Sem complexos

por Carlo Frabetti

Governantes sem complexos há muitos... Se a glaciação franquista que congelou o teu discurso, tetanizou ao mesmo tempo o teu lábio superior (a função cria o órgão, a disfunção o atrofia), oculta a sua simbólica esclerose labial sob um patético bigodinho fascista. Sem complexos.

Se nem nas pontas dos pés alcanças um metro e sessenta e o teu porte moral não supera o físico, iça uma bandeira de trezentos metros quadrados, casa a tua filha num mosteiro ciclópico e apoia as exíguas patilhas na mesma mesa que o maior assassino do mundo. Sem complexos.

Se noventa por cento da população está contra à invasão do Iraque, mas para os teus interesses pessoais é mais conveniente pôr-te ao serviço dos criminosos que arrasaram o país e mataram dois milhões de iraquianos, trai os infelizes que um dia votaram em ti. Sem complexos.

Se os teus amos assassinam de forma flagrante um jornalista do teu país e dizem que foi em autodefesa, apoia-os sem reservas. Sem complexos.

Se apoias um massacre com o pretexto de "prevenir" uma ameaça em que nem a CIA acredita, chama de terroristas àqueles que heroicamente se defendem dos invasores. Sem complexos.

Se mandas os teus soldados ao matadouro para que se enriqueçam os fabricantes de armas e os ladrões de petróleo, diz que o fazes em defesa da democracia. Sem complexos.

Se provocas a maior catástrofe ecológica de todos os tempos, cujos efeitos tardarão décadas a desaparecer, diz que fizeste o mais adequado e que as praias estão esplendorosas. Sem complexos.

Se criminalizar os nacionalistas bascos e catalãos te proporciona os votos dos imbecis e dos neofascistas, criminaliza-os todos, inclusive os mais moderados e dialogantes. Sem complexos.

Se a ONU, a Amnistia Internacional, a Associação contra a Tortura e outras organizações acusam o governo espanhol de favorecer a impunidade dos policiais torturadores, diz que todos os torturados seguem palavras-de-ordem da ETA (ainda que sejam delinquentes comuns ou imigrantes magrebinos). Sem complexos.

Se um terrorista de uniforme, durante uma manifestação pacífica, parte a cabeça de uma jovem que está a falar ao telefone, diz que estava nervoso. Sem complexos.

Se os machinhos ibéricos (inclusive alguns polícias e guardas civis) matam quase uma centena de mulheres por ano, diz que a Espanha vai bem. Sem complexos.

Se no Estado espanhol há o dobro de acidentes laborais mortais que no resto da Europa, diz que a culpa é dos trabalhadores e recusa as indemnizações aos seus familiares. Sem complexos.

Se uma cadeia de televisão despede mais de duzentos pessoas mediante um Processo de Regulação de Emprego que o próprio Gabinete do Trabalho da Comunidade de Madrid considera improcedente (até ao ponto de advertir o ministro do Trabalho de que, se o assinar, incorrerá num caso flagrante de prevaricação), aprova tranquilamente o PRE, pois o capital e os juizes estão do teu lado. Sem complexos.

Se os teus fins são inconfessáveis e os teus meios inadmissíveis, utiliza a estúpida expressão "sem complexos" sempre que careças de argumentos (ou seja, sempre). Ainda que se torne evidente que, no teu envilecido jargão, "complexos" é sinónimo de "escrúpulos". Sem complexos.

O original encontra-se em http://www.rebelion.org/opinion/031206cf.htm .

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

07/Dez/03