A moralidade da especulação

por ASPO [*]

. Os preços do petróleo atingiram outra vez o patamar dos US$ 30, que está bem acima dos custos de produção. Em anos passados, a especulação (profiteering) era encarada como imoral, se não mesmo ilegal. No fim da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, muitos governos europeus impuseram controles de alugueres aos senhorios e medidas de segurança para os inquilinos a fim de impedir os proprietários de explorarem "incorrectamente" a escassez de habitação. Nestes dias, a União Europeia movimenta-se para impedir que certas empresas aproveitem do controle que têm de um mercado particular. Mesmo os Estados Unidos, em "roda-livre", aprovaram legislação anti-trust.

Num certo sentido, os economistas da terra plana (flat-earth) ressentem-se dessa intrusão no mercado livre, ainda que outros aceitem-na argumentando que o monopólio ou a escassez constituem uma distorção ao mercado livre, no qual eles mantêm uma fé inabalável pois consideram-no o caminho para a eterna virtude. Mas na prática os governos movimentam-se amplamente para interferir com o mercado livre. Há regime fiscais escalonados que penalizam os ricos. É permitido às empresas que lancem determinadas despesas como um custo para abater ao rendimento imponível, proporcionando enormes benefícios ocultos e distorções. A valorização do capital é menos gravada por impostos do que o rendimento. O combustível é fornecido livre de impostos para as companhias de aviação.

Mas em tempos de fartura, o economista da terra-plana é suficientemente bem alimentado para ignorar estas intrusões menores, confiante em que a sua mão enluvada continuará a exercer um controle sinistro sobre os políticos que estabelecem as regras. Contudo, os anos iniciais deste século viram novas tensões a surgirem directa e indirectamente daquilo que poderia ser descrito como a especulação da escassez — escassez de petróleo. Ela é imposta pelo facto de que o petróleo é um combustível fóssil finito formado no passado geológico, de modo que nenhuma força de mercado pode alterar a dotação da Terra.

Três reacções alternativas ao problema sugerem-se por si próprias. Duas delas conduzem a benefícios a curto prazo para diferentes facções, mas as leis imutáveis da Natureza acabam por levar a um desenlace comum.

A primeira abordagem é deixar os governos de países produtores de petróleo do Médio Oriente controlarem os seus activos nacionais a fim de explorá-los como entenderem melhor. Por volta de 2010 eles estarão a fornecer cerca de 40% do petróleo mundial, dando-lhes ampla oportunidade para especular com o controle desta mercadoria escassa e essencialmente insubstituível. Se os preços do petróleo ascenderem em consequência, isto envolveria transferências financeiras maciças para o Médio Oriente a fim de serem gastas com armas e de serem reinvestidas no mundo capitalista industrializado, conduzindo a uma correspondente transferência de propriedade. Se é verdade que isto proporcionaria um benefício a curto prazo aos países do Médio Oriente, ou melhor, àqueles que os controlam, esta alternativa deixaria os povos menos preparados para o inevitável declínio deste imerecido rendimento baseado no petróleo, quando o esgotamento também os atingir na devida altura.

A segunda abordagem é invadir o Médio Oriente e fazer subir a produção, inundando o mundo com petróleo barato de modo a dar um impulso às economias dos conquistadores. Mas esta é também uma solução de curto prazo, pois deixa-os menos preparados para as inevitáveis consequências do esgotamento. Ao aumentar a produção, eles elevarão e avançarão no tempo o pico global de produção, e através disso o declínio será mais abrupto o que tornará uma situação que já é má ainda pior. Assim, o povo sofredor do Médio Oriente daria a última risada porque eles teriam sido forçados antes a aprender a sobreviver sem a renda imerecida da especulação com o petróleo.

A terceira abordagem é os países importadores cortarem as suas importações de modo a se adaptarem à taxa de esgotamento mundial, que agora anda em cerca de 2,5% por ano. O preço mundial do petróleo permaneceria então suficientemente baixo num razoável relacionamento com os custos reais de produção. Isto permitiria aos países pobres a que pelo menos obtivessem abastecimentos modestos a um preço que poderiam pagar. Isto certamente entraria em conflito com os preceitos do mercado livre, o qual basicamente procura o seu empobrecimento, mas talvez tal abordagem pudesse ser tolerada com base em considerações humanitárias. Os países importadores poderiam administrar sua porção de modos alternativos conforme suas inclinações e orientações políticas. Eles poderiam leiloar o abastecimento disponível aos mais altos lances de acordo com os princípios do mercado livre, ou poderiam cortar a procura através da elevação de impostos sobre o petróleo (com a correspondente redução de outros impostos), ou poderiam ainda racionar a oferta disponível de modo a que mesmo os menos privilegiados pudessem ter uma fatia, ou finalmente poderiam operar uma combinação destes métodos.

Ao reduzirem a oferta interna, os países importadores estimulariam os seus povos tanto a evitar o desperdício como a desenvolver energias renováveis, inclusive o nuclear seguro. Mais importante: força-los-ia a adaptar os seus estilos de vida de modo a conformarem-se melhor aos constrangimentos de recursos e ambientais do planeta em que vivem.

Clique para ampliar. Vale a pena recordar que em algum ponto no futuro os três caminhos alternativos convergem, pois a oferta de petróleo diminui devido ao esgotamento, pouco importando quem detenha o controle, a administração ou a propriedade. Sob condições óptimas, a produção por volta de 2050 terá caído aproximadamente ao nível em que estava 100 anos antes.

Aqueles que acreditam que o Homem tem algum lugar especial dado por Deus sobre o Planeta devem certamente planear um sucessor para a subespécie Hydrocarbon Man, a qual estará virtualmente extinta no fim do século. Planeamento é anátema para a seita da terra-plana, a qual acredita na sobrevivência darwiniana do mais apto, mas isto também significa a extinção do menos apto, o que pode incluir a eles próprios.

[*] Association for the Study of Peak Oil and Gas (ASPO) .
O original encontra-se na ASPO Newsletter nº 33, Setembro/2003. O seu título é "The morality of profiteering", que também poderia ser traduzido por "A moralidade da ganância". A palavra profiteering não tem uma tradução exacta em português. Refere-se a super-lucros obtidos através da venda a preços extorsivos de produtos que foram açambarcados por um ou poucos vendedores [NT, JF].


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

02/Set/03