... ou barbárie

por José Arbex Jr. [*]

'O exército da morte', de Hieronymus Bosch (século XVI).  No século XXI Bush quer tornar reais tais cenas. Que ninguém se iluda: um ano após o 11 de setembro, o planeta caminha a passos largos para uma catástrofe de grandes proporções. A maior economia do mundo dá claros sinais de debilidade, ao passo que os seus chefes políticos adotam uma postura arrogante em relação aos seus "parceiros ricos" e terrorista para com os "países periféricos". É um quadro que estimula os discursos extremistas, particularmente aqueles capazes de mobilizar a indústria bélica (saída sempre tentadora para as grandes corporações moralmente falidas e economicamente deficitárias). Pode-se discutir os ritmos, os prazos e os caminhos da catástrofe (talvez venha sob a forma de uma quebradeira generalizada da economia, no estilo de 1929, ou talvez sob a forma mais lenta e agônica de multiplicação de pequenas guerras regionais combinadas com graves conflitos sociais nos "países centrais", incluindo os Estados Unidos, e a multiplicação de "argentinas" na periferia), mas só um estulto incurável não detecta os sinais de sua chegada.

O "nó górdio", evidentemente, é o imperialismo estadunidense. A recente sucessão de escândalos envolvendo as mais poderosas corporações do planeta foi o "apito da panela de pressão": mostrou que o barco de Tio Sam está indo para o brejo. A Enron, considerada a maior empresa de energia do mundo, na verdade "inflava" os seus rendimentos, de maneira completamente fraudulenta; quando perdeu o fôlego para sustentar a farsa, gerou perdas de 25 mil milhões de dólares. A WorldCom, segunda maior empresa de telecomunicações americana (proprietária da Embratel, privatizada pelo senhor FHC), registrou como "investimentos" despesas de 3,8 mil milhões de dólares. A Xerox, gigante das copiadoras, escondeu perdas de 6,4 mil milhões de dólares. Merck, a megacorporação da indústria farmacêutica, registrou receitas falsas de 12,4 mil milhões de dólares. E por aí vai.

A crise não tem "apenas" uma dimensão econômica. Ela é também social. Hoje, metade das famílias estadunidenses investe na bolsa. Os lucros com as ações entram nos cálculos do orçamento familiar. São usados para pagar os estudos dos filhos, despesas alimentares, manutenção da casa. Pois bem, os escândalos passam à população a seguinte mensagem: o mercado de valores não é confiável. É fácil imaginar o pânico do pai de família da classe média que tem o seu dinheiro investido nas bolsas. É fácil imaginar, também, o que aconteceria se todos corressem, de repente, para tirar o seu dinheiro: a economia quebra. Qualquer semelhança com 1929 não é mera coincidência.

Mais uma vez revelaram-se aos olhos do mundo as relações promíscuas mantidas entre os dirigentes políticos e as grandes corporações. O próprio presidente júnior é acusado de ter realizado operações fraudulentas, às vésperas da Guerra do Golfo (janeiro, 1991), devidamente orientado pelo então presidente papai Bush. Trata-se da decadência moral de um poder imperial, contra a qual alertavam, entre outros, o fundador Thomas Jefferson (obsecado pela história do Império Romano, costumava dizer que tinha pena de seu país cada vez que refletia sobre a justiça de Deus) e Abraham Lincoln (que denunciou o crescente poder das corporações, já em meados do século 19). Não por acaso, aliás, os escândalos se multiplicaram a partir dos anos 80, quando Ronald Reagan lançou o seu programa neoliberal de desregulamentação da economia.

A crise tem uma dimensão internacional de longo alcance. A economia dos Estados Unidos funcionou como uma espécie de "lastro" do mundo capitalista, após a Segunda Guerra Mundial. Não apenas porque o Tratado de Bretton Woods (1944) fez do dólar a moeda padrão, ancorada paritariamente no ouro (relação unilateralmente abolida, em 1972, por Richard Nixon), mas também porque os Estados Unidos, no quadro da Guerra Fria, financiaram a reconstrução da Europa ocidental (Plano Marshall) e a do Japão. Após a queda do Muro de Berlim (1989), o mundo "globalizado" continuou tendo como referência o dólar e como centro nevrálgico e estratégico a economia estadunidense. A União Européia e o euro não tiveram força ou tempo para se consolidar como alternativa; a longa recessão japonesa acentuou a dependência de sua economia do mercado estadunidense; a China ainda ocupa uma posição subordinada no mercado mundial.

Ora, esse sistema inteiro de relações históricas, políticas, culturais e econômicas foi abalado pela sucessão de escândalos financeiros. O mundo real, mais uma vez, colocou de joelhos aqueles que transformam a economia em cassino. Subitamente, desapareceram de cena os profetas da "nova economia", do "milagre ponto com", os porta-vozes da especulação. A pergunta é: os Estados Unidos têm ainda capacidade de ocupar o lugar central na economia mundial? Têm como assegurar à sua classe média um padrão de consumo que faz girar as rodas das indústrias de todo o mundo (mediante um colossal déficit da balança comercial)? Em resumo: o rei está nu.

Mas não é de hoje que a economia mundial está dando sinais de que existe algo de podre no reino de Wall Street. Em outubro de 1987, a Bolsa de New York chegou muito perto do colapso. O boom tecnológico (informática, telecomunicações, vias digitais, indústria biotecnológica), combinado com a "globalização" possibilitada pela queda do muro, deu um novo fôlego à economia. Dez anos depois, entretanto, foi a vez de a economia da Rússia naufragar, acabando com a festa dos especuladores (oferecia os juros mais altos do mundo). No ano seguinte, foram os chamados Tigres Asiáticos (Malásia, Coréia do Sul e Tailândia), cujas economias haviam crescido por anos a taxas assombrosas. Eram castelos de cartas: milhares de milhiões de dólares em papéis e títulos sustentavam a mais desenfreada especulação imobiliária. Depois disso, foi a vez do estouro da Nasdaq, a bolsa das chamadas empresas ponto com, as supervalorizadas empresas de Internet.

O estouro atual é mais grave, pois atinge um ponto de auge: os gigantes do capitalismo estão indo para o buraco. Não há mais nenhum boom tecnológico à vista para revitalizar a economia mundial. Existe, entretanto, uma possibilidade, sempre colocada no horizonte do capitalismo: a destruição em massa de equipamentos que terão de ser repostos. Em uma palavra: guerra. E também o aprofundamento do processo de pilhagem do que ainda resta dos países periféricos. Em uma palavra: recolonização.

Guerra é o que está sendo fomentado na Palestina, contra o Iraque (júnior já anunciou que o ataque acontecerá a qualquer momento), no Afeganistão, na Caxemira, na Colômbia. Recolonização, para o Brasil, atende pelo nome de ALCA: privatização de Furnas, da Petrobrás, dos recursos naturais, ocupação da Amazônia, anexação do comércio e da indústria nacionais. Trata-se da criação de uma "área do dólar", protegida pela "fortaleza América" contra os investidores europeus e asiáticos. A "guerra comercial" com a União Européia – e com o Brasil – deflagrada pelas medidas protecionistas anunciadas por júnior são uma demonstração muito leve do espírito bélico e arrogante que anima a Casa Branca.

A equipe que tomou o Capitólio de assalto não hesitará. Lançará mão de todos os recursos para preservar o poder e o lucro das megacorporações. Para ter as mãos livres, o fraudulento júnior ataca selvagemente as liberdades democráticas em seu próprio país, adotando como pretexto – suprema ironia! – a "guerra ao terrorismo". Irá até as últimas consequências, que ninguém duvide.

Nuvens cada vez mais pesadas se condensam no horizonte. É preciso, mais do que nunca, organizar a resistência popular – que vem se manifestando nas ruas das capitais européias, na luta do povo palestino, no campo e nas cidades da América Latina – para derrotar os arautos da destruição. A alternativa é a barbárie.
________________
[*] Jornalista brasileiro.


O original deste artigo encontra-se na revista "Caros amigos"

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

22/Ago/02