Prémio Príncipe das Astúrias à hipocrisia
A mentira e a hipocrisia são alguns dos traços mais habituais do
poder. Não é nada de novo. Nestes dias de esplendores
monárquicos, que se repetem a cada ano com a entrega dos Prémios
Príncipe das Astúrias, nós as vimos novamente, escondidas
em meio às palavras do herdeiro da coroa espanhola, glosadas pelas
televisões cortesãs, aplaudidas sem rubor pelos jornais
palacianos.
A concepção inicial que levou à criação dos
Prémios Príncipe das Astúrias, e o seu desenvolvimento
posterior, apenas pode enganar o cidadão comum: apresentados como
homenagem a pessoas de diversos países que se distinguiram em diferentes
aspectos da actividade humana, o que pretendem na realidade é aproveitar
o prestígio alheio para enaltecer a figura de um aspirante à
coroa cuja utilidade pública das suas actividades é desconhecida.
Tais recompensas anuais são portanto uma vulgar operação
publicitária, paga com o dinheiro do orçamento público e
não com o dinheiro dos Borbons, a fim de enaltecer a figura do herdeiro
e reforçar entre os habitantes do país a ideia de que será
convertido no próximo rei. Ano após ano repetem-se estes rituais
e, junto à presença circunstancial dos premiados, cujo
méritos parecem indiscutíveis, emerge para todos os
cidadãos a personalidade do Felipe de Borbon, que assim se apresenta
cercado por pessoas de relevo mundial.
Por vezes escapa-lhes a mão. Neste 2003 da criminosa guerra ao Iraque,
os serviços do palácio organizaram para o herdeiro uma
recepção com veteranos militantes comunistas e socialistas das
Astúrias, pessoas que contam com uma excepcional história de luta
pela liberdade. A intenção era a mesma: elevá-lo sobre
os calcanhares alheios, concedendo credibilidade democrática a Felipe de
Borbon através do procedimento de apresentá-lo junto
àqueles que combateram o franquismo. Nesse encontro, uma alusão
ao suposto exílio de Juan de Borbon avô do herdeiro e pai
do rei actual de um dos veteranos militantes anti-franquistas ali
presente conseguiu, segundo os serviços de imprensa do palácio,
"comover o príncipe", confirmando assim que Juan de Borbon
seria mais uma vítima do regime fascista que encarcerou a Espanha
após a guerra civil.
Na sua emoção, o príncipe da Astúrias,
vítima e beneficiário da propaganda monárquica que
está a inventar a história recente, pretendia ignorar que em 1936
Juan de Borbon ofereceu-se a Franco como soldado voluntário, ao
serviço da causa fascista, e que se foi recusado pelo general faccioso
foi porque a sua suposta contribuição era ínfima,
relativamente às obrigações e servidões que criava
aos militares sublevados. O actual herdeiro também passava por alto
que, por ocasião da queda de Barcelona em Janeiro de 1939, esse sinistro
Juan de Borbon enviou um telegrama a Franco em que o felicitava pelo triunfo
das armas fascistas. E deixava de lado, finalmente, que Juan de Borbon
não teve qualquer escrúpulo em negociar com o ditador, e que as
suas diferenças radicavam apenas no facto de que ambos, caudilho e
aspirante a rei, não podiam conviver na chefia do Estado. Pretender
ignorar, como fez o príncipe das Astúrias que, durante toda a sua
vida, a única ambição de Juan de Borbon foi a de ser rei,
ainda que enfeitasse os seus mesquinhos desejos com as habituais frases ocas
sobre o serviço ao país e à população,
é prestar-se a uma operação suja e hipócrita.
Deu-se assim, com essa incrível historia de um Juan de Borbon convertido
em vítima da ditadura franquista, mais um passo na grotesca hagiografia
que, a partir dos círculos do poder e dos meios de
comunicação, recompôs a vida dos membros da família
Borbon e que, além disso, está a escrever a versão
canónica da história das últimas décadas.
Assistimos assim à invenção de um Juan Carlos de Borbon
convertido pelos solícitos funcionários do palácio no
motor da mudança política após a ditadura, deixando o
esforço da oposição clandestina e o empenho de
milhões de espanhóis na exigência da liberdade apenas como
uma prescindível decoração aos esforços do rei.
Também assistimos à construção de uma lenda que
desejaria ver o príncipe franquista nomeado sucessor de Franco
protagonizar os esforços colectivos pela democracia e, quase, dirigir os
fios da oposição ilegal. Os cidadãos estão
acostumados. De facto, pode-se esperar tudo da hipocrisia do poder.
Mas não foi esse o único despropósito dos Prémios
Príncipe das Astúrias deste ano. Sem ruborizar-se, Felipe de
Borbon vangloriava-se, no acto solene de entrega dos galardões, das
muitas horas dedicadas ao "sonho de uma humanidade mais fraternal",
ao "amor pela cultura", ao esforço pela
"integração da mulher e todos os âmbitos da vida
social". O príncipe também falou de uma Espanha que ele
contempla como "vanguarda da criação cultural e da defesa
dos direitos humanos" e falou da "reconciliação"
das duas Espanhas. O papel aguenta tudo. Felipe lia as frases que lhe haviam
escrito, passando por cima das verdadeiras actividades da família real,
mais preocupada com festas e folguedos privados do que com as dificuldades dos
cidadãos. Assim, afirmava tais coisas num país crucificado pelos
repugnantes programas de televisão servidos maciçamente, que
esmagam os esforços daqueles que de escritores a professores, de
cientistas a actores continuam a crer na importância da
instrução popular, e dizia isso na Espanha dos contratos-lixo e
dos empresários sem escrúpulos.
Significativamente, o herdeiro que, sem sentir vergonha, falava da defesa dos
direitos humanos, não tinha uma só palavra para as milhares de
vítimas inocentes de uma guerra suja no Iraque e uma
ocupação posterior na qual a Espanha está a participar com
os seus soldados. Pouco avisado, pouco atento, Felipe de Borbon lia,
além disso, tais frases sobre a mulher sendo, como é,
beneficiário de uma vetusta lei de sucessão que discrimina as
suas próprias irmãs.
Pelo visto, Felipe pretende que os cidadãos esqueçam a origem da
sua função actual, que tão folgada vida lhe prepara.
Porque a sinistra ditadura franquista, que após o final da guerra civil,
continuou a perseguir com ferocidade republicanos, socialistas, comunistas e
anarquistas, foi responsável pelo assassinato, em tempo de paz, de
dezenas de milhares de pessoas, e desapareceu deixando como herança uma
monarquia que os cidadãos espanhóis tiveram de obrigatoriamente
de suportar, juntamente com a falsificação da história
recente, que ele próprio glosa sem dificuldade. Porque essa
reconciliação que Felipe de Borbon mencionava em Oviedo
está cimentada no esquecimento, na impunidade dos crimes cometidos, na
vergonha. Ainda hoje, 25 anos depois do fim da ditadura, continuamos a
desconhecer as verdadeiras dimensões do horror fascista que esmagou a
Espanha. E enquanto alguns governantes espanhóis continuam a alardear
pelo mundo uma suposta transição modelar à democracia,
é revelador o contraste entre a impunidade concedida em Espanha aos
responsáveis dos crimes da ditadura franquista e aos
beneficiários da rapina com os denodados esforços feitos no
Chile, na Argentina e na Guatemala para construir a liberdade sem esquecer as
responsabilidades dos assassinos. As mais severas leis, não escritas,
de ponto final, que sancionaram a impunidade dos fascistas e dos seus
cúmplices, foram feitas na Espanha.
Naturalmente, não seria justo tornar Felipe responsável pelos
horrores da ditadura, pois ainda era muito jovem quando morreu Franco. Mas
não parece demasiado atrevido exigir-lhe que não brinque com a
verdade e a mentira dos cúmplices da ditadura, que não lance no
mercado a moeda falsa de um país que só existe na fantasia dos
círculos do poder. Ainda que receba de vez em quando alguns
anti-franquistas a fim de adornar a sua própria figura, Felipe,
cavalgando as mentiras com as quais está a ser construída a
memória colectiva dos espanhóis, pretende ignorar as verdadeiras
vítimas e converter os beneficiários dos atropelos e do
latrocínio franquistas em honrados cidadãos acima de qualquer
suspeita. Por isso, ao herdeiro da coroa se a república
não remediar poderia ser concedido neste ano de 2003, sem
reparos, o Prémio Príncipe das Astúrias à
hipocrisia.
27/Out/2003
O original encontra-se em
http://www.rebelion.org/opinion/031027polo.htm
.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
|