estímulo da economia. Resta o facto de que, graças ao 11 de Setembro e à debilidade da economia, a administração Bush conseguiu lançar uma repetição do programa de Ronald Reagan de uma maneira que há escassos dois anos e meio seria inconcebível.

Os elementos chave do plano tributário de Bush envolvem antecipar para 2003 as reduções das taxas de impostos sobre os maiores contribuintes que previamente haviam sido previstas para 2004 e 2006, assim como a abolição dos impostos sobre dividendos. Uma vez que estas reduções de impostos se confinam aos mais abastados e dado que, segundo Edward Wolff, economista da Universidade de Nova York, no espectro do rendimento os dez por cento mais altos possuem aproximadamente 85 por cento do valor dos títulos e fundos mútuos sujeitos a taxas (destes, um por cento é detentor de cerca de 49 por cento), é fácil adivinhar quem são os beneficiados. Segundo a Citizens for Tax Justice , sedeada em Washington, os contribuintes do grupo dos dez por cento receberão cerca de 60 por cento dos ganhos, enquanto que os do grupo de um por cento terão ganhos médios de 30 mil dólares cada. Como produzirão estas medidas o esperado estímulo? Segundo a administração, a eliminação do imposto sobre dividendos fará subir o valor dos títulos, levando os beneficiários do plano a reinvestir o dinheiro que poupam na Bolsa de Valores, conducente a uma subida do preço das acções até dez por cento, segundo as previsões mais optimistas. Inacreditavelmente ou quase, o caminho planeado para reanimar a economia consiste em voltar a encher a bolha.

A outra trave mestra implícita no programa governamental de estimulação da economia tem-se desenvolvido desde que Bush tomou posse, especialmente a partir do 11 de Setembro. Com efeito, em 2001 e 2002 as despesas militares cresceram, respectivamente, 6 e 10 por cento, ascendendo a 65 e 80 por cento, respectivamente, dos aumentos totais da despesa Federal nesses anos. Dado que o orçamento militar dos EUA era já maior do que o orçamento conjunto dos 25 países que se sucedem na ordem destas despesas, e atendendo também a que representa 26 vezes o gasto correspondente do conjunto de sete países tradicionalmente identificados pelo Pentágono como os seus mais prováveis adversários (Cuba, Irão, Líbia, Coreia do Norte, Sudão e Síria), não se torna fácil encarar estes aumentos como indispensáveis para a segurança nacional. A actual força militar do Iraque, alvo imediato dos Estados Unidos, é segundo todos os cálculos talvez um terço do que era em 1991. Não obstante, as despesas militares estão sem dúvida a proporcionar o mais directo estímulo da administração à economia, como atesta o facto de que no período de um ano subsequente ao 11 de Setembro os títulos dos nove maiores fornecedores de material de defesa terem registado um desempenho superior em 30 por cento relativamente aos S&P500.

Desde princípios de 2000, o défice orçamental Federal, tomado como percentagem do Produto Bruto, aumentou acentuadamente para 1,8 por cento, em relação a um excedente de 2,3 por cento, e certamente irá mais longe. Porém, num cenário de empresas atascadas em instalações e equipamento, de privados endividados até às orelhas e perto da insolvência, o recurso ao défice é provavelmente insuficiente para proporcionar mais do que um moderado impulso ao crescimento. E contudo é improvável que a administração Bush esteja muito preocupada com esta situação. A abolição do imposto sobre dividendos e a redução de taxas para os maiores contribuintes não teria efeito antes de 2004. Para cúmulo, estas medidas reduziriam fortemente as receitas dos governos estaduais, cujo orçamento já é limitado, contrariando o estímulo Federal ao obrigar muitos deles a limitarem as despesas. Porta-vozes da administração bem como dirigentes repúblicanos do Congresso já fizeram saber que, à semelhança de Reagan, tencionam controlar o défice que estão a criar refreando os gastos não militares. Sublinhando esta postura, já inviabilizaram uma proposta no sentido de alargar o seguro de desemprego nos casos dos trabalhadores cujos benefícios já se esgotaram, e insistem em que um maior número de pessoas sejam retiradas dos serviços de assistência, isto apesar da decrescente disponibilidade de empregos. Medidas que aumentariam imediatamente, de forma significativa, o poder de compra dos trabalhadores – tais como reduções nas taxas sobre as folhas de vencimentos, subsídios que permitissem aos estados manterem o nível de despesas com a saúde e serviços sociais, ou bónus directos aos trabalhadores – são anátema para esta Administração. Tal como os planos do Governo Bush para a segurança nacional incidem na projecção do poderio militar americano no Médio Oriente e mesmo para além dele, o seu programa de estímulo da economia incide na transferência da riqueza dos pobres para os já abastados. Bush e os seus conselheiros contam, evidentemente, que a economia se endireitará por si própria. Persiste o facto de que os analistas da Wall Street revelavam em fins de Janeiro que provavelmente a economia se retraíra no último trimestre de 2002: ou a recessão estava a agravar-se ou começara a temida queda dupla. Pela primeira vez as sondagens à opinião pública registam menos de 50 por cento de aprovações à maneira como a administração gere as questões da economia e que o apoio à guerra no Iraque baixou. Para a economia dos EUA e para a administração Bush, o caminho aberto afigura-se acidentado.

[*] Director do Centro de Teoria Social e História Comparada da UCLA, autor de The Boom  and the Bubble, publicado em Junho de 2002. Sítio do autor em http://www.history.ucla.edu/brenner/

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