Os índios e o poder estatal

Depois da Bolivia, o Equador

por Raúl Zibechi [*]

As diferentes nacionalidades unem-se para lutar por espaços de poder, ou talvez pelo próprio poder O vigor do movimento indígena equatoriano, quiçá o movimento social mais sólido do continente, está na origem do êxito eleitoral do coronel Lúcio Gutiérrez.

A votação obtida pela candidatura de Lúcio Gutiérrez no Equador mostra que não estamos perante uma ficção: um amplo e pujante movimento social varre todo o continente. Após a excelente votação obtida pelo Movimento para o Socialismo na Bolívia, que propunha para a presidência o dirigente cocalero Evo Morales, os resultados no Brasil e no Equador confirmam essa tendência.

Nesses três casos deparamos com candidaturas que, de algum modo, expressam a irrupção de novos actores sociais que não se ajustam às estruturas tradicionais da esquerda política, e que nem sequer podem ser enquadradas nos aparelhos sindicais. Ainda que os três apresentem notáveis diferenças, sendo que no Brasil se verifica um padrão mais tradicional, podem contudo verificar-se importantes semelhanças.

Tanto no Equador como na Bolívia existem poderosos movimentos de base que colocaram em xeque as elites dominantes e os poderes e instituições que as sustentam. Os cocaleros e os camponeses bolivianos fizeram enormes mobilizações nos últimos anos, alcançando êxitos importantes como o registado nas rebeliões de Cochabamba em Abril e Outubro do ano passado, que obrigaram o Estado a negociar as reivindicações com os insurrectos. O movimento social boliviano, derrotado na década de oitenta em virtude da dura política de ajuste financeiro, que provocou o encerramento massivo das minas onde radicava a força do movimento operário, foi capaz de se reestruturar nos anos noventa em novas bases sociais e organizativas. O enfraquecimento da pequena classe operária boliviana foi sustido graças à erupção de um poderoso movimento indígena e camponês e, depois, engrossado por sectores urbanos afectados pelo modelo capitalista, sobretudo os ligado à economia informal, as mulheres e os pobladores . Ao contrário do período anterior, as organizações que desenvolveram algumas das lutas mais importantes foram lideradas por entidades coordenadoras ou por lideranças indígenas renovadas.

Em ambos os casos se trata de estruturas muito mais flexíveis que as rígidas burocracias sindicais, que caracterizaram o último meio século de história social boliviana, desde a revolução de 1952.

DA TERRA À NACIONALIDADE

A década de 1990 começou no Equador com o levantamento índio de Inti Raymi, assim denominado porque coincidiu com a Festa do Sol andina. Durante toda uma semana, as comunidades serranas cortaram estradas, cercaram cidades, encerraram mercados e irromperam na capital, Quito. Luís Macas, então dirigente da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), criada em 1986, assinalou que foi aquela a primeira vez que os índios se tornaram visíveis para os poderes dominantes.

Com efeito, as elites crioulas criaram um Estado-nação que marginalizava as maiorias indígenas, que constituem cerca de metade da população do país. Aos índios eram negados direitos fundamentais: o acesso às suas terras ancestrais e à educação na sua própria língua. Numa palavra, não existiam enquanto povo.

Até meados da década de oitenta, vai frutificando um longo processo de unidade entre as etnias da selva e da região costeira, com a formação da CONAIE. Nessa altura, as comunidades tinham recuperado, numa discreta mas intensa luta, uma boa parte das suas terras e tinham já reconstruído os chamados «territórios étnicos», amplas regiões em que são maioritários e que coincidem com as que ocupavam antes da conquista. Ao recuperarem uma boa parte das suas terras originárias, os índios encontraram-se em condições de dar um passo em frente: formularam um projecto de Estado plurinacional, sendo esta a sua reivindicação principal.

Durante a última década, o movimento indígena equatoriano protagonizou as mais importantes lutas no continente. Vários levantamentos colocaram o movimento social no centro da cena política, numa ofensiva permanente que desembocou no derrube de dois presidentes em consequência da mobilização social pacífica (Abdalá Bacaram em 1997 e Jamyl Mahuad e, 2000). Além disso, as comunidades criaram um instrumento político, o Movimento Pachakutik, que desde 1986 controla numerosos municípios e conta com vários deputados e senadores.

Mas as negociações com as instituições resultaram sucessivamente infrutíferas perante a intransigência das elites. Entre 1996 e 1998 os acordos firmados com os sucessivos governos — desde o reconhecimento das nacionalidades índias e do Equador como país multi-étnico e plurinacional até à incorporação, na constituição, dos «direitos colectivos» — caíram em saco roto. Cada acordo era ignorado pelos poderes instituídos, sendo as suas conquistas afinal tão invisíveis como eram os próprios índios antes do levantamento de 1990.

Essas frustrações consecutivas levaram à revolta de Janeiro de 2000, em aliança com sectores intermédios das forças armadas. Pela primeira vez, no mundo indígena, falava-se em tomada do poder. Foi um estremeção que ainda hoje provoca debates. Devem os movimentos índios lutar por espaços de poder ou pelo próprio poder? Ainda não há acordo sobre isso, se bem que as bases tendem a retomar as velhas consignas de continuar a construir o seu mundo paralelo ao dos de cima. Agora, face ao provável triunfo de Gutiérrez, sem dúvida devido ao voto das nacionalidades indígenas, o debate de fundo sobre o que fazer face a essa alheia e estranha instância, que tem um nome (Estado) que nem sequer existe nas línguas originais, volta a estar na ordem do dia.

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[*] Jornalista uruguaio. Publicado no semanário Brecha de 25/Out/02.
Tradução de João Ogando.


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31/Out/02