O petróleo, a moeda divisa e a guerra ao Iraque
Não é novidade para ninguém que os EUA dominam o mundo
economicamente e militarmente. Mas os mecanismos exactos pelos quais foi
estabelecida e mantida a hegemonia americana talvez sejam menos bem entendidos
do que poderiam sê-lo. Uma ferramenta utilizada para este efeito tem
sido o dólar, mas a sua eficácia recentemente ficou
ameaçada quando a Europa introduziu o euro.
O dólar é de facto a divisa de reserva do mundo: a divisa
americana representa aproximadamente dois terços de todas as reservas de
câmbio oficiais. Mais de quatro quintos de todas as
transacções estrangeiras e metade de todas as
exportações mundiais são denominados em dólares.
Além disso, todos os empréstimos do FMI são denominados em
dólares.
Mas quanto mais dólares existem a circular fora dos EUA, ou investidos
por possuidores estrangeiros em activos americanos, mais o resto do mundo tem
de fornecer aos EUA bens e serviços em troca destes dólares.
Para os EUA, produzir dólares não custa quase nada. Assim, o
facto de que o mundo utiliza a divisa desta forma significa que os EUA
estão a importar vastas quantidades de bens e serviços
virtualmente gratuitos.
Uma vez que muitos dólares possuídos por estrangeiros não
são gastos com bens e serviços americanos, os EUA são
capazes de manter um enorme défice comercial ano após ano sem
aparentemente quaisquer consequências económicas maiores. Os
números publicados mais recentes mostram, por exemplo, que em Novembro
de 2002 as importações americanas foram de um valor 48% superior
às importações
[1]
. Nenhum outro país pode manter um défice comercial tão
grande impunemente. Os media financeiros informam-nos que os EUA estão
a actuar como o 'consumidor de última instância' e a
implicação disto é que nós lhe deveríamos
ficar gratos. Mas uma descrição mais esclarecedora deste estado
de coisas seria dizer que está a obter um empréstimo
maciço e sem juros do resto do mundo.
Se a posição dos EUA pode parecer invulnerável,
dever-se-ia recordar que quanto mais se tem mais se tem a perder. E
recentemente tem havido sinais de como, pela primeira vez desde há
muito, os EUA podem estar começando a perder.
Um dos objectivos declarados, e talvez o objectivo primário, ao
estabelecer o euro era converte-lo numa divisa de reserva a fim de desafiar o
dólar de modo a que a Europa também pudesse obter alguma coisa em
troca de nada.
Isto, contudo, seria um desastre para os EUA. Não só eles
perderiam uma grande parte do seu subsídio anual de bens e
serviços efectivamente gratuitos, como a mutação dos
países das reservas dólar para reservas euros deitaria abaixo o
valor da divisa americana. As importações começariam a
custar aos americanos um bocado mais e na medida em que um número cada
vez maior de possuidores de dólares começasse a gastá-los,
os EUA teriam de começar a pagar as suas dívidas com o
fornecimento de bens e serviços a países estrangeiros, reduzindo
assim os padrões de vida americanos. Na medida em que os países
e os negócios convertessem os seus activos em dólares para
activos em euros, a propriedade americana e a bolha do mercado de
acções sem dúvida arrebentaria. A Reserva Federal
não poderia mais imprimir dinheiro para reinflar a bolha, como
está actualmente considerando fazer, porque, sem montes de estrangeiros
ávidos desejosos de absorve-los, isto resultaria numa
inflação séria a qual, por sua vez, tornaria os
estrangeiros ainda mais relutantes em possuírem a divisas americana e
assim agravar-se-ia a crise.
Há no entanto um grande obstáculo para que isto aconteça:
petróleo. O petróleo não é apenas de longe a mais
importante mercadoria
(commodity)
comerciada internacionalmente, é o sangue de todas as modernas
economias industrializadas. Quando não se tem petróleo,
há que comprá-lo. Até recentemente todos os países
da OPEP concordavam em vender o seu petróleo apenas por dólares.
Enquanto isto assim aconteceu, era improvável que o euro se tornasse a
principal divisa de reserva: não há interesse em acumular euros
se todas as vezes em que for preciso comprar petróleo for preciso
trocá-los por dólares. Esta disposição
também significava que os EUA efectivamente controlavam todo o mercado
mundial do petróleo: só se pode comprar petróleo se se
tiver dólares, e só um país tem o direito de imprimir
dólares os EUA.
Se, por outro lado, a OPEP decidissem aceitar somente euros pelo seu
petróleo (assumindo por um momento que lhe fosse permitida tomar esta
decisão), então a dominação económica
americana estaria ultrapassada. Não só a Europa não
necessitaria mais de tantos dólares, como o Japão, que importa
80% do seu petróleo do Médio Oriente, pensaria que seria
sábio converter uma grande porção dos seus activos em
dólares em activos em euros (o Japão é o maior subsidiador
dos EUA porque possui muitos investimentos em dólar). Os EUA, por outro
lado, sendo o maior importador do mundo de petróleo teria, para manter
um excedente comercial, de adquirir euros. A conversão do défice
comercial para o excedente comercial teria de ser alcançada num momento
em que os preços das suas propriedades e das acções no
mercado estariam em colapso e os seus abastecimentos internos de
petróleo e gás estariam a contrair-se. Seria uma penosa
conversão.
Os argumentos puramente económicos para a OPEP converter-se ao euro,
pelo menos por algum tempo, parecem muito fortes. A Zona euro não
mantém um enorme défice comercial nem está pesadamente
endividada para como o resto do mundo como os EUA e as taxas de juro na Zona
euro também são significativamente mais elevadas. A Zona euro
tem uma fatia maior do que os EUA no comércio mundial e é o
principal parceiro comercial do Médio Oriente. E quase tudo o que se
possa comprar com dólares pode-se comprar também com euros
excepto, naturalmente, o petróleo. Além disto, se a OPEP fosse
converter os seus activos em dólares para activos em euros e a seguir
exige-se o pagamento pelo petróleo em euros, os seus activos
imediatamente aumentariam de valor, pois os países importadores de
petróleo também seriam forçados a converterem parte dos
seus activos, levando os preços para cima. Para a OPEP, apoiar o euro
seria uma profecia auto-cumprida. Eles poderiam então em algum momento
posterior mover-se para alguma outra divisa, talvez novamente para o
dólar, e obter mais uma vez enormes lucros.
Mas naturalmente isto não é uma decisão puramente
económica.
Até agora apenas um país da OPEP ousou mudar para o euro: o
Iraque, em Novembro de 2000
[2, 3]
. Há pouca dúvida de que isto foi uma tentativa deliberada de
Saddam para responder ao golpe dos EUA, mas em termos económicos
verificou-se que isto também foi um enorme êxito: no momento da
conversão do Iraque o euro valia cerca de 83 centavos de dólar e
agora vale mais de US$ 1,05. Entretanto, pode haver outras consequências
quanto a esta decisão.
Um outro país da OPEP desde 1999 tem estado a falar publicamente acerca
da possível conversão para o euro: o Irão
[2, 4]
, um país que desde então foi incluído no 'eixo do mal' de
George W. Bush.
Um terceiro país OPEP que recentemente teve atritos com o governo dos
EUA é a Venezuela e ela também tem estado a mostrar deslealdade
para com o dólar. Sob o governo de Hugo Chavez, a Venezuela estabeleceu
acordos de permuta
(barter)
para comercializar o seu petróleo com 12 países
latino-americanos inclusive Cuba. Isto significa que os EUA está
perdendo o seu subsídio habitual e pode ajudar a explicar o desejo
americano de derrubar Chavez. Na cimeira da OPEP em Setembro de 2000, Chavez
leu aos chefes de Estado da OPEP o relatório do "Seminário
internacional sobre o futuro da energia", uma conferência convocada
anteriormente por Chavez naquele ano para examinar tanto a futura oferta de
energias fósseis como de renováveis. Uma das duas
recomendações chave do relatório era que a 'OPEP
aproveitasse a permuta electrónica de alta tecnologia e as trocas
bilaterais do seu petróleo com os seus clientes dos países em
desenvolvimento'
[5]
, isto é, a OPEP deveria evitar a utilização tanto do
dólar como do euro para muitas transacções.
Em Abril de 2002 um alto representante da OPEP pronunciou um discurso
público na Espanha durante da presidência espanhola da UE no qual
tornou claro que a OPEP ainda não tem planos para tornar o
petróleo disponível por euros, era uma opção que
estava a ser considerada e que poderia bem trazer benefício
económico a muitos países OPEP, particularmente aqueles do
Médio Oriente
[6]
.
Como a produção de petróleo agora está em
declínio na maior parte dos países produtores de petróleo,
a importância dos grandes produtores remanescentes, particularmente
aqueles do Médio Oriente, está destinada a tornar-se cada vez
maior nos próximos anos
[7]
.
O Iraque, cuja produção de petróleo foi severamente
reduzida pelas sanções, é um dos poucos países que
podem ajudar a acalmar esta escassez ameaçadora de petróleo. A
Europa, como a maior parte do resto do mundo, quer ver uma
resolução pacífica das actuais tensões
americano-iraquianas e um levantamento gradual das sanções
isto certamente serviria melhor aos seus interesses. Mas como o
petróleo do Iraque está denominado em euros, permitir que isto se
tornasse generalizado neste momento poderia aliviar o estrangulamento do
dólar e possivelmente fazer mais dano do que bem para a saúde da
economia americana.
Tudo isto são más notícias para a economia americana e
para o dólar. O medo de Washington será não só que
o preço futuro do petróleo não seja o correcto como
também que a divisa possa não ser a correcta. O que talvez
explique porque os EUA estão a voltar-se cada vez mais para a sua
segunda grande ferramenta de dominação dos negócios
mundiais: a força militar.
REFERÊNCIAS
1. Anon., 'Trade Deficit Surges to a Record High', Reuters, (January 17, 2003),
http://www.centredaily.com/mld/centredaily/news/4970891.htm
.
2. Recknagel, Charles, 'Iraq: Baghdad Moves to Euro', Radio Free Europe
(November 1, 2000),
http://www.rferl.org/nca/features/2000/11/01112000160846.asp
.
3. Anon., 'A Look At The World's Economy', CBS Worldwide Inc., (December 22,
2000),
http://www.cbsnews.com/stories/2000/12/22/2000/main259203.shtml
.
4. Anon., 'Iran may switch to euro for crude sale payments', Alexander Oil and
Gas, (September 5, 2002),
http://www.gasandoil.com/goc/news/ntm23638.htm
.
5. Hazel Henderson, 'Globocop v. Venezuela's Chavez: Oil, Globalization and
Competing Visions of Development', InterPress Service, (April 2002),
http://www.hazelhenderson.com/Globocop%20v.%20Chavez.htm
.
6. Javad Yarjani, 'The Choice of Currency for the Denomination of the Oil
Bill', (April 14, 2002),
http://www.opec.org/NewsInfo/Speeches/sp2002/spAraqueSpainApr14.htm
.
7. The Association for the Study of Peak Oil, Newsletter 26, (February 2003),
http://www.asponews.org
.
OUTRAS LEITURAS:
William Clark, 'The Real Reasons for the Upcoming War With Iraq: A
Macroeconomic and Geostrategic Analysis of the Unspoken Truth', (January 2003),
http://www.ratical.org/ratville/CAH/RRiraqWar.html
.
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[*]
Analista irlandês.
O original deste artigo encontra-se em
http://www.feasta.org/documents/papers/oil1.htm
. Tradução de J. Figueiredo.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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