Prémio Príncipe das Astúrias à hipocrisia


por Higinio Polo [*]

Lula recebe o prémio das mãos do príncipe, em Outubro de 2003. Nenhum dos dois condenou a criminosa ocupação do Iraque, em que a Espanha participa. A mentira e a hipocrisia são alguns dos traços mais habituais do poder. Não é nada de novo. Nestes dias de esplendores monárquicos, que se repetem a cada ano com a entrega dos Prémios Príncipe das Astúrias, nós as vimos novamente, escondidas em meio às palavras do herdeiro da coroa espanhola, glosadas pelas televisões cortesãs, aplaudidas sem rubor pelos jornais palacianos.

A concepção inicial que levou à criação dos Prémios Príncipe das Astúrias, e o seu desenvolvimento posterior, apenas pode enganar o cidadão comum: apresentados como homenagem a pessoas de diversos países que se distinguiram em diferentes aspectos da actividade humana, o que pretendem na realidade é aproveitar o prestígio alheio para enaltecer a figura de um aspirante à coroa cuja utilidade pública das suas actividades é desconhecida.

Tais recompensas anuais são portanto uma vulgar operação publicitária, paga com o dinheiro do orçamento público e não com o dinheiro dos Borbons, a fim de enaltecer a figura do herdeiro e reforçar entre os habitantes do país a ideia de que será convertido no próximo rei. Ano após ano repetem-se estes rituais e, junto à presença circunstancial dos premiados, cujo méritos parecem indiscutíveis, emerge para todos os cidadãos a personalidade do Felipe de Borbon, que assim se apresenta cercado por pessoas de relevo mundial.

Por vezes escapa-lhes a mão. Neste 2003 da criminosa guerra ao Iraque, os serviços do palácio organizaram para o herdeiro uma recepção com veteranos militantes comunistas e socialistas das Astúrias, pessoas que contam com uma excepcional história de luta pela liberdade. A intenção era a mesma: elevá-lo sobre os calcanhares alheios, concedendo credibilidade democrática a Felipe de Borbon através do procedimento de apresentá-lo junto àqueles que combateram o franquismo. Nesse encontro, uma alusão ao suposto exílio de Juan de Borbon — avô do herdeiro e pai do rei actual — de um dos veteranos militantes anti-franquistas ali presente conseguiu, segundo os serviços de imprensa do palácio, "comover o príncipe", confirmando assim que Juan de Borbon seria mais uma vítima do regime fascista que encarcerou a Espanha após a guerra civil.

Na sua emoção, o príncipe da Astúrias, vítima e beneficiário da propaganda monárquica que está a inventar a história recente, pretendia ignorar que em 1936 Juan de Borbon ofereceu-se a Franco como soldado voluntário, ao serviço da causa fascista, e que se foi recusado pelo general faccioso foi porque a sua suposta contribuição era ínfima, relativamente às obrigações e servidões que criava aos militares sublevados. O actual herdeiro também passava por alto que, por ocasião da queda de Barcelona em Janeiro de 1939, esse sinistro Juan de Borbon enviou um telegrama a Franco em que o felicitava pelo triunfo das armas fascistas. E deixava de lado, finalmente, que Juan de Borbon não teve qualquer escrúpulo em negociar com o ditador, e que as suas diferenças radicavam apenas no facto de que ambos, caudilho e aspirante a rei, não podiam conviver na chefia do Estado. Pretender ignorar, como fez o príncipe das Astúrias que, durante toda a sua vida, a única ambição de Juan de Borbon foi a de ser rei, ainda que enfeitasse os seus mesquinhos desejos com as habituais frases ocas sobre o serviço ao país e à população, é prestar-se a uma operação suja e hipócrita.

Deu-se assim, com essa incrível historia de um Juan de Borbon convertido em vítima da ditadura franquista, mais um passo na grotesca hagiografia que, a partir dos círculos do poder e dos meios de comunicação, recompôs a vida dos membros da família Borbon e que, além disso, está a escrever a versão canónica da história das últimas décadas. Assistimos assim à invenção de um Juan Carlos de Borbon convertido pelos solícitos funcionários do palácio no motor da mudança política após a ditadura, deixando o esforço da oposição clandestina e o empenho de milhões de espanhóis na exigência da liberdade apenas como uma prescindível decoração aos esforços do rei. Também assistimos à construção de uma lenda que desejaria ver o príncipe franquista nomeado sucessor de Franco protagonizar os esforços colectivos pela democracia e, quase, dirigir os fios da oposição ilegal. Os cidadãos estão acostumados. De facto, pode-se esperar tudo da hipocrisia do poder.

Mas não foi esse o único despropósito dos Prémios Príncipe das Astúrias deste ano. Sem ruborizar-se, Felipe de Borbon vangloriava-se, no acto solene de entrega dos galardões, das muitas horas dedicadas ao "sonho de uma humanidade mais fraternal", ao "amor pela cultura", ao esforço pela "integração da mulher e todos os âmbitos da vida social". O príncipe também falou de uma Espanha que ele contempla como "vanguarda da criação cultural e da defesa dos direitos humanos" e falou da "reconciliação" das duas Espanhas. O papel aguenta tudo. Felipe lia as frases que lhe haviam escrito, passando por cima das verdadeiras actividades da família real, mais preocupada com festas e folguedos privados do que com as dificuldades dos cidadãos. Assim, afirmava tais coisas num país crucificado pelos repugnantes programas de televisão servidos maciçamente, que esmagam os esforços daqueles que — de escritores a professores, de cientistas a actores — continuam a crer na importância da instrução popular, e dizia isso na Espanha dos contratos-lixo e dos empresários sem escrúpulos.

Significativamente, o herdeiro que, sem sentir vergonha, falava da defesa dos direitos humanos, não tinha uma só palavra para as milhares de vítimas inocentes de uma guerra suja no Iraque e uma ocupação posterior na qual a Espanha está a participar com os seus soldados. Pouco avisado, pouco atento, Felipe de Borbon lia, além disso, tais frases sobre a mulher — sendo, como é, beneficiário de uma vetusta lei de sucessão que discrimina as suas próprias irmãs.

Pelo visto, Felipe pretende que os cidadãos esqueçam a origem da sua função actual, que tão folgada vida lhe prepara. Porque a sinistra ditadura franquista, que após o final da guerra civil, continuou a perseguir com ferocidade republicanos, socialistas, comunistas e anarquistas, foi responsável pelo assassinato, em tempo de paz, de dezenas de milhares de pessoas, e desapareceu deixando como herança uma monarquia que os cidadãos espanhóis tiveram de obrigatoriamente de suportar, juntamente com a falsificação da história recente, que ele próprio glosa sem dificuldade. Porque essa reconciliação que Felipe de Borbon mencionava em Oviedo está cimentada no esquecimento, na impunidade dos crimes cometidos, na vergonha. Ainda hoje, 25 anos depois do fim da ditadura, continuamos a desconhecer as verdadeiras dimensões do horror fascista que esmagou a Espanha. E enquanto alguns governantes espanhóis continuam a alardear pelo mundo uma suposta transição modelar à democracia, é revelador o contraste entre a impunidade concedida em Espanha aos responsáveis dos crimes da ditadura franquista e aos beneficiários da rapina com os denodados esforços feitos no Chile, na Argentina e na Guatemala para construir a liberdade sem esquecer as responsabilidades dos assassinos. As mais severas leis, não escritas, de ponto final, que sancionaram a impunidade dos fascistas e dos seus cúmplices, foram feitas na Espanha.

Naturalmente, não seria justo tornar Felipe responsável pelos horrores da ditadura, pois ainda era muito jovem quando morreu Franco. Mas não parece demasiado atrevido exigir-lhe que não brinque com a verdade e a mentira dos cúmplices da ditadura, que não lance no mercado a moeda falsa de um país que só existe na fantasia dos círculos do poder. Ainda que receba de vez em quando alguns anti-franquistas a fim de adornar a sua própria figura, Felipe, cavalgando as mentiras com as quais está a ser construída a memória colectiva dos espanhóis, pretende ignorar as verdadeiras vítimas e converter os beneficiários dos atropelos e do latrocínio franquistas em honrados cidadãos acima de qualquer suspeita. Por isso, ao herdeiro da coroa — se a república não remediar — poderia ser concedido neste ano de 2003, sem reparos, o Prémio Príncipe das Astúrias à hipocrisia.

27/Out/2003

O original encontra-se em http://www.rebelion.org/opinion/031027polo.htm .

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
29/Out/03