A avidez capitalista curtocircuita a rede eléctrica

por Deirdre Griswold [*]

Nova York às escuras no apagão anterior (1977). Flui instantaneamente de cidade a cidade, de estado a estado, de região a região, inclusive através das fronteiras nacionais. Onde há procura, penetra imediatamente. Onde não pode obter benefícios, retrai-se. Em certas ocasiões, o fluxo interrompe-se num momento crítico e surge uma crise. A complexa rede através da qual viaja, enriquece muitas empresas, mas apenas algumas poucas corporações gigantes dominam por completo o processo.

Não, não estamos a falar de electricidade. Falamos do Capital.

Para compreender porque, em 14 de Agosto, a rede eléctrica falhou mais uma vez em grande parte dos Estados Unidos, convém lembrar que isto é o mesmo que sucede à amplíssima riqueza social criada pelo trabalho colectivo de milhões de trabalhadores no país mais rico do mundo. Esta enorme riqueza foi empregue a criar a máquina militar mais moderna e poderosa que em qualquer outro bloco de nações do planeta e produziu uma classe de magnatas com activos maiores que os de muitos países.

Foi por isso que, em pleno século XXI, a distribuição de electricidade nos Estados Unidos sofreu um colapso monumental ?

Tal como o escândalo Enron e o colapso energético da Califórnia demonstraram, os capitalistas amealharam imensas fortunas, legal e ilegalmente, através da venda de electricidade como mercadoria.

Entre 1999 e 2000, a facturação total por serviços deste tipo aumentou 32% e os lucros por acção chegaram aos 11%. Apesar da estagnação do resto da economia, a média de recuperação dos investimentos em serviços energéticos é agora a maior já registada nos últimos dez anos. Os dividendos por serviços deste tipo são três vezes maiores que a média dos 500 do índice Standard & Poor.

Ao mesmo tempo, estas empresas não tiveram interesse em investir na actualização e melhoria da rede — a gigantesca e complexa linha que transporta os electrões dos grupos geradores aos consumidores. O investimento em transporte de energia é actualmente metade do que era há 10 anos.

Por isso, mesmo que exista excesso de capacidade na área de produção — suficiente para satisfazer os picos de procura — surgem estrangulamentos na área de transmissão. Os computadores que comandam o fluxo de electricidade através da rede, do vendedor ao comprador, estão programados para gerar avultados lucros — frequentemente à custa da eficiência e da conservação da energia. A electricidade é enviada a cada vez maiores distâncias, ainda que com perdas de potência pelo caminho.

Durante mais de um século, a disponibilidade fiável de energia eléctrica foi absolutamente indispensável ao crescimento do capitalismo norte-americano. Isto tornou-se dolorosamente claro para as classes dominantes durante a Grande Depressão, quando o afundamento de numerosas empresas energéticas contribuiu para a implosão da economia.

Tal e como muitos dos capitalistas fazem, então e agora, encantados por atacarem o Estado, os astutos representantes políticos dos grandes negócios na Administração Roosevelt tentaram resgatar do caos a sua própria classe, decretando um pacote de medidas que assegurariam o acesso à energia eléctrica através dos Estados Unidos a preços relativamente baixos, garantindo o lucro às empresas privadas da energia. Muitas destas empresas pertenciam a proprietários locais.

Contudo, o tremendo crescimento da procura de electricidade das últimas décadas estimulou o apetite do grande capital e aquela regulação tornou-se-lhe agora insatisfatória. Os seus grupos de pressão actuaram no sentido de obterem desregulamentações parciais em algumas áreas.

Enver Masud, que dirigiu o Estudo da Rede de Energia Nacional dos EUA em 1980, e o Estudo de Fiabilidade Eléctrica Nacional em 1981, para o Departamento de Energia norte--americano, escreveu em 18 de Agosto no Christian Science Monitor: “Em contrapartida, a desregulamentação foi mal denominada. O que realmente sucedeu foi que as novas leis e regulações foram aplicadas e um sistema bem comprovado, que favorecia a minimização de custos, foi substituído por outro, sem ter em conta que este favorecia a maximização de lucros. Também rompeu a obrigatoriedade de garantir uma fiabilidade completa do sistema”.

A mudança das normas tornou mais fácil encerrar as centrais eléctricas menos rentáveis, a separar a propriedade das centrais da das redes de transporte, e despedir em todo o processo grande número de trabalhadores. O controle da indústria passou de companhias menores às corporações de maior capacidade — e agora nas mãos de bancos e das empresas financeiras que estão por trás das mesmas.

QUEM SÃO OS DONOS DA INDÚSTRIA?
OS GRANDES BANCOS


“A maior força da indústria energética hoje em dia não são as grandes companhias de gás natural ou de energia eléctrica, mas sim os grandes bancos como Goldman Sachs, Morgan Stanley e Citigroup”, como recordava o New York Times de 19 de Agosto. Estas companhias de Wall Street movimentaram-se “agressivamente” dentro do mercado da energia, comprando centrais electroprodutoras, assinalava o Times, porque “os lucros em perspectiva são atractivos e a capacidade subtilizada... pode ser comercializada em mercados abertos de forma rentável”.

Quem tivesse um rádio de pilhas, podia ter escutado em Nova York, durante o apagão, a Radio Bloomberg, que se designa a si própria como ”a única Estação de Rádio Global do Mundo“. Sim, o presidente da municipalidade, Michael Bloomberg, o também milionário proprietário do império da comunicação e das notícias financeiras. Enquanto milhões de pessoas desesperavam, aquela estação de rádio dizia que a cidade enfrentava muito bem o apagão — referindo-se decerto ao seu presidente e aos outros funcionários.

Claro que Wall Street tinha de ser uma das zonas em que a energia foi restabelecida primeiro. As luzes de néon iluminavam Times Square 12 horas antes que milhões de residentes pudessem utilizar os seus frigoríficos, elevadores ou ventiladores. Ainda não se tinham ligado os semáforos em muitas zonas. O metro estava parado. As temperaturas subiam nos arranha-céus.

Em Detroit e Cleveland, milhões de pessoas enfrentavam outro problema perigoso, a juntar aos outros, que era o facto de o corte de energia ter deixado inutilizáveis as bombas de água. Mas em Wall Street, “os preços da energia ferveram na sexta-feira, no dia seguinte ao apagão, chegando a mais de US$ 1000 por Megawatt-hora, quando o preço médio rondava os US$ 100” ( New York Times , 19 de Agosto).

Os bancos e as empresas financeiras de Wall Street que haviam adquirido recentemente o negócio da energia tiveram um mês de Agosto brilhante.

Investiram esse dinheiro a reconstruir a rede energética? Apesar de todas as advertências quanto à possibilidade de um desastre, nada fizeram. Na realidade estão a repartir esses rendimentos entre proprietários e accionistas. A interpretação que os meios de comunicação deram do que se chamou o Grande Apagão de 2003, é que este se produziu pela falha da maquinaria capitalista em introduzir no processo de melhoria da rede eléctrica uma ferramenta para daí retirar vantagens — lucro. Esse é o “mantra” do capitalismo: se não é rentável, não faças. Certamente, em consequência do apagão, os políticos e os meios de comunicação exigirão maiores taxas de juro e apoios governamentais para custear novas e melhores linhas eléctricas. O secretário da Energia Spencer Abraham já apareceu na televisão a anunciar que provavelmente os consumidores irão ter de pagar 50 mil milhões de dólares de facturas adicionais pelo consumo de electricidade.

De qualquer modo, a sobrecarga de toda a nova construção recairá com todo o seu peso sobre a classe trabalhadora, especialmente sobre as comunidades negras, consumidores e contribuintes sem posses para pagar advogados caros, que lhes possam encontrar os buracos da lei. Além disso, a indústria criticará com mais força as leis de carácter ambiental, culpando-as de limitar a produção, ainda que o problema não seja esse.

OS DESASTRES SÃO CADA VEZ MAIORES

O recente corte de energia foi ainda pior que as maciças falhas de electricidade que pararam o Noroeste em 9 de Novembro de 1965, que paralisaram a cidade de Nova York em 13 de Julho de 1997 e que, no tórrido Verão de 1996, causaram apagões em 11 estados do Oeste, em Alberta e na Columbia Britânica no Canadá, e na Baixa Califórnia no México. Após aqueles desastres, efectuaram-se estudos do funcionamento da rede eléctrica. Formaram-se novas organizações — o Conselho de Fiabilidade Eléctrica do Norte da América foi a resposta da indústria depois de 1965 — e montaram-se mecanismos para isolar o problema na eventualidade de cortes. De maneira que não se esperava que novos apagões tornassem a ocorrer. No entanto, aconteceram e num dia em que os termómetros registavam 32º C — temperatura normal para esta época do ano. E desta vez afectaram um total de 50 milhões de pessoas nos Estados Unidos e no Canadá.

É possível que os capitalistas individuais não sejam muito inteligentes, mas têm muita gente inteligente a trabalhar para eles. A sua classe foi advertida repetidas vezes que o sistema de transporte da electricidade é antiquado e inadequado. E agora, novo colapso, que custou aos seus negócios milhares de milhões de dólares — sem contar com a desordem, os inconvenientes e o perigo a que expôs dezenas de milhões de famílias.

Contudo, para a classe dominante — tal como o antiquado sistema de controle de tráfico aéreo, que levou Nova York ao colapso uns dias depois do apagão, por causas não relacionadas — os custos reais do desastre parecem ser mais aceitáveis que a necessária revisão da infra-estrutura.

Tudo isto parece irracional, mas não devemos ater-nos à irracionalidade dos indivíduos e sim à irracionalidade de um sistema económico que se recusa a mudar, quando o mundo já mudou substancialmente. O capitalismo revolucionou os meios de produção durante os últimos 200 anos, mas não pode conciliar os interesses a longo prazo da Humanidade — composta na sua maioria de trabalhadores agora enredados na teia duma economia global — com a sua necessidade de obter lucros imediatos para uns poucos privilegiados.

Ironicamente, o seu desejo de rentabilidade cresce precisamente quando o sistema produz bens a preços baixos em quantidades crescentes. A crescente crise de superprodução conduz os administradores do capital a correr riscos acrescidos e a tomar decisões que podem melhorar o seus resultados momentâneos, ao mesmo tempo que aumenta o potencial de um desastre futuro.

Os políticos, de Bush a Bloomberg, teceram elogios à população pela sua calma e conduta ordeira durante o corte. Foi uma táctica, certamente, para distrair a atenção das causas e dos problemas e do seu próprio papel, tanto como pilares do capitalismo estadunidense, como responsáveis pelo delineamento da política pública.

Contudo, o que o povo trabalhador mostrou foi, sem dúvida, que não precisa dos Bush nem dos Bloomberg, nem dos proprietários das companhias eléctricas, nem tão pouco dos bancos. Demonstrou ter capacidade e habilidade para realizar bem o trabalho, qualquer que ele seja.

Os que clamam por uma maior regulação estatal da indústria energética esquecem quem são os donos do governo. Não apenas Halliburton ou Enron, mas também centenas de outras empresas ladras encarregaram-se de colocar a sua gente nas cadeiras do poder político. Quando as raposas cuidam do galinheiro, as galinhas acabam na panela.

À medida que o capitalismo se torne mais e mais disfuncional, é necessário encontrar forma de romper os laços da propriedade privada e unir a riqueza económica e o povo. Os Panteras Negras tinham uma palavra de ordem que conseguia sintetizar esta ideia: Power to the People (O Poder para o Povo).

O original encontra-se em http://www.workers.org/mo/es_electrica0904.html

(Copyright 2003, Workers World Service. Todos los derechos reservados. Permiso para reimprimir artículos dado si se cita la fuente. Para más información escriba a: Mundo Obreror/Workers World, 55 W. 17 St., NY, NY 10011; por e-mail: ww@workers.org . Web: http://www.workers.org)

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

08/Set/03