Aprendizes de feiticeiro
De golpe em golpe, o governo Bush atenta contra todos os fundamentos da
civilização.
O grupo fundamentalista que governa os Estados Unidos desde o golpe de Estado
que levou George W. Bush ao poder lançou-se recentemente em um segundo
golpe de Estado, mais abrangente, dessa vez dirigido contra o sistema
jurídico e político internacional. Sua doutrina, expressa no
chamado
Project for the New American Century
, fala em implantar uma "dominação de espectro amplo",
baseada principalmente na consolidação de uma esmagadora
superioridade militar e justificada moralmente pela necessidade de expandir
para todo o mundo os valores norte-americanos, identificados com o bem. De
Bíblia em punho, Bush discursou sobre o "Deus verdadeiro"
antes de assinar sua mais recente declaração de guerra.
Em menos de três anos no poder, agindo sempre de forma unilateral, esse
grupo atentou contra todos os fundamentos, internos e externos, da democracia e
da civilização: aboliu direitos civis dentro dos Estados Unidos;
boicotou o Protocolo de Kioto sobre o clima; retirou-se do Tratado de
Mísseis Balísticos; impediu o avanço das
negociações para a Convenção contra Armas
Biológicas; recusou-se a submeter seus soldados à
jurisdição do Tribunal Penal Internacional, criado para julgar
crimes de guerra; não assinou o acordo mundial para banimento das minas
terrestres; incrementou a tensão militar entre as duas Coréias e
entre China e Formosa; instalou, pela primeira vez, bases militares na
América do Sul; apoiou uma política genocida na Palestina;
ameaçou intervir em pelo menos meia dúzia de países do
chamado "Eixo do Mal"; humilhou a Organização das
Nações Unidas.
Na esfera militar, os dados são impressionantes: os gastos dos Estados
Unidos com armamentos superam hoje, com folga, a soma de gastos realizada pelos
outros catorze países que integram a lista dos quinze mais bem armados
do mundo. O sentido de tal acumulação de poder é
constituir uma nova ordem internacional, cujos contornos estão claros.
Em vez de um mundo regido por regras e instituições, por exemplo,
teremos aquilo que Donald Rumsfeld, secretário de Defesa, chamou de
"coalizões de vontade", ou seja, agrupamentos
provisórios, criados para fins específicos. A invasão do
Iraque tem sido apresentada como uma espécie de projeto piloto dessa
nova postura.
Creio que a profundidade da mudança em curso ainda não foi
captada. Em última análise, ela nos remete de volta ao mundo
pré-moderno, àquela pré-modernidade
high tech
que Hollywood antecipou em muitos filmes, de gosto duvidoso, feitos nos
últimos anos.
A constituição dos Estados nacionais modernos e, depois, a
constituição do sistema interestatal foi um fenômeno
histórico centrado inicialmente na Europa e decorrente da imperiosa
necessidade de pôr fim às guerras religiosas que
ensangüentaram o continente durante mais de cem anos. O maior
teórico dessa transição foi Hobbes: para sair do estado de
natureza, caracterizado pela guerra de todos contra todos, e inaugurar o estado
civil é necessário instituir um poder o Leviatã
que, em vez de tentar impor um princípio moral universalmente
válido, legitima-se, única e exclusivamente, por sua capacidade
de garantir a paz, estabelecendo regras mínimas de convivência
entre pessoas e grupos.
Por isso, o advento da modernidade ocidental foi marcado pela
separação dos eixos bem/mal e paz/guerra, o que correspondeu a
uma separação entre moral (remetida à esfera privada) e
política (submetida à razão de Estado). Nasceu assim o
Estado moderno cuja primeira forma foi a monarquia absoluta , que
passou a concentrar em si o monopólio da violência legítima
dentro de determinado território. Junto com ele, nasceu o conceito de
soberania política. (Não é preciso enfatizar que o
processo histórico vivido por outras sociedades, inclusive as
muçulmanas, foi muito diferente.)
A partir de então, no espaço europeu abrangido por essa
transformação, a invocação de teologias e leis
morais deixou de ser um meio legítimo para estabelecer uma ordem
política, dado o risco de reabrir a qualquer momento, com aquela
invocação, a guerra de todos contra todos. Vattel estendeu o
mesmo princípio às relações interestatais, fundando
a possibilidade de instaurar a paz com base em regras internacionais de
natureza também essencialmente política. Essa idéia acabou
ganhando forma duradoura na elaboração do conceito de
equilíbrio de poder, amplamente predominante, em diferentes arranjos,
desde o Tratado de Viena, de 1815, até o fim da União
Soviética, em 1991.
Ao misturar novamente os eixos bem/mal e paz/guerra, e ao romper o
princípio do equilíbrio de poder, o que o grupo de Bush contesta,
em última análise, são os dois pilares fundantes da
modernidade política ocidental. Pode parecer estranho que esse movimento
parta de um Estado republicano e democrático. Com efeito, o projeto de
paz perpétua, de Kant, formulado no século 18, pressupunha que
todos os Estados nacionais assumissem justamente a forma republicana de
governo, por ela ser considerada menos propensa a decisões
arbitrárias: "Se o consentimento dos cidadãos tiver de ser
solicitado para decidir se a guerra deve ser travada ou não, nada mais
natural que eles reflitam longamente, antes de iniciar um jogo tão ruim,
pois se decidirem promovê-la recairão sobre eles mesmos as
calamidades da guerra". A mesma idéia aparecera em Montesquieu. No
século 19, no entanto, Tocqueville já não era tão
otimista, afirmando profeticamente que o individualismo e o confinamento das
pessoas na esfera privada preparariam as condições para a
emergência de um novo tipo de despotismo, que chamou de "despotismo
democrático": "Essa espécie de servidão,
regulada, doce e pacífica, poderá conjugar-se mais facilmente do
que se imagina com algumas das formas exteriores da liberdade, e não
será impossível estabelecê-la sem que seja
necessário retirar a soberania do povo".
Os tempos atuais dão mais razão a Tocqueville que a Kant. Embora,
pelo seu pragmatismo, a sociedade norte-americana tenha desenvolvido
excepcionalmente a técnica, os chamados "Estados Unidos
profundos" de onde vem toda a equipe de Bush nunca viveram a
experiência do iluminismo, nem incorporaram plenamente o conceito de
razão. Sua origem, ao contrário, está em grupos religiosos
fechados, messiânicos e dogmáticos que agora fornecem o discurso
ideológico legitimador da política desejada pelos grandes
monopólios capitalistas em crise.
Os dois movimentos que articulam esse discurso são complementares, pois
a tarefa anunciada de levar os valores norte-americanos a sociedades não
ocidentais, sendo aistórica, exige a construção de um
superpoder capaz de agir de fora para dentro das sociedades a serem
"ocidentalizadas". Criar esse superpoder é romper o
equilíbrio de poder. Estamos diante de um novo Leviatã, dessa vez
não hobbesiano ou até anti-hobbesiano. Pois ele não se
constitui para impor a paz, mas para fazer a guerra. Daí o paralelo
possível, sentido intuitivamente pelas pessoas, com a experiência
nazista.
A existência de um poder desse tipo é uma
contradição em termos. Ao buscar para si uma
legitimação moral não importa se fundada em
religião, costumes ou raça , ele recusa a política.
Ao fazê-lo, recria as condições da guerra de todos contra
todos. Com um agravante: ao contrário de impérios que desfrutaram
de supremacia em outros tempos históricos, a única superioridade
que os Estados Unidos podem reivindicar para si, com veracidade, é a
superioridade militar. Em todas as outras esferas econômica,
política, cultural ou moral, por exemplo , essa superioridade pode
ser questionada.
Estamos diante de um salto no escuro em direção à
pré-modernidade, que pode ser vislumbrada também na
abolição, pelos mesmos Estados Unidos, do exército de
cidadãos e na recriação de um exército de
mercenários profissionais. Agora, porém, com armas nucleares.
Só uma certeza podemos ter: não vai dar certo. A espantosa
resistência do povo iraquiano, neste momento, já é um sinal
de luz. Esperemos que o cogumelo atômico não escureça tudo,
de vez.
[*]
Autor de
A Opção Brasileira
(Contraponto Editora, 1998, nona edição); integra a
coordenação nacional do
Movimento Consulta Popular.
Publicado originalmente na revista
Caros Amigos
, Abril de 2003
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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