Equador:
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Lúcio Gutiérrez foi presidente da Junta de Salvação
Nacional do Equador, constituída durante o levantamento popular de 21 de
Janeiro de 2000. Sendo um dos seus principais protagonistas, descreve como se
desenvolveram aqueles acontecimentos e como os viveu. Também toma
posição sobre questões centrais para o Equador e para toda
a América Latina.
A presente entrevista decorreu em Maio de 2001 na sede do Parlatino, em São Paulo, conduzida por um grupo de jovens latino-americanos, convidados pela Juventude do Movimento Revolucionário 8 de Outubro do Brasil. Esta entrevista mostra claramente o pensamento do vencedor na primeira volta das eleições presidenciais equatorianas, com 20,46%, realizadas no passado dia 20 de Outubro. |
- Como se relaciona o Exército com o povo indígena e com o povo
equatoriano?
- A história das relações entre o Exército, os
indígenas e os sectores populares tem pelo menos uns 25 anos. O
Exército equatoriano desenvolve um trabalho chamado «Apoio ao
Desenvolvimento». Isto é, realizamos uma série de obras em
benefício das classes mais desfavorecidas. Eu próprio, como
engenheiro civil, participei em muitas construções, seja de casas
comunais até condutas de água para as comunidades
indígenas e sectores populares. Tudo isto provocou uma grande
aproximação com os sectores populares e com o sector
indígena em particular. Por outro lado, o Exército equatoriano
integra elementos da classe média e, sobretudo no sector da tropa, gente
que vem dos estratos populares, inclusive há índios que
são soldados, cabos, sargentos, dentro do nosso Exército.
Além disso, nas nossas academias militares ministram-se matérias
como, por exemplo, Realidade Nacional, Teoria do Desenvolvimento
Económico, Sociologia, Psicologia, matérias que aproximam as
pessoas da realidade nacional. Também devemos ter em conta que as
ditaduras militares foram mais suaves, não há denúncias de
matanças, de sequestros nem de desaparecidos. A tal ponto que, no
Equador, chamamos "ditabranda" à ditadura militar... Tudo isso
fez com que as Forças Armadas do Equador sejam uma das
instituições mais credíveis e de maior simpatia, inclusive
acima da própria Igreja. As sondagens revelam uma
aceitação popular de mais de 70%.
- Como começou a sua participação no movimento popular
- A nossa participação teve início quando ocorreu a queda
de Bucaram. Nesse tempo eu era o assessor militar do ex-presidente Bucaram e,
em consequência, no momento do levantamento militar de 5, 6 e 7 de
Fevereiro de 1997, estava no Palácio do Governo, sendo o militar mais
antigo. Foram momentos muito difíceis, em que cerca de duzentas mil
pessoas cercavam o Palácio e ameaçavam tomá-lo de assalto.
Como eu tinha a responsabilidade de velar pela segurança do
Palácio e, também pela vida do presidente, subia permanentemente
para falar com o presidente que me mandava chamar e baixava para ver como
estava a situação. Num desses percursos perguntei a alguns
soldados e oficiais que guardavam a porta principal de acesso ao palácio
do governo: «O que vocês farão se as pessoas entrarem por
essa porta?» Disseram-me: «Disparamos a matar». Então eu
lhes disse: «Mas como podem dizer-me isso?». «Essa é a
ordem que nos deram», respondem-me. «E quem vos deu essa
ordem?». «Nosso comandante», explicam. Chamo então um
tenente coronel que era comandante da guarda presidencial e pergunto-lhe. Ele
me disse que dera essa ordem pois era essa a que lhe haviam dado: «Temos
que defender o Palácio de qualquer jeito e se alguém entrar, a
ordem é para que disparem a matar». Reuni então todos os
militares, especialmente os oficiais, para dizer-lhes que em
circunstância alguma poderiam disparar sobre o povo, pois este lutava por
causas legítimas e quem havia falhado para com o povo era o presidente e
não o contrário. Deste modo, não deveríamos
disparar. Houve uma série de comentários e argumentos em sentido
contrário. Alguns diziam: «Tenho a minha família, não
quero que me matem e se matamos trinta ou cinquenta populares os outros
assustam-se e retiram-se para suas casas». Disse-lhes que não, pois
se matássemos vinte teríamos de matar cem ou duzentos mil
E
disse-lhes também que havia ocasiões em que a
situação estava por cima da missão. E que nesse momento
estávamos a viver uma dessas situações especiais. E que em
situações atípicas a solução também
tem que ser atípica. Felizmente houve consenso, concordaram os oficiais
e não se disparou uma bala. Inclusive não se lançaram mais
gazes lacrimogéneos, a situação tranquilizou-se e as
pessoas também se acalmaram. Eu próprio desci à
praça e pus-me a gritar com as pessoas: «O povo fardado
também é explorado». Deste modo a situação
ficou mais calma e deu-se a transição de forma pacífica e
não de outro modo, que teria sido terrivelmente sangrento.
Depois, desde o início do governo de Mahuad, implementaram-se medidas
neoliberais tendentes a privatizar e a vender todo o nosso património
nacional. Em Janeiro de 2000 começou a falar-se em
dolarização. O custo do gás já havia subido de
4.900 para 25.000 sucres. Aumentaram os preços da água, da luz,
do telefone. Mahuad dizia que com essas medidas iria arrecadar cerca de 180
milhões de dólares por ano. Tomou-as em Outubro de 1998 e em
Novembro promulgou um decreto dando uma ajuda bancária para as
instituições financeiras de 800 milhões de dólares.
O produto de mais de quatro anos de sofrimento para todo o povo ia para uma
entidade financeira! Em face disso apresentei um protesto por escrito em 19 de
Janeiro de 1999 (um ano e dois dias antes da revolta de 21 de Janeiro). Era um
documento de cinco folhas em que afirmava que as Forças Armadas
não podiam ser cúmplices de um governo corrupto. Que as
Forças Armadas têm como missão principal defender o povo
equatoriano. E que, ao permitir atitudes daquela natureza, estávamos a
ser cúmplices. Recomendava ao comando militar acções para
que o presidente da República mudasse de atitude. Entreguei esse
documento, numa reunião de oficiais, ao comandante geral do
Exército, com a minha assinatura. O documento acabou por passar para a
imprensa, foi publicado num jornal e tentaram afastar-me do Exército por
insubordinação.
Começaram então uma série de convulsões no Equador,
um levantamento indígena, greve de taxistas (nessa altura eu estava na
cidade de Cuenca a comandar um grupo de cavalaria e alguns taxistas juntaram-se
onde eu estava e me falaram em revolução
) Havia um clima de
grande instabilidade. Tanto assim que fui chamado pelo ministro da Defesa
Nacional que me disse que não exerceriam qualquer represália
sobre mim, desde que não fizesse declarações à
imprensa. Em Julho fui para Quito fazer um curso de estado-maior conjunto e, em
Agosto, chamaram-nos, aos militares de maior graduação, para uma
reunião em que estava o ministro da Defesa Nacional e a economista Elsa
de Mena, que era a directora de Rendimento Interno. Essa reunião era
para pedir apoio militar para o aumento do imposto de valor acrescentado (IVA)
de 10 para 15%, e para um aumento do imposto de renda. A
justificação da economista era que não havia dinheiro para
a tal ajuda de salvação bancária (porque a seguir à
primeira ajuda a um banco começaram a ajudar outros, pois os bancos
viram nesse auxílio um negócio rentável e começaram
a declarar-se em falência uns a seguir aos outros e o governo salvava
todos os bancos). Nessa ocasião, um general disse que estava de acordo
com a subida do IVA, mas que teria que haver uma campanha de
sensibilização para que a população pagasse mais
impostos. Eu estava na segunda fila, fiquei indignado e disse-lhes que
não estava de acordo. Disse-lhes que o povo não queria pagar mais
imposto, simplesmente porque, se pagasse, esse dinheiro era roubado e dado
à banca corrupta. E fiz então uma séria advertência
de que se não houvesse mudança na forma corrupta de governar o
Estado equatoriano, se não se devolvessem os dinheiros que haviam sido
congelados arbitrariamente nos bancos, prejudicando a mais de um milhão
e seiscentos mil equatorianos, o povo iria explodir, iria levantar-se e
nós militares deveríamos unir-nos a esse povo. O ministro disse
que o remédio poderia ser pior que a doença, mas não houve
nenhuma solução. A situação agravava-se, havia
muitas greves, muitos confrontos de estudantes e de trabalhadores com as
forças policiais. Em Outubro tornei a entregar novo documento, com minha
assinatura, analisando a situação política e social por
que passava o país. Afastaram-me do curso de Comando Conjunto das
Forças Armadas, fui chamado pelo chefe do Comando, o general Mendoza,
que me pediu o documento, que entreguei, prometendo tomar algumas medidas, o
que não aconteceu. Começamos então a contactar
líderes indígenas e líderes sociais. A Lei das
Privatizações já tinha sido aprovada em primeira
instância pelo Congresso. Era preciso actuar pois de contrário
deixar-nos-iam sem país. Assim, planificou-se o levantamento
indígena que deveria realizar-se entre 15 e 21 de Janeiro de 2000.
Tivemos reuniões com alguns militares que estavam dispostos a unir-se a
esta revolução. Os indígenas conversaram com os comandos
militares. Inicialmente, os generais tinham oferecido apoio ao movimento mas na
altura própria não o fizeram e deram ordens para reprimir, para
disparar sobre os indígenas, os trabalhadores e sobre o movimento social
que tinha cercado o Congresso da República.
- Como foi a sua actuação no 21 de Janeiro (de 2000)?
- Começou então o levantamento indígena. Eles invadiram
Quito. Na noite de 20 de Janeiro saí clandestinamente para uma
reunião, no departamento de um irmão meu. Eu e quatro
capitães, entre eles meu irmão.
Ali planeamos as acções de 21 de Janeiro. Os capitães, que
eram alunos da Escola Politécnica do Exército, teriam que entrar
pela fachada esquerda do Congresso Nacional com o resto dos alunos da Escola
que fica a meia hora de Quito. Eu teria que deslocar-me para uma unidade
militar ao sul da cidade para entrar pela fachada direita. A
planificação terminou às onze da noite. No dia seguinte,
reuni minha família para dar conta da decisão que havia tomado,
fiz um testamento porque não sabia o que poderia acontecer, tanto
poderia ser morto como ser feito prisioneiro. Falei com minhas filhas, eu
estava para seguir para os Estados Unidos como adido militar e disse-lhes que
se esquecessem disso e a milha filha mais velha chorou e me abraçou
enquanto a mais nova me disse: «Papá, vai e acaba com essa
corrupção do Mahuad». Saí então com o apoio da
família
Mas se não me apoiassem dava no mesmo, a
decisão estava tomada e era irreversível
Passou um carro
oficial que nos recolhia para levar-nos ao local de trabalho e eu disse que
não podia ir pois minha esposa estava doente e pedi permissão
para levá-la ao hospital. Às sete menos um quarto saí com
ela, simulámos que íamos a um médico pois estávamos
a ser seguidos, entramos no hospital e saímos por outra porta.
Já na unidade militar, tomei contacto com alguns companheiros a quem
disse que tinha chegado o momento preciso. Juntamente com os militares que
tinham aderido a esta causa, seguimos para o Congresso da República. Ali
tivemos o primeiro enfrentamento com os polícias, que lançaram
gazes lacrimogéneos e tentaram deter-nos.
Sacamos as pistolas, sabendo que poderíamos ser alvejados, mas para
mostrar à polícia que o assunto era grave. Ali mesmo dissemos que
se juntassem a nós, que se tratava de um momento histórico e que
não podíamos permitir que o país se afundasse. Os
polícias deixaram-nos passar, praticamente adoptaram uma atitude de
apoio passivo, não se uniram a nós mas deixaram-nos entrar. A
seguir havia um cordão interno, mas de militares, que aparentemente
teria sido mais difícil de vencer, pois estavam armados com fuzis. Mas
esse foi mais fácil. Falamos com os militares e eles juntaram-se a
nós. Pudemos, deste modo, e sem disparar um tiro, entrar no Congresso da
República.
Já no Congresso, foi instalado o Parlamento Nacional dos Povos do
Equador. O Parlamento Nacional era formado por representantes dos parlamentos
das 22 províncias. Havia entre 8 e 10 pessoas representando cada um
desses parlamentos. Estavam representados todos os sectores da sociedade civil
equatoriana: sacerdotes, profissionais, trabalhadores, indígenas
Então, o Parlamento Nacional decide pôr fim aos três poderes
do Estado e nomeia uma Junta de Salvação Nacional,
constituída por António Vargas presidente da CONAIE
(Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador)
pelo doutor Carlos Solórzano ex-presidente do Supremo
Tribunal e por mim, como presidente. Numa breve
intervenção, afirmei que estávamos atravessando um momento
histórico, na senda dos nossos heróis de 10 de Agosto de 1809,
que então conseguiram a primeira independência do Equador e que
nós queríamos conseguir a segunda e definitiva
libertação do nosso povo para converter o Equador num modelo de
democracia na América Latina e no mundo.
Todas as unidades militares começaram rapidamente a juntar-se, por todos
os quartéis; do Exército, praticamente aderiram a 100%, da
Marinha e da Força Aérea, a 60% aproximadamente. E todo o povo
foi para a rua. Em 20 das 22 províncias foram ocupadas as estruturas de
poder local e central, faziam-se festas por toda a parte
Praticamente, o
movimento já estava consolidado.
O que se passou? Por que fracassamos se já havia sido destituído
Mahuad, se já tínhamos o apoio militar? No comando militar
estavam infiltrados três coronéis. Um de apelido Cobo, o coronel
Brito e o coronel Lalama. Cobo foi o primeiro a chegar, pela uma da tarde, veio
falar comigo e pedir que cedesse o poder ao comando militar. Disse-lhe que
não, que era um momento histórico, que se tratava de uma
revolução, tão legítima como a
revolução francesa ou a revolução norte-americana,
uma revolução como as latino-americanas de 1800. E que nós
também queríamos uma revolução que nos libertasse
das oligarquias e desse sistema privatizador e que convertesse o Equador num
país democrático.
Então, aparentemente, o coronel Cobo aderiu (assim o julguei). Logo
mais, pelas quatro da tarde, chegaram outros dois coronéis companheiros
de Cobo e que eram mais antigos que eu próprio. Reuniram-se com o
coronel Cobo e parece, então, que prepararam um golpe. A primeira coisa
que fizeram foi alterar a intenção primeiro que tínhamos
de permanecer no Congresso da República para consolidar o movimento
entre sábado e domingo e que a partir de segunda-feira seria
materializada a revolução.
Disseram que tínhamos que ir para o Palácio do Governo, que era o
símbolo do poder. Estávamos no interior do Congresso cerca de 500
oficiais, alguns indígenas e líderes de movimentos sociais.
Então alguns disseram que sim, vamos para o Palácio. E bem,
lá fomos então para o Palácio
No exterior era praticamente impossível caminhar pois era imensa a
quantidade de gente de Quito que havia saído às ruas para nos
apoiar. Lá fomos, com toda aquela gente, até ao Palácio do
Governo. Uma caminhada, que normalmente duraria uns 20 minutos ou meia hora,
levou mais de duas horas. As pessoas aplaudiam-nos das varandas, atiravam
papéis picados, acenavam bandeiras, muitos vinham até nós
para nos abraçar.
Quando chegamos ao Palácio do Governo já ali estavam os generais
do alto comando militar. Sentamo-nos a conversar com eles. Recordei ao
comandante do Exército que há mais de um ano tinha entregue um
documento e outro há cerca de três meses.
Vocês nada fizeram, de algum modo foram cúmplices, por
acção ou omissão, da corrupção do governo, e
por essa razão faltaram ao compromisso de defender o povo equatoriano.
Deste modo disse-lhes saiam antes que tenhamos de pô-los
lá fora.
Os indígenas também os acusaram de traidores e disseram que
saíssem. Aí começaram a actuar os coronéis. O
coronel Cobo disse que não podíamos dispensar os generais, que
não se podia romper a estrutura militar e que, tendo já
saído Mahuad, não havia nenhum problema se ficassem os generais.
Foi então que se deu o nosso primeiro erro. Eu aceitei. Disse que se os
generais se submetessem à Junta de Salvação Nacional,
aceitava as recomendações de Cobo. Este tinha sido nomeado, por
ser o coronel mais antigo entre nós, chefe do Comando Conjunto das
Forças Armadas e já todos os generais sabiam disso. E era ele
próprio que pedia que se reconhecessem os generais
A seguir, separamo-nos em grupos para conversar, de um lado os generais, do
outro os coronéis. Estes começaram a influenciar-me, tocaram na
parte sensível que todos temos, dizendo que não fosse ambicioso,
que Mahuad já havia sido destituído e que eu devia deixar as
coisas nas mãos do general Mendoza.
Essa conversação durou cerca de quatro horas, das oito à
meia noite. Eu negava pois pelo pouco que conhecia de Mendoza julgava que era
um homem que não teria força para manter-se na nova
situação, que viria um bloqueio e pressão internacional e
que seria necessária uma grande firmeza para suportar todo o vendaval de
pressões que se anunciavam.
Insistiam comigo para que não fosse ambicioso.
Mudei de opinião quando me disseram que o comandante da Força
Aérea tinha ordenado a uma base de Manta, que não se juntara ao
movimento, que bombardeasse Quito. Disseram-me que haveria mais de dez mil
mortos, uma grande matança e que eu, por causa da minha
ambição, seria o culpado. E eu disse-lhes, bem, três
pessoas pensam melhor que uma e deixei-me convencer por eles.
Além do mais, julgava que tinham vindo unir-se ao movimento e
desconhecia qualquer propósito em contrário. Julguei que o povo
equatoriano queria mudanças profundas, uma revolução, e
que definitivamente não lhe interessava o nome da pessoa
que levasse essa revolução por diante. Esse meu erro foi
provocado por ingenuidade, por falta de ambição e também
pela credibilidade, que é um problema da hierarquia militar, pois eles
tinham mais antiguidade que eu.
Logo que decidimos reconhecer o comando militar, propôs-se que Mendoza
entrasse para a Junta e houve um breve momento em que éramos quatro
pessoas. Mas os generais diziam que não podiam submeter-se a um coronel,
que era eu. Foi deste modo que entrou o general Mendoza e eu saí. Nesse
momento, declararam-se como um Triunvirato Civil Militar, substituindo a Junta
de Salvação nacional.
Mas por que Mendoza está a sair? Quando eles se dirigiram para a varanda
frente à praça grande, o povo começa a gritar:
Lúcio! Lúcio! E começam a assobiar o general Mendoza.
Rejeitaram-no.
Eu tinha ficado no interior e quando assomo à varanda eles voltam para
dentro e já não saíram mais. Houve depois uma
conferência de imprensa em que Mendoza anunciou o levantamento do estado
de emergência e nomeou o general Sandoval como chefe do Comando Conjunto.
Um dos membros do Triunvirato nomeou-me ministro do governo mas não
aceitei. E pela meia noite e meia saí do Palácio do Governo para
minha casa, pensando que estava tudo consolidado.
Disseram-me que se não ficasse não seria levado em conta para a
formação do governo e eu informei que não estava
interessado, que o meu sonho tinha sido apenas patriótico e que me
integraria na vida civil.
No dia seguinte ia para o meu trabalho sem saber o que havia passado e dois
veículos começaram a seguir-me. Tratei de escapar mas tive que
parar num semáforo, os carros atravessaram-se, saíram oito civis
armados que me agarraram, meteram-me num dos carros e levaram-me para uma
unidade militar onde me mantiveram incomunicável. Só depois de
três dias e meio inteirei-me do que havia sucedido.
No próprio sábado, dia 22, em que fui sequestrado, foram a minha
casa, rebentaram as portas, vasculharam tudo à procura de provas para
ver a quem estava ligado. Cinco dias depois prenderam outros militares, entre
eles os três coronéis. Três semanas depois começaram
os julgamentos, falava-se em Conselho de Guerra e se isso fosse por diante
seríamos condenados a 16 anos de cadeia. Os coronéis declararam
então que tinham ido cumprir uma ordem do comando militar. Isso para mim
foi terrível pois comprovei que tínhamos sido traídos,
enganados, que os coronéis não tinham ido juntar-se a nós
mas sim cumprir ordens. Foi um despertar terrível pois realmente
perdeu-se uma oportunidade histórica para realizar mudanças
profundas no Equador.
Definitivamente, o que depois se passou no nosso país foi uma
mudança de nomes, nada mais, porque continuou a tendência deste
modelo mas com uma velocidade ainda maior e a dolarização que
quisemos evitar acabou por ser adoptada. Agora, eu não sei se houve um
complô entre os três coronéis e o general Mendoza para
entregar-lhe o poder ao então vice-presidente Noboa ou se o plano era
apenas para que ficasse o general e esse traiu os coronéis. Isso ainda
não foi esclarecido. A meu ver, o general Mendoza quis ficar no poder,
pois inclusive leu um documento em que as Forças Armadas tomavam conta
dos três poderes do Estado. O que se passa é que, com a
rejeição popular e mais as pressões que, soube-se depois,
Mendoza recebeu por telefone dos Estados Unidos, ele encolheu-se, acovardou-se
e cedeu.
- Qual a concepção ideológica que vos motivou a participar
neste movimento?
- A concepção ideológica foi de tendência
nacionalista, progressista, humanista, justicialista, revolucionária.
Porque não queremos que nossas empresas estratégicas sejam
vendidas. Não queremos perder a nossa soberania monetária.
Estamos contra o compromisso do Equador com o Plano Colômbia. Estamos
contra o facto de a nossa soberania ser manchada pela base norte-americana de
Manta. Estamos contra a grande corrupção que existe no Governo.
Foi tudo isso que motivou a participação dos militares, de
coronéis para baixo.
- Como continuar este processo?
- No 21 de Janeiro tínhamos duas opções. A primeira era
reprimir o povo, manchando nossas mãos de sangue, com o que
continuaríamos no Exército, eu teria ido para adido militar nos
Estados Unidos, teria chegado a general
A segunda opção era
unirmo-nos ao povo.
Estivemos presos seis meses e por pressão do povo que se manifestava e
fazia marchas, saímos em liberdade. Fomos amnistiados, mas afastados do
Exército por pressões, sobretudo, da hierarquia
guayaquilenha.
Houve ainda pressões para riscar da Academia Militar matérias
como Realidade Nacional, Análise Política, Análise
Económica (não sei se isto já foi concretizado) porque
alguns dirigentes da direita, entre os quais o ex-presidente Febres Cordero,
diziam que foi por nos terem ensinado essas matérias que nos
tínhamos aproximado do povo e, deste modo, era melhor retirá-las.
Queriam transformar-nos novamente em robôs, para que cumpríssemos
ordens sem ver os efeitos do cumprimento dessas ordens.
Uma vez em liberdade, teríamos igualmente duas opções.
Ficarmos em casa ou continuar a luta. Escolhemos uma vez mais o caminho mais
difícil.
Iniciamos uma série de reuniões com movimentos sociais. E nelas
apercebemo-nos de certas divisões e não de uma estabilidade
ideológica. Há gente da direita que através do seu
dinheiro mantém em luta movimentos sindicais, movimentos sociais e,
também, o próprio movimento indígena.
Assim, nós os militares que participamos no 21 de Janeiro e fomos
afastados do Exército, decidimos formar um movimento independente com
carácter democrático, humanista, justicialista, integracionista,
fundamentalmente, nacionalista e também revolucionário.
E a esse movimento uniram-se uma série de civis, igualmente
democráticos e progressistas, como estudantes, professores
universitários, trabalhadores, indígenas, mulheres, jovens. E o
nosso movimento foi-se ampliando.
A ideia é chegar ao poder para refundar o Equador, cimentando-o em
valores éticos, morais, cívicos e, sobretudo, com justiça
social, recuperando a nossa soberania ofendida. E, uma vez que nos consolidemos
como equatorianos, começaremos a irradiar com força para outras
nações na direcção da unidade
latino-americana
É esse o nosso objectivo último.
Encontramo-nos nesse processo de refundar o Equador, para o qual a tomada do
poder não é mais do que um mecanismo, um instrumento para lograr
tal objectivo.
- Que repercussões teve no Exército a guerra com o Peru?
- Sendo certo que nas Forças Armadas não estivemos de acordo com
a solução do conflito porque continuamos a pensar que fomos os
prejudicados, quando fazíamos uma análise mais profunda
dizíamos às pessoas que o nosso problema não é com
o Peru, não é com a Colômbia, que o inimigo do Equador e da
América Latina está noutro lado. O nosso inimigo é o
inimigo de todos os latino-americanos, o neoliberalismo, a tendência
capitalista. E, inclusive, o nosso inimigo está no interior do
próprio país, são todos esses politiqueiros corruptos que
permitiram que nos desnacionalizassem, que começassem a roubar a nossa
identidade, nossos costumes, nossas raízes, nossa moeda, alienando-nos a
partir de outros costumes, outras raízes, outras
tradições. Nisso somos muito claros: o inimigo está noutro
lado e esteve a distrair com outras pequenas lutas para que siga
avançando a neocolonização, especialmente por parte dos
Estados Unidos.
- Dentro dos seus objectivos manifesta-se a oposição ao Plano
Colômbia.
- Temos manifestado uma oposição tenaz a que o Equador se envolva
no Plano Colômbia porque pensamos que é uma matança
desnecessária, um genocídio, o que vai suceder na Colômbia.
O problema do narcotráfico, na nossa concepção, sendo um
problema de tipo social e económico, deveria exigir uma
solução de tipo social e económico e não a uma
acção militar. Em segundo lugar, acreditamos que, como todos os
povos, a Colômbia tem direito à sua
autodeterminação. O Equador poderia colaborar para que o problema
se solucione de forma pacífica, respeitando os princípios da
não-intervenção e da autodeterminação.
Poderíamos fazer parte de um conjunto de países que garanta um
processo de paz em que se comprove, inclusive no próprio terreno, as
mútuas acusações que se fazem. Dizem que as FARC têm
ligações com o narcotráfico, bem, haveria que comprovar
isso no terreno. Diz-se que as Autodefesas Unidas de Colômbia são
um braço armado do governo colombiano, pois também haveria que
comprovar isso no terreno. Temos também feito apelos para uma
mobilização das consciências a nível mundial de modo
a parar o Plano Colômbia e colocar os Estados Unidos a conversar. Se
como eles dizem o objectivo central é acabar com o
narcotráfico, há outras formas.
Nós entendemos que o Plano Colômbia visa terminar com o movimento
revolucionário colombiano e, uma vez radicado ali, visa neutralizar os
movimentos revolucionários de toda a América Latina, como os dos
índios, dos camponeses, dos intelectuais e dos militares nacionalistas e
patriotas que trazem ideias para solucionar os problemas sociais,
políticos e económicos fora do neoliberalismo. É nesse
sentido que caminham os Estados Unidos e não para terminar com o
narcotráfico.
E também, como se aproxima a questão do ALCA para 2005, eles
querem chegar numa posição geoestratégica,
geopolítica e geoeconómica vantajosas relativamente aos seus
adversários económicos, como a Alemanha e o Japão, porque
se a situação se mantiver como está eles não
vão manter o controlo.
Acabando com os movimentos revolucionários e neutralizando os movimentos
sociais, eles poderiam então consolidar a sua hegemonia política,
económica e militar no continente americano e assim o ALCA não
teria qualquer obstáculo.
Os problemas adicionais para o Equador verificam-se na zona fronteiriça:
onde diminuiu a actividade económica com a Colômbia diminuiu o
turismo e aumentaram a delinquência e os problemas sociais. Por tais
razões nos opomos e por tais razões nos perseguem e nos
hostilizam permanentemente.
- Que conceito tem sobre a revolução cubana?
- Cuba é um exemplo de resistência para todos os povos do mundo.
Basta mencionar que em Cuba não há analfabetos e ver como vai a
medicina e o sistema de saúde naquele país.
- A unidade latino-americana é o objectivo final do movimento. Como se
constrói essa unidade?
- Eu digo sempre que a integração latino-americana é algo
que tem que acontecer. É como quando se lança um objecto, ele tem
que cair. Passar-se-ão quatrocentos ou quinhentos anos mas num dado
momentos nos uniremos. A integração teria que começar
reconstruindo a Grande Colômbia. A nossa contribuição seria
a de ganhar tempo ao tempo. Não esperar os quatrocentos anos, mas tratar
de fazê-lo já, para começarmos nós próprios a
usufruir dos benefícios da integração.
Creio que processos como o Mercosul ou a comunidade andina de
nações são passos em frente, mas passos muito pequenos,
pois se trata de uma unidade de tipo mercantilista e o que nós
pretendemos vai muito mais além. Nós falamos de uma
integração política, económica, militar, social.
Realizar os sonhos de Bolívar, de San Martin, de Artigas.
Almejar uma pátria única que comece no Rio Grande e acabe na
Terra do Fogo.
Como conseguir isso? Primeiro, mostrando e apoiando governos como o de
Chávez, e oxalá que a nossa tendência também
triunfe. E apoiar os movimentos existentes na América Latina. Isso nos
dá mais força, porque sabemos que não somos os
únicos que estamos a lutar. O que é um estímulo.
Creio que um caminho para lograr essa integração é
através de consulta popular, perguntando aos nossos compatriotas se
querem ou não uma integração total com as outras
nações latino-americanas. Creio que uma grande percentagem
responderia positivamente, pois acredito que há muito mais coisas que
nos unem e são pouquíssimas as que nos diferenciam. E isso
também facilita a unidade.
Porque fracassaram tentativas anteriores? Creio que nos faltava difusão,
esclarecimento, espaços de reunião. Essas reuniões
são um avanço nesse sentido, o encontro de juventudes que se
realizará na Argélia pode ser um bom passo. Para os
latino-americanos, o Congresso Bolivariano é uma base nessa
direcção. Pouco a pouco ganharemos espaço.
- Fala no papel do Exército nesse projecto popular e de unidade
latino-americana, mas a situação militar não é
igual em todos os nossos países.
Haveria que tomar contacto com os militares, em princípio com os que
estão na reserva e, logo em seguida, com os que estão no activo.
Porque os militares não são inimigos dos movimentos progressistas
e vice-versa. O que se passa é que nos alienaram. Nos Exércitos
latino-americanos metiam-nos na cabeça que os estudantes são
inimigos da nação, que os indígenas são inimigos do
Estado, que os trabalhadores são inimigos
Então, face a uma
greve ou a um levantamento, saía o Exército. Deste modo nos
instruíram, deste modo nos alienaram. E é difícil romper
com esse sistema desde dentro.
Alguns militares deram-se conta disso quando passaram à reserva, mas
já era tarde. Há que tratar de dar conferências nas
academias de formação dos militares, fazer reuniões,
discutir esses temas, que não são nenhum tabu. Em definitivo,
temos o mesmo objectivo: os militares querem o melhor para o seu país e
os movimentos progressistas também. Acontece que vamos por caminhos
distintos e então, os títeres do neoliberalismo logram afastar o
povo do Exército. A diferença entre as forças armadas do
Cone Sul e as equatorianas é que no Equador os militares arrancaram as
vendas dos olhos. Mas os militares não são os inimigos do povo,
estão alienados, estão doutrinados.
Para finalizar, creio que na América Latina estamos num enquadramento
similar ao de 1800, ao período da nossa independência. Vivemos um
momento histórico e temos a obrigação de lhe dar sentido e
direcção para consolidar uma segunda e definitiva
independência.
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Publicado em "Cuadernos para la Emancipación", nº 22.
Tradução de João Ogando.
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