Para entender três fuzilamentos
Para entender os três fuzilamentos em Cuba é preciso à
partida reconhecer o carácter do Estado norte-americano, que
recentemente demonstrou no Iraque sua capacidade de criar um estado de
comoção colectiva internacional com suas falsas
acusações acerca de armas químicas e outras
"ameaças", só para descarregar sobre um país
indefeso todo o seu arsenal de "armas de destruição
maciça", primeiro propagandísticas e a seguir militares.
Já é evidente que isto foi outro típico filme americano
para justificar a derrubada de um governo e a ocupação de outro
país por razões ideológicas, militares e, sobretudo,
económicas.
Nesse contexto, sustentamos que:
Cuba, mais uma vez, encontra-se diante de uma tentativa imperial de criar
condições políticas para uma eventual
intervenção militar, e nesse âmbito há que analisar
a conduta dos delinquentes detidos e a resposta do governo.
Os factos que conduziram ao fuzilamento de três pessoas são
interessadamente deformados pela imprensa ocidental, que como sempre em
relação a Cuba parcializa a informação e
constrói a narrativa com padrões assimétricos. Ou seja,
se idênticos acontecimentos se houvessem registado numa "democracia
ocidental" ter-se-ia utilizado uma terminologia jornalística
totalmente diferente para designar e avaliar os protagonistas e as suas
condutas.
Os fuzilamentos apresentam-se como um castigo à oposição
por delitos "ideológicos" ou de opinião. Mas, na
realidade, tradicionalmente o Estado cubano aplicou essa horrível medida
contra crimes de alta traição à pátria, e fe-lo
inclusive contra os seus próprios dirigentes por casos de
corrupção (como o general Ochoa, um herói militar de amplo
prestígio popular, condenado à pena capital por tráfico de
drogas). Este caso deve ser marcado dentro dessa categoria.
A origem deste doloroso episódio, assim como de tantos outros, radica
na lógica de guerra que guia a política e a
organização do Estado como única resposta defensiva
possível diante da guerra permanente entabulada pelo Império.
A DEFORMAÇÃO DOS FACTOS
Repassemos o caso. A notícia foi quase unanimemente apresentada na
imprensa ocidental como um delito insignificante que recebeu um castigo
desproporcionado do Governo:
uma tentativa de sequestro de um barco para escapar para os Estados Unidos
derivou no fuzilamento dos três principais responsáveis, resumiram
os principais diários.
Na realidade, houve muitos outros elementos:
O sequestro do barco de passageiros incluiu a privação
ilegítima da liberdade de 50 pessoas que foram ameaçadas de morte
pelos delinquentes, incluídos turistas estrangeiros.
Os trabalhos de resgate exigiram muitas horas de tensão e de perigo, e
nos momentos de máximo desespero houve passageiros que se atiraram
à água para escapar à pressão a que estavam
submetidos.
O facto enquadra-se numa onda de delitos deste tipo, incluídos dois
aviões no último mês, estimulados e financiados pela
potência imperial arqui-inimiga de Cuba, com fins de
agitação interna.
Em linhas gerais, o episódio tem muitos elementos dramáticos para
assemelhá-lo a outras formas de reféns com fins políticos,
com a ressalva de que a crise resolveu-se sem vítimas graças
à perícia das forças de segurança cubanas.
Comparemos as diferenças na apresentação e
avaliação de outras notícias semelhantes:
durante a ocupação de um teatro de Moscovo pelos chechenos no ano
passado, ou a da embaixada do Japão no Peru por grupos maoistas durante
o governo de Fujimori, as forças de segurança actuaram
violentamente liquidando sem contemplação TODOS os
sequestradores, em operações que custaram a vida de parte dos
reféns. E aqui a mudança de valores e de terminologia: em ambos
os casos, destacou-se na imprensa o carácter político e
terrorista da organizações responsáveis pelo sequestro,
ninguém se preocupou minimamente com as garantias e direitos dos
sequestradores, e os Governos só colheram aplausos e
felicitações pela sua "determinação" em
combater o terrorismo.
É claro que quando a segurança do Estado ou do sistema
político nos Estados avançados se encontra ameaçada,
permite-se e consente-se qualquer medida extraordinária, como a
suspensão das garantias constitucionais nos EUA, que levou à
detenção de milhares de pessoas em condições
arbitrárias, sem direito a defesa, muitas das quais cujo paradeiro
continua desconhecido. Ou a organização de "assassinatos
selectivos" na Palestina pelo Estado israelense, que constitui uma pena de
morte virtual totalmente fora da legalidade. (O que não diria a rica
comunidade ocidental se em Cuba se caçasse gente com
helicópteros, como faz Israel!). Mas acontece sempre que Cuba
não tem direito a medidas extraordinárias.
É claro que neste caso pontual não se tratou simplesmente do
delito de sequestrar um barco: analisado juntamente com outros elementos,
surge a ponta do iceberg dos planos belicistas de Washington.
Se se incorporarem na análise os outros recentes sequestros de
aviões, a rede de activistas pro-imperialistas que mantinham
reuniões com o representante norte-americano James Cason preparando
actividades de agitação interna, e a admoestação do
embaixador ianque na Rep. Dominicana quanto à "cruzada
imperial" que começou com a invasão do Iraque mas incluiria
Cuba no futuro, é claro que a ilha está frente a uma ofensiva
imperial destinada a preparar condições políticas de
intervenção.
Isto é muito mais preocupante e grave do que os três fuzilamentos.
Contudo, muitos intelectuais parece que não repararam nisso.
Saramago, por exemplo, quer provas da conspiração. Pois bem:
há milhares de páginas de documentos, norte-americanos e cubanos,
escritas ao longo de mais de 40 anos. Não se trata de episódios
isolados: a actividade terrorista contra Cuba nunca se deteve, e como
assinala correctamente Noam Chomsky trata-se provavelmente do
território que mais atentados sofreu em todo o mundo.
Nos últimos anos, contudo, ganhou um carácter particular e
urgente, primeiro com a ofensiva terrorista da "gusanera" de Miami
voltada para objectivos turísticos da ilha (ver abaixo) e agora com as
opiniões de Jeb Bush, governador da Florida e irmão do actual
presidente norte-americano, de que Cuba deveria ser o país seguinte na
lista, após o Iraque.
Não nos enganemos: os planos para atacar Cuba estão prontos, e
de agora em diante veremos desdobrar-se um vendaval de informação
falsa para demonizar o seu governo e justificar a invasão.
A LÓGICA DA GUERRA
Neste quadro, os fuzilamentos foram pura e simplesmente uma primeira resposta
militar aos planos de guerra imperiais. Falar das vítimas como
"dissidentes" é cair na armadilha retórica do
império, e encobrir o verdadeiro carácter dos factos, tratando de
dotar de uma auréola romântica aos que, na sua esmagadora maioria,
são simples mercenários, terroristas e activistas a soldo de uma
potência inimiga.
Esta situação é difícil de entender a partir da
lógica acomodatícia de uma socialdemocracia europeia, onde a vida
política diária está longe de precisar combater centenas
de tentativas de assassinato do dirigente máximo ao longo de anos, onde
o desenvolvimento económico não sabe o que é lidar contra
um monstruoso bloqueio e o envenenamento maciço do gado e de colheitas,
e onde o aparelho militar não tem uma ameaça de invasão
pela maior potência do mundo como possibilidade de conflito
diário. Mas é uma situação real e angustiante.
A lógica da guerra revolucionária atinge toda a vida dos cubanos
há 44 anos. Não se trata só destes três
fuzilamentos, e da pena de morte em si.
há centenas de aspectos burocráticos, policiais e de outro tipo
que seria desejável remover da vida quotidiana dos cubano e que tem
origem na concepção de cada aspecto do Estado a partir de uma
óptica militar.
Mas esta lógica da guerra não é intrínseca ao
socialismo. Na verdade, ela decorre como única resposta defensiva
possível à guerra permanente e que agora parece destinada
a intensificar-se iniciada pelo império. Até agora, os
caminhos intermédios para combate-la pecaram por serem ingénuos
ou insuficientes.
Quando se trava uma guerra justa, a primeira prioridade é não
perde-la. Os exemplos morais da Revolução Sandinista ou da
esperança encarnada por Salvador Allende no Chile eram certamente
estimulantes. Mas também devemos reconhecer que foram derrotadas
sangrentamente, e que as concessões diante de um inimigo criminoso e
desapiedado só facilitaram o seu triunfo, provocando morte e
miséria para o povo. Ter-se-ia equivocado Allende se decapitasse a
sublevação criminosa de Pinochet com a autoridade de três
fuzilamentos? O Chile teria poupado, sem dúvida, milhares de vidas
valiosas.
Para travar esta guerra não há receitas infalíveis.
É possível levantar muitas bandeiras teóricas, mas na
prática o governo de Cuba é encarnado simplesmente por homens que
levam a cabo uma tarefa titânica em condições extremas.
Podem equivocar-se, e por vezes o fazem. Assumindo este cenário,
é lícito criticar um excesso de "mão dura", ou
opinar que se tratou de uma medida politicamente imprudente diante da brutal
ofensiva em maturação, mas não desqualificar afoitamente
uma obra que em linhas gerais foi progressista e humanitária, e muito
menos retirar o apoio ao processo revolucionário.
Não podemos desunir-nos devido a este episódio quanto à
defesa irrestrita de Cuba.
A reclamação sensata que a esquerda mundial pode fazer neste
momento histórico é exigir a cessação das
agressões contra a ilha, e a recusa da guerra generalizada que o
império planeia lançar contra os verdadeiros
"dissidentes", ou seja, os povos e governos de todo o mundo que se
negam a pôr-se debaixo do seu domínio.
Apêndice
Para entender como funciona a desinformação
Em fins dos anos 90 registaram-se vários atentados a bomba contra
hotéis, num dos quais morreu um turista italiano. Aquela ofensiva foi
derrotada pela inteligência militar cubana, num episódio que vale
a pena relatar porque tem íntima semelhança com o novo surto
actual da campanha e porque ilustra claramente como funciona o aparelho de
desinformação internacional que estigmatiza o governo cubano e
seus esforços de defesa.
Em Abril de 1999 os diários de todo o mundo informavam acerca de uma
reclamação generalizada de organizações de direitos
humanos, governos ocidentais e até partidos de esquerda quanto ao
destino de quatro "dissidentes" que o governo cubano estava a julgar
"sem garantias e a portas fechadas".
Poucas vezes mentiu-se tão abertamente. Os quatro
"dissidentes" eram julgados como parte da rede local de apoio de uma
organização terrorista responsável por atentados contra
hotéis em 1998. O julgamento não só foi aberto como
também foi transmitido pela televisão e foi acompanhado com
paixão pela cidadania cubana. Não faltavam elementos emocionais:
estiveram presentes, inclusive, os pais do turista italiano. Mas o povo
cubano emocionou-se sobretudo pela forma como se desbaratou a
organização terrorista: os lauréis foram para um casal de
médicos cubanos, agentes da inteligência do governo e que residiam
há 25 anos em Miami, que se infiltraram entre as
organizações anticastristas e passaram a informação
sobre a data de entrada de dois terroristas salvadorenhos com materiais
explosivos em seu poder. Detidos estes, desbaratou-se toda a rede de apoio
local. Os médicos foram imediatamente repatriados e recebidos como
heróis em Santa Clara, sua cidade natal.
Nada disto foi relatado nos media ocidentais. O governo cubano não
recebeu qualquer congratulação pela sua façanha contra o
terrorismo, nem por tantas outras semelhantes.
Em contrapartida, o império sim: tomou nota. Hoje, cinco cubanos que
se dedicavam a realizar o mesmo trabalho preventivo estão na
prisão em condições extremas nos Estados Unidos, acusados
de "espionagem" pelo governo.
Há outras deformações informativas, ou mentiras
flagrantes, na campanha actual.
O diários assinalaram que o governo cubano exigiu uma vez mais a
derrogação pelos Estados Unidos da Lei de Ajuste Cubano, e
explicou-se que quase sem excepção esta prevê a
concessão aos cubano do direito de residência uma vez transcorrido
UM ANO de permanência no país. FALSO. Na realidade, a Lei de
Ajuste prevê a concessão automática da residência aos
cubanos NO MOMENTO EM QUE PISAREM AS COSTAS NORTE-AMERICANAS. É o
único país do mundo que tem este "benefício".
Qualquer latino-americano que chegue a nado cruzando o Rio Bravo e seja
encontrado pelas forças de segurança pode receber tiros ou uma
expulsão imediata.
Mas se um cubano chega por mar, aguardam-no todos os direitos. A Lei de Ajuste
tem por objectivo estimular as saídas ilegais por mar enquanto os
EUA criar obstáculos às vias legais de imigração
contribuindo para criar uma "indústria dos balseiros"
que funciona como uma propaganda negra contra o governo cubano, e fazendo crer
ao mundo que "o regime tem a sua gente cativa" quando na realidade
qualquer cubano pode sair em viagem ou emigrar se conseguir que o país
de destino lhe conceda a respectiva autorização.
O original deste artigo encontra-se no sítio web
Mundo Posible
, do Partido Comunista do Chile.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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