Acerca da desregulamentação do sector eléctrico
por Ferdinand E. Banks
[*]
|
- Promover a competitividade, a transparência dos preços, o bom
funcionamento e a efectiva liberalização de todos os mercados
energéticos (electricidade, gás natural, combustíveis e
restantes derivados do petróleo).
- [Promover} mercados energéticos liberalizados, altamente competitivos,
com
mecanismos transparentes de fixação de preços e uma
regulação estável e bem aplicada
Ítens do Programa do XIX Governo Constitucional
|
No Verão de 2001, poucos meses antes dos ataques do 11/Set às
Torres Gémeas e ao Pentágono, fui convidado a ir a Hong Kong
como professor visitante e investigador universitário a fim de fazer
palestras sobre regulamentação e desregulamentação
no sector eléctrico.
A minha visita foi pelo menos parcialmente financiada por uma das mais
importantes companhias de energia eléctrica de Hong Kong e o que eles
queriam que eu fizesse era informar professores universitários,
jornalistas, estudantes, dançarinos, lunáticos e qualquer outra
pessoa com que eu entrasse em contacto de que a desregulamentação
eléctrica era uma loucura e um conceito impraticável que
acarretaria miséria para as vidas de muitos consumidores de
electricidade.
Isto precisa de alguma explicação. Por que é que uma
grande companhia de electricidade desejava que eu viajasse ao outro lado do
mundo para ridicularizar a desregulamentação eléctrica? A
resposta é que os directores daquela companhia sabiam que a
desregulamentação eléctrica era uma causa perdida ou, para
citar Jean-Paul Sartre, "um fogo sem amanhã".
Apesar de na Suécia, como em muitos outros países, não ter
feito qualquer diferença para os directores de companhias de energia, o
que se deve ao facto de que estavam preocupados basicamente em colocarem-se
numa posição em que pudessem apanhar o dinheiro e fugir. Exemplo:
a desregulamentação possibilitou que uma companhia de
electricidade sueca desviasse grande parte da sua atenção para a
Alemanha, onde ela se especializa em fazer afirmações absurdas
acerca do seu programa para um futuro "verde".
Na China as coisas são diferentes. Um fracasso da
desregulamentação em Hong Kong significa algo muito diferente de
um fracasso na Califórnia ou na Suécia. Na Suécia e em
muitos outros países, desregulamentações abortadas
resultam em artigos humilhantes em jornais ou revistas de negócios, mas
os pobres consumidores são deixados a ranger os dentes e
amaldiçoados. Por outro lado, em Hong Kong alguém importante pode
confrontar os executivos responsáveis pela desgraça, exigir uma
explicação, conversar com eles da maneira que os sargentos do
Exército americano falam com os recrutas e talvez pedir para examinar a
contabilidade e outros documentos de trabalho. Penso que não é
preciso contar-lhe como isto podia acabar, porque não é
prática do governo chinês aplaudir a incompetência.
Numa conferência sobre privatização efectuada na
Södertörn University, em Estocolmo, onde apresentei uma versão
mais dramática deste breve documento, uma jovem finlandesa muito
inteligente perguntou-me o que significava para mim um fracasso da
desregulamentação, ao que eu repliquei que era óbvio.
Fracasso da desregulamentação significa que aos consumidores e
às firmas são prometidos preços mais baixos e, ao
invés, os preços aumentam.
Isto pode ser dito de uma outra forma: a desregulamentação
eléctrica pode ter êxito em salas de seminários e em
conferências, mas o seu registo mostra que algo falhou miseravelmente no
mundo real. Uma análise extensa deste tópico pode ser encontrada
no livro do professor Lev S. Belyaev (2011).
Caso tenha esquecido, na Califórnia do Sul a
desregulamentação eléctrica levou ao aumento de 533% no
preço grossista da electricidade em cerca de oito meses. Um dos pontos
notáveis daquele fiasco foi o governo do estado da Califórnia
pagar milhares de milhões de dólares a firmas produtoras de
electricidade, com algumas destas firmas classificadas como "criminosos
fora do estado" pelo governador da Califórnia, Gray Davis, porque
elas jogaram contra o sistema ao pretenderem que não podiam fornecer
mais electricidade.
Ela fracassou na Austrália do Sul. Fracassou em quase todo estado dos
Estados Unidos da América onde foi tentada. No estado em que residi
anteriormente, Illinois, um responsável Kimery Vories
informou que a desregulamentação resultou no aumento do
preço da electricidade em 40%, de repente. Fracassou no Ontário e
em Alberta, no Canadá, e segundo Jeff Preley o povo em Alberta ainda
está a amaldiçoar o aumento do preço da electricidade que
teve de aceitar.
Como já observado, fracassou aqui na Suécia e como disse a
colegas e estudantes em Bangkok, a desregulamentação
eléctrica na Suécia parece significar que a maior companhia de
energia da Escandinávia foi premiada com uma licença dourada para
enlouquecer os consumidores de electricidade.
A desregulamentação eléctrica fracassou muito claramente
na Noruega, embora naquele país tenha sido acrescentada alguma
comédia ao processo. Considere-se a seguinte troca de comentários:
"O que vimos neste Inverno é que o mercado desregulamentado
funciona para as companhias eléctricas, mas não para os
consumidores".
-Hallgeir Langeland (Parlamento norueguês, 2003)
"Tenho de esperar ser um bode expiatório (pelo fracasso da
desregulamentação), mas o povo sabe que não pode culpar-me
por esta política".
-Einar Steensnaes (ministro norueguês da Energia, 2003)
Meu comentário a esta resposta engenhosa é que ninguém com
a cabeça no lugar o culparia, Einar. As pessoas a serem culpabilizadas
são os ultrajados consumidores de electricidade que lhe enviaram cartas
cheias de insultos e linguagem não diplomática, bem como aqueles
que questionaram a sua inteligência e as suas qualificações
para a posição que você mantinha quando o preço
"spot" da electricidade no seu país escalou num factor de
quase trinta durante um breve período.
Recordo ter dado um dos meu sermões contra a
desregulamentação em Lima (Peru) e felizmente saí daquele
país bem a tempo, porque quando eles iniciaram aquele experimento
imbecil foram disparados alguns tiros, tal como aconteceu na República
Dominicana. A desregulamentação fracassou no Brasil, onde Luiz
Travasso, executivo principal de uma grande companhia de energia afirmou que a
desregulamentação criaria mais problemas do que resolveria.
Você ouviu o que
eu
penso da desregulamentação, de modo que vamos agora voltar-nos
para algumas outras opiniões. O senador estado-unidense Ernest Hollings
bruscamente abandonou os pecadores da desregulamentação que o
haviam seduzido para os caminhos da "liberalização" e
começou a chamar-se a si próprio como um "regulador
renascido". Outro senador dos EUA, Byron Dorgan, foi mais
explícito. Ele colocou isto desta forma:
"Estou farto de ser reestruturado e desregulamentado, só para
descobrir que toda a gente fica rica e o resto do povo perde as suas
camisas!"
(
Financial Times,
22/Abril/2003). Uma manchete no
New York Times
(15/Julho/1998) dizia o seguinte: "Desregulamentação
promove a confusão em mercados de energia!" Pessoalmente, gosto
muito do julgamento do governador Gray Davis: "À mercê de
forças que não mostram qualquer misericórdia". O
governador Gary Locke do estado de Washington apresentou uma ideia importante
sobre as más notícias resultantes da farsa da
desregulamentação, concluindo que uma que foi o governo a causar
o sofrimento, cabia a ele curá-lo. E finalmente, mas não menos
importante, o congressista dos EUA Peter de Fazio colocou isto desta forma:
"Por que precisamos nós de passar através de um experimento
tão radical e cheio de risco?" Ele respondeu à sua
própria pergunta dizendo: "é porque há pessoas que
estão em vias de ganhar milhões ou milhares de
milhões!"
Finalmente, quando comecei a estudar regulamentação e
desregulamentação, o principal académico no campo era o
professor Alfred Kahn. Uma vez principiados os fracassos das
desregulamentação, ele emitiu a seguinte
declaração: "Estou preocupado acerca da
condição única dos mercados de electricidade. Sempre
estive incerto acerca da eliminação da integração
vertical. Pode ser uma indústria na qual funcione razoavelmente
bem".
Eu não estou nada preocupado com isso, senhoras e senhores, porque o meu
interesse neste tópico não é a integração
vertical. É, sim, a suprema importância da electricidade em
comparação com algumas outras opções
energéticas. Exemplo: pode haver substitutos passáveis para o
gás natural, mas tudo considerado não há
substitutos para uma oferta vasta de electricidade barata e confiável,
especialmente se estivermos a considerar países modernos e civilizados
cujos cidadãos e/ou eleitores estão preocupados acerca dos seus
futuros.
Perguntei à jovem economista finlandesa mencionada acima o que ela
preferia: a
escolha
que supostamente é um dos prémios da
desregulamentação eléctrica, e que um auto-proclamado
embora incompreensível perito acerca deste tópico como o
professor David Newbery pensa ser especialmente importante,
ou baixos preços da electricidade sustentáveis
? Infelizmente, ela foi incapaz de responder à minha pergunta, a mesma
que faço a todos os meus estudantes de economia da energia, o que me
levou a perceber mais uma vez que ainda tenho um grande trabalho a fazer quando
se trata de clarificar esta questão.
Referências
Banks, Ferdinand E. (2011).
Energy and Economic Theory.
Singapore, London and New York: World Scientific.
Belyaev, Lev S. (2011)
Electricity Market Reforms.
London, and New York; Springer
Ver também;
Crítica ao projecto global de privatizar e mercantilizar a electricidade
, Sharon Beder. 28/Set/05
Privatização e crise energética
,
La Jornada,
05/Nov/06
O apagão da racionalidade
, Paulo Metri, 20/Nov/09
Mentiras renováveis
, Demétrio Alves, 04/Jun/11
[*]
Professor na Universidade de Uppsala (Suécia). Palestras efectuadas na
conferência da privatização, Estocolmo, 16/Junho/2011,
Södertörn University, e na Stockholm School of Economics,
17/Junho/2011
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|