Uma visão alternativa da «dissidência» cubana

por Rémy Herrera [*]

Um modo de vida bem pago pelo sr. Cason: ser dissidente. O imperialismo estadunidense, enquanto "liberta" todos aqueles que não exterminou no Iraque e limpa o caminho para que as suas multinacionais possam começar o saque, deu-se ao incómodo de denunciar uma "injustiça" em Cuba.

Será que se trata do recurso explícito e sistemático à tortura contra os detidos sem julgamento na base militar ocupada pelos EUA em Guantánamo, um enclave totalmente à margem da lei? Nada disso. Ou do incitamento de Washington — absolutamente criminoso — para emigrar ilegalmente da ilha, sem que se importe se põe em perigo a vida de terceiros, como ocorreu nos recentes sequestros (de um avião e de um ferry), negando a concessão de vistos aos cidadãos cubanos por um lado e oferecendo a nacionalidade, pelo outro, aos que acedem ilegalmente ao seu território? Tão pouco. Será então a condenação por um tribunal de Miami de vários patriotas cubanos (cadeia perpétua para alguns) por atentar contra a segurança nacional por investigarem na Florida as actividades terroristas que os grupos paramilitares tramam contra Cuba? Este assunto mobilizou o povo cubano durante meses, mas quem ouviu sequer falar do assunto?

Não, aquilo que se denunciou foi a "onda de repressão contra os dissidentes" em Cuba, dirigida contra os "intelectuais" que supostamente encarnam os valores da democracia e defendem os Direitos Humanos e aos que foram "espoliados", "lançados aos calabouços", etc.

Além disso, não foi apenas a facção mais reaccionária do establishment estadunidense que se voltou contra Cuba. Em França, na própria esquerda, há quem esteja convencido de que ao atacar o "regime castrista" soma-se a uma causa justa sem que se preocupem em informar-se sobre o que realmente se passa na ilha e não conheçam o assunto senão através dos meios estadunidenses ou outras fontes de informação unilateralmente hostis e absolutamente carentes de credibilidade. Complexados e desorientados por uma série de erros e fracassos, os próprios comunistas acabaram por assumir o pensamento único anti-cubano , uma das múltiplas facetas ideológicas da actual globalização neoliberal e belicista. Uma vez que se trata, dizem, de um vestígio anacrónico do sovietismo, Cuba tem que cair.

Camaradas, será que não se equivocam quanto à batalha? O assunto dos direitos humanos é demasiado sério para ser tratado com ligeireza, em função de extrapolações ou rumores. Com documentos fidedignos e testemunhos pelo menos inquietantes — que os meios de comunicação mal mencionaram —, as audiências públicas efectuadas pelos tribunais de 3 a 7 de Abril revelaram as ligações entres aqueles que são apresentados (repetindo ao pé da letra os comunicados da Casa Branca) como "presos de consciência" e o governo estadunidense e, mais particularmente, com o actual encarregado do Escritório de Interesses dos EUA em Havana, James Cason.

US$ 22 MILHÕES

As intenções deste último são bem conhecidas depois de ter declarado em Dezembro de 2002 que o seu objectivo é o de fazer da instituição que dirige o estado maior da contra-revolução em Cuba, violando deste modo as regras elementares da diplomacia. Assim, apoiou financeiramente (com, pelo menos, 22 milhões de dólares) a organização de um programa de luta, do qual o projecto Varela era uma das peças chave, etc. O embaixador Cason nunca ocultou sua estreita colaboração tanto com a ultra-reaccionária Fundación Nacional Cubano-Americana , criada em 1981 pelo defunto Mas Canosa com o apoio de Reagan e cujas actividades terroristas foram provadas (atentados contra hotéis da ilha em 1997), como com diversas formações paramilitares responsáveis por numerosas tentativas de assassinato de dirigentes da Revolução.

Os testemunhos dos agentes da Segurança do Estado cubano, em nome dos quais Odilia Collazo Valdés, a presidenta do Partido de los Derechos del Hombre e Néstor Baguer, presidente da Asociación de Periodistas Independientes , infiltrados nos "grupos dissidentes" desde há 13 e 11 anos respectivamente, revelaram a dependência financeira dos acusados em relação ao Escritório de Interesses dos EUA em Cuba e o facto de que trabalhavam ao serviço desta potência estrangeira captando partidários, encarregando-se de relatórios sobre "violações dos direitos humanos" com instruções muito precisas e cuja "documentação" ficava a cargo da Cubanet Miami , etc. E também o facto de que a partir da própria residência oficial de Cason estimulava-se o trabalho destes "think tanks" , de que os seus membros contavam com salvo-condutos que lhes permitiam o acesso às dependências do referido Escritório a qualquer hora, etc.

O voluntário de base contava com um pagamento cinco vezes maior que o de um médico ou de um professor, além das "prendas" devidas à generosidade do National Endowment for Democracy ... "Quanto mais estúpida a notícia, melhor se paga. A maior parte destas pessoas contam com milhares de dólares em contas bancárias estrangeiras", declarou Néstor Baguer na conferência de imprensa de 14 de Abril que marcou sua reintegração oficial na União dos Jornalistas de Cuba. "Eu os vi apresentarem seus supostos 'artigos' ao Escritório de Interesses antes do seu reenvio a Miami. Que tipo de jornalistas são estes que se fazem rever o que escrevem por um país estrangeiros que agride o seu?" As condenações mais graves não foram por "delitos de opinião" , inexistentes no código penal cubano, e sim por "traição". Os 75 "intelectuais" (dos quais 14 têm diploma universitário e só quatro deles em jornalismo ou ciências da comunicação) foram condenados a penas entre 6 e 28 anos de prisão.

Os verdadeiros defensores dos direitos humanos são aqueles que compreendem que o povo e o governo cubano devem defender-se dos grupos que, no contextos da situação sumamente difícil que se vive na ilha, fazem o jogo da reacção estadunidense. E mais ainda quando se trata do seus próprios agentes a soldo.

São muitos os franceses que perceberam ultimamente do que são capazes as autoridades estadunidenses para passar por cima de quantos lhes resistem: campanha de calúnias anti-francesas, boicote de produtos, controle dos grupos de comunicação por parte de conglomerados financeiros, manipulação de factos e desprezo pela opinião pública, chantagem a Estados soberanos no Conselho de Segurança, ... E conhecem também a força e a bravura que um povo adquire ao assumir esta luta, assim como a torrente de simpatia e respeito que ganham com ela. Por isso há que considerar em seus verdadeiros termos o efeito do bloqueio imposto contra Cuba: trata-se de uma guerra não declarada dos EUA.

O referido bloqueio — endurecido pela lei Helms-Burton, que viola o direito internacional e o princípio de soberania nacional pela extraterritorialidade das suas sanções — já recebeu a condenação de uma maioria esmagadora dos países membros da Assembleia Geral das Nações Unidas (Resolução 59/6). Em Novembro de 2002, 173 países votaram a favor do seu levantamento e só três contra o mesmo: EUA, Israel e as Ilhas Mashall. Em cada um dos últimos onze anos, o representante estadunidense declarou que o seu governo não levaria em conta a referida condenação.

George W. Bush reforçou ainda mais o dispositivo anti-cubano até o ponto de vários dos membros de origem cubana do seu gabinete serem dirigentes reconhecidos de organizações contra-revolucionárias de extrema direita, como Otto Reich, seu conselheiro para assuntos ibero-americanos.

Toda a estratégia dos EUA reduz-se à busca de uma condenação da ilha por "violação dos direitos humanos" a fim de justificar sua recusa em levantar o bloqueio. Na 58ª Sessão da Comissão dos Direitos Humanos, em Abril de 2002, uma resolução ditada por Washington "convidava" Cuba a "realizar progressos no campo dos direitos humanos civis e políticos" ... "sem desconhecer os esforços realizados no dos direitos sociais". A submissão dos delegados ibero-americanos diante da pressão dos EUA foi quase absoluta: sem nenhum tipo de vergonha, aprovaram-na todos excepto a Venezuela, que votou contra, e o Brasil e o Equador que se abstiveram. As manifestações populares de apoio a Cuba (México, Buenos Aires, Santiago do Chile, ...) foram simplesmente ignoradas. O representante cubano perguntou se o modelo que se lhes propunha era o de certo país do Norte, onde certo indivíduo acabava de ser eleitos após uma chapelada escandalosa ou de certo país do Sul, onde a população, empurrada pelo desespero devido ao caos causado pelo FMI, assaltava os camiões e os supermercados para poder alimentar-se.

A suposta "violação dos direitos humanos em Cuba" é a arma ideológica mais perniciosa já utilizada pelos EUA contra a ilha. Convém perguntar o que poderia esconder um país criado graça a um genocídio recente, onde a segregação racial, sequela do mais vasto sistema escravocrata já conhecido, perdurou até data muito tardia, que mostra desigualdades abissais e uma violência social patológica, que apoiou as ditaduras ibero-americanas mais sanguinárias — impondo-as por vezes a fim de liquidar desenvolvimentos autenticamente progressistas —, que não reconhece o Tribunal Internacional de Justiça por temer que alguns dos seus antigos dirigentes tenha que prestar contas diante dele por crimes contra a humanidade, e que mantêm pela força das armas sua hegemonia e um sistema mundial iníquo, ao acusar de violação dos direitos humanos o governo de um país onde nenhuma criança morre de fome nem tem de trabalhar, onde a escola e a medicina são gratuitas, onde as discriminações diminuíram mais que no Norte, onde, apesar da crise, todos podem adquirir alimentos a preços módicos, onde as pessoas gozam de amplos direitos sociais e participam efectivamente na construção económico-social do seu projecto de sociedade, onde a segurança está garantida, a violência é mínima e não há desaparecidos, nem mortos, nem torturas.

Uma das razões tem a ver com o conflito que opõe ambos os países e que, mesmo antes da antiga confrontação Leste-Oeste, está relacionada com a própria natureza das suas relações bilaterais. Uma vez que não pode ser senão esta última razão a explicação para que perdure após o desaparecimento da URSS: basta comparar o tratamento tão diferente que os EUA dão a Cuba com aquele que concedem a outros países comunistas, como a China. Os direitos humanos nunca foram elementos centrais na estratégia exterior dos EUA. Nem obstáculo (salvo motivos calculistas) para que se lhes concedesse ajuda financeira ou militar às suas muitas ditaduras aliadas.

A retórica da geometria variável dos direitos humanos é dirigida contra Cuba porque sua Revolução é um "pesadelo" , não tanto para os cubanos, que a fazem há mais de 40 anos, e sim para establishment reaccionário estadunidense. Cuba, anti-capitalista, anti-imperialista e anti-racista, defende a emancipação social, a libertação nacional e a mestiçagem igualitária, ou seja, exactamente o contrário daquilo que o regime neoliberal e belicista dos EUA impõem ao mundo.

Junho/2003


[*] Investigador do CNRS, Universidade de París I, Pantheon-Sorbonne.

[**] A razão porque François Hollande descreveu o bloqueio como uma "desculpa" para dissimular o "pesadelo do regime castrista" (Le Nouvel Observateur, 05/Ma/03) é que o secretário-geral do Partido Socialista não compreende que frente a um perigo real as pessoas possam unir-se resistir. É precisamente o seu abandono dos "ideais da esquerda" que obrigaram, a ele e a 82% dos franceses, a levar à presidência um gaullista que, de passagem, ensinou-o, ainda que brevemente, a aguentar a bandeira frente aos EUA.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
23/Jun/03